Debates
10 de março de 2022

Guerra na Ucrânia pode escalar para um conflito nuclear, alerta especialista russo

Neste webinar, promovido pela Fundação FHC e pelo CEBRI, conversamos com Dmitri Trenin, diretor do Carnegie Moscow Center.

A guerra na Ucrânia pode escalar para um conflito nuclear se a Rússia chegar à conclusão de que a sua existência como nação, assim como a sua integridade territorial, está ameaçada. O alerta dramático foi feito por Dmitri Trenin, diretor do Carnegie Moscow Center, think tank ligado ao Carnegie Endowment for International Peace, neste webinar realizado pela Fundação FHC e pelo CEBRI.

O palestrante chamou a atenção para uma frase dita pelo presidente Vladimir Putin a um meio de comunicação norte-americano e também à VGTRK, Companhia Estatal de Transmissão de Rádio e Televisão, em 2018: “Como cidadão e chefe do Estado russo, eu me faço a seguinte pergunta: Para que precisamos de um mundo se não houver mais Rússia?”.

“No contexto atual, é fundamental recordar aquelas palavras verdadeiramente arrepiantes. Para uma superpotência nuclear, como a Rússia ainda é, imaginar que ela aceitará uma derrota para outra superpotência nuclear, os Estados Unidos, ou por forças apoiadas pelos norte-americanos, é algo que considero altamente questionável”, disse o palestrante.

Trenin salientou que esta não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim uma disputa muito mais complexa e de longo prazo com os Estados Unidos, em primeiro lugar, e seus aliados europeus. “Moscou vê a Ucrânia como um Cavalo de Troia ou a ponta de lança de Washington na Europa Oriental, à beira da fronteira com a Rússia”, explicou.

“É importante dizer que não estamos aqui com visões convergentes sobre as razões, o significado e os desdobramentos da guerra na Ucrânia. O propósito dessa discussão é ouvir uma perspectiva qualificada e não necessariamente coincidente com a perspectiva majoritária do público brasileiro. Ninguém melhor do que o Dmitri Trenin para nos oferecer uma visão de dentro da Rússia, mas com a solidez de um scholar respeitado, que há anos estabeleceu um diálogo com o chamado Ocidente”, disse o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC.

Nascido em Moscou em 1955, Trenin é coronel aposentado, tendo servido por 21 anos no Exército Soviético e nas Forças Armadas Russas, e lecionou na Universidade de Defesa de Moscou. Sabe, portanto, como pensam os militares e conhece o regime russo por dentro, inclusive relatou já ter estado diversas vezes no Kremlin, embora nunca tenha conversado diretamente com Vladimir Putin.

Também tem contatos no Ocidente: possui PhD pelo Institute for US and Canadian Studies/Russian Academy of Sciences e, em 1993, foi o primeiro cidadão de um país não-membro da OTAN a integrar o Defense College da aliança militar ocidental. No Carnegie Moscow Center, preside o Programa de Política Externa e de Segurança.

Segundo Trenin, “a doutrina militar russa basicamente diz que, mesmo em uma guerra convencional, se houver uma ameaça à existência da Rússia e à sua integridade territorial, as armas nucleares podem ser usadas”. Ele fez um paralelo entre o momento atual e a Crise dos Mísseis de 1962, um confronto de 13 dias entre os Estados Unidos e a então União Soviética, o mais próximo que se chegou ao início de uma guerra nuclear durante a Guerra Fria (1947-1989).

“Alguns de vocês se lembram da crise dos mísseis cubanos de 1962, quando o presidente John Kennedy foi até à beira de iniciar um conflito nuclear para impedir a instalação de mísseis soviéticos em Cuba. Se o líder soviético Nikita Khrushchov não tivesse cooperado naquela situação, provavelmente não estaríamos sentados aqui hoje e muitos de nós nem teriam nascido. Vivemos um momento extremamente grave, em que as apostas em jogo são as mais elevadas desde aquele momento crucial da Guerra Fria”, afirmou.

Esta é a segunda vez que Dmitri Trenin participa de um debate a convite da Fundação FHC. Em maio de 2018, ele veio ao Brasil e deu uma palestra em nosso auditório com o título “O Ocidente deve temer a Rússia?”. “Não, o Ocidente não precisa temer a Rússia, mas deve tratá-la com todo o cuidado”, alertou ele, quatro anos atrás.

Especulações de um possível golpe contra Putin são uma fantasia

Segundo Trenin, a crise atual vem se configurando desde o final dos anos 1990, com a expansão da Otan para a Europa do Leste, mas, “com o início da operação especial – como o Kremlin prefere chamar a invasão do país vizinho –, de repente a Federação Russa se encontra em águas excepcionalmente ásperas e nunca antes navegadas”. A Europa e o mundo, também.

O palestrante destacou algumas questões fundamentais que devem ser atentamente observadas dentro da Rússia nos próximos meses e anos:

  • A Rússia será capaz de lidar com o isolamento quase total do Ocidente, devido às sanções impostas ao país?
  • A maioria da população seguirá apoiando as políticas do Kremlin?
  • O choque repentino e terrível que o país está experimentando neste momento irá livrá-lo da complacência induzida pelo petróleo e pelo gás e colocá-lo em um caminho difícil de desenvolvimento e rejuvenescimento nacional?
  • Ou a atual crise levará a Rússia finalmente ao chão, com consequências imprevisíveis?

Apesar de dizer que a situação é muito fluida e pode se alterar rapidamente, como aconteceu nas últimas semanas, ele não acredita na possibilidade de uma revolta popular. “Se a situação na Ucrânia virar um caos, com muitas mortes de soldados russos, a popularidade de Putin pode sofrer, mas é preciso levar em conta que a visão dos habitantes das grandes cidades é muito diferente da visão da população que vive no interior do país, onde pouca informação independente chega”, disse.

Ele também descarta uma união entre os militares e os oligarcas russos para derrubar Putin, como alguns analistas ocidentais têm especulado. “Os oligarcas nunca foram jogadores independentes em relação ao Kremlin, e os militares russos não têm uma história de tomar o poder com as próprias mãos. Imaginar que eles se uniriam para depor Putin, colocando em risco a integridade da Rússia, me parece uma fantasia. Não há nenhuma evidência de que este cenário seja crível”, afirmou.

Trenin também destacou que Putin tem total controle sobre as políticas externa e de segurança da Rússia: “Isso fica claro nas imagens das reuniões do Conselho de Segurança transmitidas pela TV russa. Não existe discussão ou debate, como existia até mesmo no Politburo nos tempos soviéticos. O que Putin decidiu, está decidido. Ele formou sua opinião sozinho e, se decidir mudar o curso, seja no sentido de escalar ou desescalar o conflito, os demais concordarão.”

A Ucrânia é o primeiro campo de batalha de uma disputa que está apenas começando

Globalmente, dois blocos opostos, estruturados de maneira bastante diferentes, estão emergindo, um liderado pelos EUA, o outro pela China e pela Rússia: “A Ucrânia é o primeiro campo de batalha de uma história que está apenas começando”, disse o palestrante.

“A aproximação entre Pequim e Moscou pode resultar na criação de uma aliança militar asiática liderada pela China e pela Rússia, ou mesmo em uma aliança indo-pacífico?”, perguntou Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP, senior fellow do CEBRI e uma das mediadoras do webinar.

“A China, como a Rússia, enfrenta o poder e o domínio dos Estados Unidos. Os dois países têm culturas e estratégias muito diferentes, mas seus objetivos coincidem em diversos aspectos. O relacionamento entre Pequim e Moscou é bastante sólido, no momento, mas mais do que uma aliança trata-se de um alinhamento, em que não há hierarquia nem comando conjunto, mas sim cooperação e coordenação”, explicou Trenin.

O diretor do Carnegie Moscow Center salientou o fato inédito de a China ter se posicionado oficial e publicamente sobre questões de segurança europeias: “Pequim não apoiou a operação militar na Ucrânia, mas pela primeira vez na história deu seu apoio às críticas russas a uma eventual nova rodada de expansão da Otan.” 

“A China é uma potência global com significativos interesses de natureza econômica tanto na Europa como nos Estados Unidos, mas provavelmente os interesses geopolíticos terão um papel maior na tomada de decisões em Pequim em relação à atual crise e seus desdobramentos”, disse.

O que quer Putin?

“O desejo do presidente Putin de reconstruir a zona de influência que os russos tinham na Europa nos tempos da União Soviética, fazendo por exemplo a Otan recuar para o status quo existente nos anos 1990, é algo realista?”, perguntou o mediador Sergio Fausto.

“Nunca considerei realista a demanda russa de que toda a infraestrutura da OTAN fosse retirada do Leste Europeu, retrocedendo à situação anterior à expansão ocorrida após o fim da URSS. Creio que Putin estaria preparado para abrir mão dessa exigência em uma mesa de negociação séria”, respondeu Trenin. “Ele insiste, no entanto, em ter alguma espécie de zona desmilitarizada em suas fronteiras ocidentais, ou seja, na Europa Oriental. O Ocidente não admite isso. Esse é o X da questão.” 

Ainda segundo o ex-militar russo, em diversas oportunidades nos últimos anos o líder russo defendeu um modelo de segurança europeia baseado em um entendimento entre os EUA, seus aliados e a Rússia, em vez de um modelo centrado na OTAN. “Houve um momento em que algum tipo de acordo nesse sentido, baseado em negociações diplomáticas, parecia estar mais próximo do que nunca desde o final da Guerra Fria, mas com o início da operação militar houve um enorme retrocesso”, continuou.

Segundo Trenin, “Putin não tem como meta mudar o governo em Kiev (capital da Ucrânia) nem ocupar o país de forma permanente. O que ele quer é uma Ucrânia que se declare de fato neutra política e militarmente, a aceitação da anexação da Crimeia pela Rússia (ocorrida em 2014) e o reconhecimento de Donbass, território ucraniano de maioria russa, como uma república independente”.

O modelo para essa neutralidade seria a Finlândia durante a Guerra Fria: “Naquele período, os finlandeses – que têm uma longa fronteira com o território russo – levavam a sério os interesses de segurança soviéticos, evitando tomar partido na disputa entre o Ocidente e a URSS. Mas a Ucrânia não é a Finlândia e, no momento, não existe no país nenhuma liderança política à vista que possa convencer a maioria da população ucraniana de que a neutralidade talvez seja o caminho mais adequado”, disse.

“A curto prazo, acho difícil um acordo. Pelo contrário, existe espaço para um escalonamento do conflito. Infelizmente, a guerra não parece estar perto do fim, mas sim em seus estágios iniciais. As Forças Armadas Russas provavelmente permanecerão na Ucrânia por um período mais longo do que Moscou inicialmente desejava”, concluiu. 


Assista ao vídeo da palestra de Dmitri Trenin em 2018:
 O Ocidente deve temer a Rússia?

 

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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