Debates
01 de outubro de 2020

Estados Unidos e China: uma nova Guerra Fria?

EUA e China têm cometido erros estratégicos que poderão levar a um acirramento ainda maior da rivalidade entre as duas potências e, possivelmente, a um conflito militar limitado na Ásia.

Tanto os Estados Unidos como a China têm cometido erros estratégicos que, se não forem corrigidos, poderão levar a um acirramento ainda maior da rivalidade entre as duas potências e, possivelmente, a um conflito militar limitado na Ásia cujas consequências para a região e o mundo seriam imprevisíveis. A eleição norte-americana de 3 de novembro será um momento crucial para o futuro das relações entre Washington e Pequim. 

Esta foi a principal mensagem trazida por Lanxin Xiang, intelectual chinês respeitado na China e no Ocidente, durante este webinar realizado pela Fundação FHC e pelo CEBRI, que também teve a participação de Luiz Augusto de Castro Neves, ex-embaixador do Brasil em Pequim.

“A situação atual é muito perigosa, não tanto por causa de Trump, que nunca foi interessado em questões ideológicas, mas devido a sua equipe de assessores liderada por Mike Pompeo. O secretário de Estado norte-americano definiu um caminho muito ideológico para lidar com a China, cujo objetivo seria a mudança de regime em Pequim, nada menos do que isso”, disse o professor de História e Política Internacional no Instituto de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento (Genebra) e diretor do Centre of One Belt, One Road Studies (Xangai). 

“Se Joe Biden vencer, o perigo de uma guerra fria desembocar em uma guerra quente diminuirá drasticamente, pois ele deve adotar uma linha mais pragmática em relação à China, diferentemente de outros presidentes democratas. Se o atual presidente se reeleger, vai depender de quem será o responsável pela política externa no segundo mandato. Não ficaria surpreso se, mais relaxado com a conquista do segundo e último mandato, Trump promovesse um giro de 180 graus na relação com Pequim e passasse a se referir ao presidente Xi Jinping como seu melhor amigo”, disse Lanxin.

De acordo com o especialista em História e Política Chinesas e nas relações entre China, EUA e Europa, o impasse sobre o status internacional de Taiwan é o que pode detonar um conflito a curto prazo. “Se houver uma provocação norte-americana no sentido de estimular uma declaração de independência de Taiwan, a China será obrigada a reagir, provavelmente por meio de uma ação militar limitada, o que pode levar a uma escalada militar na região.”

Segundo Lanxin, a equipe liderada por Mike Pompeo implementa uma política de enfrentamento com a China baseada em três argumentos:

  • Os Estados Unidos deveriam ter agido desde o início para impedir (ou dificultar) o processo de crescimento econômico  da China, deslanchado a partir das reformas de Deng Xiaoping (líder máximo do país entre 1978 e 1992);
  • O impressionante desenvolvimento econômico chinês nas últimas quatro décadas teria beneficiado apenas a China, e não a outros países da Ásia e do globo;
  • O Partido Comunista Chinês não teria legitimidade para governar e, por isso, recorreria ao autoritarismo para sufocar sua população.

“Esses argumentos, que estão no centro da política em relação à China implementada pelo atual secretário de Estado norte-americano, representam uma negação de toda a história das relações sino-americanas desde Nixon-Kissinger e não se sustentam com base em fatos reais. As reformas econômicas chinesas tiraram 30% da população chinesa da pobreza absoluta e beneficiaram muitos países ao redor do mundo por meio do comércio”, explicou o autor do livro “The Quest for Legitimacy in Chinese Politics – A new interpretation” (2019).

“Essa ideia de que existiria uma guerra entre a civilização ocidental e uma cultura não-caucasiana é muito perigosa e não deixa espaço para compromissos. Hoje Pequim não tem certeza do que querem os Estados Unidos, além de uma inaceitável mudança de regime. Qual é a estratégia norte-americana a médio e longo prazo?”, afirmou o palestrante chinês, que mantém diálogo constante e próximo com autoridades do regime chinês.

Lanxin: ‘Excessiva confiança de Pequim deixa país vulnerável’

As críticas do especialista chinês não se limitaram a Washington. “De uns anos para cá, Pequim parece ter esquecido um conselho de Deng Xiaoping antes de deixar o poder. O líder chinês defendeu que a China deveria buscar seu desenvolvimento econômico com discrição, sem pretender assumir um papel de liderança global por pelo menos 50 anos, evitando assim criar arestas com outros países relevantes do ponto de vista geopolítico”, disse.

“Existe hoje em Pequim a percepção de que o momento de a China liderar o mundo, ou pelo menos ser um dos líderes mundiais, teria finalmente chegado. Minha opinião é de que esta atitude é prematura, reflexo de um excesso de confiança antes da hora. Já disse isso a interlocutores em Pequim”, continuou.

Como exemplo, ele citou o projeto One Belt, One Road, que prevê grandes investimentos em infraestrutura financiados pela China e executados por empresas chinesas em diversos países da Ásia, África e outras regiões. “Por mais que Pequim diga se tratar de uma iniciativa puramente econômica, os impactos geopolíticos não podem ser ignorados. A China precisará reconsiderar sua estratégia global”, afirmou.

Embora defenda que a China tem o direito de estabelecer seu próprio modelo político baseado em sua história milenar, Lanxin criticou violações aos direitos humanos e restrições à liberdade de expressão. “Já somos uma potência global e não podemos mais nos esconder atrás de uma grande muralha. Teremos de levar em consideração o impacto internacional de tudo o que acontece dentro de nossas fronteiras, incluindo questões de lei e ordem e problemas com direitos humanos e liberdade de expressão. Uma reforma interna do sistema político chinês é um passo importante para criar uma atmosfera política mais tranquila e melhorar a imagem da China mundo afora”, concluiu.

A pandemia de Covid-19 — que surgiu na China no final de 2019 e se espalhou pelo mundo, causando mais de 1 milhão e 150 mil mortes até meados de outubro — representa uma oportunidade para a China “mostrar que tem valores universais e ajudar o mundo a enfrentar o vírus”. “Apesar de uma hesitação inicial em assumir a gravidade da pandemia, a China foi bem sucedida em controlar o coronavírus, saiu na frente na recuperação econômica e no desenvolvimento de uma vacina. Em vez de politizar essas vantagens, deve apostar no multilateralismo e na cooperação com outros países para juntos superarmos o quanto antes a pandemia”, disse.

Castro Neves: ‘Bom senso prevalecerá’

“O século 21 será bem diferente do século 20, em que os EUA se consolidaram como principal potência mundial. Ninguém sabe ao certo o que acontecerá, mas uma coisa é certa: a Ásia, com a China na liderança, terá muito poder na nova ordem internacional”, afirmou o embaixador Luiz Augusto de Castro Neves, que já ocupou a Embaixada do Brasil em Pequim.

Para Castro Neves, existe uma “guerra fria tecnológica em curso”, mas as economias norte-americana e chinesa são muito entrelaçadas e interdependentes, o que torna difícil uma dissociação entre elas e um conflito armado, improvável. “EUA e China não têm outra alternativa a não ser se entenderem. Os dois lados perderiam muito com a eclosão de uma guerra quente.”

Ainda segundo o embaixador, há várias disputas pendentes no continente asiático — a nuclearização da Coreia do Norte e as relações desta com a Coreia do Sul; o status internacional de Taiwan e a hegemonia sobre o Mar do Sul da China; a disputa entre China e Japão sobre um arquipélago reivindicado por ambos — e o ideal é que elas sejam resolvidas pelos próprios países asiáticos.

“Antes da pandemia, China e Japão avançavam nas negociações para selar um acordo de paz verdadeiro, algo que continua sem solução desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1945). Se Pequim e Japão chegarem finalmente a um acerto, o espaço dos Estados Unidos para agir militarmente na Ásia diminuirá significativamente”, disse o diplomata brasileiro.  

Lanxin: ‘Pequim vê Brasil como âncora na América Latina’

“Nunca ouvi nada de negativo sobre o Brasil de alguma alta autoridade chinesa. Durante a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro usou uma linguagem em relação à China que preocupou Pequim. Mas, depois que assumiu o governo, o presidente brasileiro foi razoável e não colocou em prática nada que pudesse prejudicar a relação econômica entre nossos dois grandes países. O Brasil continua sendo a âncora da China na América Latina”, disse o palestrante chinês já na parte final do evento.

Mas, segundo o especialista, a visita do secretário Mike Pompeo ao Brasil em setembro — quando se encontrou com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em Roraima, perto da fronteira com a Venezuela — não foi bem recebida. “Posso afirmar que essa visita desagradou os líderes chineses bem mais do que vocês podem imaginar”, alertou. 

Castro Neves insistiu que EUA e China provavelmente chegarão a um acordo, mais cedo ou mais tarde, e por isso o Brasil deve evitar escolher um dos lados da disputa entre as duas potências mundiais. “O Brasil adiou o leilão da tecnologia 5G para 2021. Assim teremos tempo de aguardar o resultado da eleição à Casa Branca e seus desdobramentos na relação entre Washington e Pequim. É o melhor a fazer neste momento”, disse. Lanxin Xiang assentiu.

Artigos do Journal of Democracy em Português sobre a China:

O sistema de crédito social chinês. Como Pequim avalia, recompensa e pune seus cidadãos?

O que é ‘sharp power’ e como ele perfura as instituições internacionais?

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.