Direitos indígenas: entrave ao desenvolvimento ou parte da riqueza nacional?
Reunimos representantes qualificados em um debate que, entrelaçado ao da questão ambiental, atrai cada vez mais atenção no Brasil e no mundo.
O projeto de lei que o governo Bolsonaro pretende enviar ao Congresso Nacional para regulamentar a mineração e outras atividades em terras indígenas deve esbarrar não somente na resistência de comunidades e lideranças indígenas, antropólogos, ambientalistas e ativistas do Brasil e do exterior, como do próprio Congresso (Rodrigo Maia, presidente da Câmara, já se manifestou contrariamente) e do Ministério Público Federal. Se aprovado, deverá ter sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal.
“Venho aqui afirmar que os povos indígenas do Brasil são parte fundamental da riqueza nacional. Nossos direitos, claramente descritos na Constituição de 1988, não representam entrave ao desenvolvimento da Amazônia e do país. Queremos paz e tranquilidade para viver segundo nossas tradições. Digo não à mineração em terras indígenas.”
Joênia Wapichana, advogada, é a primeira deputada federal indígena, eleita em 2018 pela Rede Sustentabilidade em Roraima.
“Enquanto o Congresso não aprovar lei complementar que regulamente as atividades produtivas em terras indígenas, como determina a Constituição e em consonância com os princípios estabelecidos por ela, todo garimpo em terras indígenas é inconstitucional.”
Mario Luiz Bonsaglia, subprocurador geral da República, é membro titular da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, responsável por defender os direitos das populações indígenas e comunidades tradicionais.
Em debate na Fundação FHC, tanto Wapichana como Bonsaglia destacaram o artigo 231 da Constituição Federal, cujo parágrafo 3º determina que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
Já o parágrafo 6º afirma: “São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, (…) a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar (…).”
“Qual seria o relevante interesse público da União? A Constituição determina que nossos direitos são originários, eles vêm desde antes da fundação do Estado brasileiro. As terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis e permanentes. Não se trata de favor ou ideologia. É dever da União demarcar essas terras e protegê-las”, afirmou a deputada.
“Não é de hoje que as terras indígenas são invadidas por garimpeiros, madeireiros e grileiros. Os direitos indígenas, apesar de protegidos na Constituição de 1988, na prática continuam a ser violados. Por isso, é fundamental regulamentar a mineração empresarial e outras atividades produtivas nas reservas. Uma coisa é certa: o índio tem que estar no centro da solução”, disse o geólogo Elmer Prata Salomão, ex-presidente da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM).
Também participaram do painel o biólogo Ismael Nobre (Projeto Amazônia 4.0), o ambientalista Márcio Santilli (Instituto Socioambiental) e o engenheiro agrônomo Rodrigo Justus de Brito (Confederação da Agricultura e Pecuária no Brasil).
Wapichana: ‘Queremos ser ouvidos e sugerir alternativas’
Segundo a líder indígena, formada em direito pela Universidade Federal de Roraima, com mestrado na Universidade do Arizona (EUA), os direitos constitucionais dos índios estão sob grave ameaça diante da iminência da apresentação do PL pelo Poder Executivo, elaborado sem ampla consulta pública às comunidades indígenas de todo o país: “Queremos ser ouvidos de fato e sugerir alternativas viáveis e sustentáveis à mineração e a outras atividades destruidoras do meio ambiente e de nossa cultura. Até agora, isso não ocorreu.”
O procurador lembrou que o Brasil ratificou a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais em Estados Independentes, que determina que eles devem ser consultados e participar livremente da adoção de medidas relativas ao uso, gestão e conservação de seus territórios. “As consultas (aos povos indígenas) deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada para conseguir consentimento em relação às medidas propostas”, afirmou. A Convenção da OIT é o instrumento internacional mais atualizado e abrangente em respeito às condições de vida e trabalho dos indígenas e, sendo um tratado internacional ratificado pelo Estado brasileiro, tem caráter vinculante.
Para governo, índios não teriam ‘poder de veto’
Segundo reportagem publicada pelo “O Globo” em 11 de janeiro de 2020, o PL que o governo deve propor determina que caberá ao Poder Executivo federal definir as áreas para pesquisa e lavra de recursos minerais, hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica. Embora mencione a necessidade de consultar os índios, eles não teriam poder de veto: “O pedido de autorização poderá ser encaminhado [ao Congresso] com manifestação contrária das comunidades indígenas afetadas, desde que motivado”, diz um dos artigos da minuta obtida pelo jornal.
De acordo com a Agência Brasil, na avaliação do presidente Jair Bolsonaro a possibilidade de explorar minérios e realizar outras atividades produtivas em terras demarcadas será como uma Lei Áurea para os índios. “Queremos que o índio possa, na sua terra, fazer tudo que um fazendeiro, ao lado, pode fazer na dele. (…) Não teve a Lei Áurea? (…) Quero dar a Lei Áurea para o índio”, disse. O chefe de Estado argumenta que existem lideranças indígenas favoráveis à mineração e a outras atividades produtivas, pois isso representaria entrada de recursos para suas comunidades.
“Nossos direitos constitucionais são bonitos, mas estamos sofrendo enorme pressão porque o atual presidente da República foi eleito com um discurso fortemente contrário aos índios. Na campanha de 2018, ele esteve em Roraima e prometeu abrir a Reserva Raposa Serra do Sol para mineração. Prometeu não apenas paralisar como rever as demarcações de terras indígenas e unidades de conservação. Está cumprindo. Cortou recursos do Ministério do Meio Ambiente e de órgãos como Funai e Ibama, comprometendo a fiscalização e a proteção de nossas terras. O resultado é o aumento dos conflitos e da violência”, criticou a deputada.
Maia promete arquivar PL
Desde 1996, o PL 1610, proposta de regulamentação da exploração em terras indígenas apresentada pelo ex-senador Romero Jucá (PMDB-RO), está parado na Câmara dos Deputados. Em 2015, houve uma tentativa de avançar em sua tramitação, sem sucesso. Em 2019, o atual governo anunciou que enviará nova proposta ao Legislativo. Em entrevista à Globo News em novembro passado, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que arquivará qualquer projeto de mineração em terra indígena que chegar à Casa.
“É notória a existência de inúmeros garimpos ilegais e o Estado tem se mostrado ineficaz na proteção das terras demarcadas. Todos os pedidos de pesquisa e exploração devem ser sumariamente rejeitados enquanto não vigorar lei específica, devidamente aprovada pelo Congresso e chancelada pelo Supremo. O Ministério Público cumprirá seu papel constitucional de defesa dos direitos indígenas”, avisou o procurador Bonsaglia.
“O rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho mostra que o Estado não tem controle e é incapaz de fiscalizar. Além disso, municípios onde existem grandes projetos de mineração pouco se beneficiam da riqueza extraída. Pelo contrário. Surgem inúmeros problemas ambientais e sociais, e quem se beneficia são principalmente os donos dos empreendimentos. A exploração mineral não é uma resposta adequada às reais necessidades de desenvolvimento dos povos indígenas. Existem outros caminhos”, concluiu Wapichana.
‘Garimpo ilegal não é mineração profissional’, diz geólogo
Para Elmer Salomão, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Geologia, é preciso diferenciar o garimpo ilegal da mineração empresarial. O primeiro seria realizado de forma predatória, sem cuidados com o meio ambiente, a segurança e a saúde dos trabalhadores e dos habitantes da região. A última, quando feita com responsabilidade ambiental e social e de acordo com regras bem definidas e devida fiscalização, traria resultados positivos para o meio ambiente e a comunidade em torno.
“Carajás é um exemplo de como é possível explorar recursos minerais na Amazônia sem destruir a floresta e sua biodiversidade. A extração mineral se concentra em apenas 3% da área de Carajás, enquanto 4.000 km² de floresta nacional estão protegidos de forma permanente”, disse o gerente da GEOS LTDA. Segundo ele, tanto os índios como outras comunidades que vivem na Amazônia (e outras regiões do país) e a sociedade brasileira como um todo devem se beneficiar da riqueza existente no subsolo brasileiro, propriedade da União. “A legislação deve compatibilizar os diversos interesses envolvidos, sem prejudicar os índios”, afirmou.
De acordo com o especialista, das cerca de 400 áreas indígenas da Amazônia brasileira, no máximo dez teriam ocorrências minerais importantes, mas é preciso pesquisar mais para desenvolver um adequado mapeamento geológico da região. “As áreas indígenas são pontos cegos em termos de conhecimento geológico. Não há como regulamentar o que não se conhece”, disse.
ISA: Um terço das terras demarcadas podem ser atingidas
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), a exploração mineral tem potencial para afetar quase um terço das mais de 700 reservas indígenas existentes no País. Levantamento feito pela ONG na Agência Nacional de Mineração identificou mais de 4.300 requerimentos de pesquisa ou lavra em 214 áreas indígenas. Grande parte desses requerimentos é das décadas de 1980 e 1990, antes da demarcação das terras indígenas, e tem como objetivo garantir aos autores dos pedidos prioridade caso a exploração venha a ser autorizada.
“Existe uma visão distorcida de que os índios vivem em situação de pobreza ou mesmo miséria em suas terras, quando na verdade muitas comunidades têm condições de vida razoáveis e produtos a oferecer ao país e ao mundo. É importante conhecer melhor e estimular a economia indígena, sempre respeitando e protegendo suas tradições milenares”, disse Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA, uma das ONGs mais atuantes na Amazônia.
“Também a vida social (e política) da aldeia é diferente daquela a que nós, brancos, estamos acostumados. Os membros da comunidade costumam se sentar no centro da aldeia, onde todo mundo tem oportunidade de ouvir e falar. As decisões são tomadas coletivamente e devem ser levadas a sério no momento de definir quais atividades serão autorizadas nas reservas”, disse Santilli, que participou da elaboração do capítulo dos direitos indígenas na Constituinte de 1987-88 e presidiu a Funai (Fundação Nacional do Índio).
Desenvolver ou conservar? Falso dilema
O biólogo Ismael Nobre, corresponsável pelo Projeto Amazônia 4.0, ao lado de seu irmão, o climatologista Carlos Nobre, defendeu que o caminho para melhorar a vida não somente das populações indígenas mas das demais comunidades que vivem na região é a união da “economia da biodiversidade com as possibilidades criadas pela revolução digital e a Indústria 4.0”.
“Biodiversidade + tecnologia + criatividade = desenvolvimento sustentável. Esta é a fórmula que propomos para a Amazônia. Agregar valor aos produtos naturais da região, realizar treinamentos a distância, facilitar a comunicação e o transporte para dar escala à produção e a comercialização e acessar mercados. As comunidades locais devem ser os principais atores desse processo”, sugeriu.
Segundo o estudioso, atualmente 18% da área total da Amazônia brasileira foi desmatada ou está degradada. “Logo chegaremos a 25%, que pode ser um ponto de não retorno, quando a floresta em pé não teria mais capacidade de produzir a quantidade de chuva necessária para se manter. Se não mudarmos o rumo atual, em 2050 50% da floresta já terá desaparecido”, alertou.
“A principal vantagem do Brasil em relação a outros países é sua biodiversidade. As populações indígenas fazem o manejo de sistemas agroflorestais há séculos e podem nos ajudar a nos tornarmos gestores inteligentes e responsáveis desse enorme patrimônio que é a Amazônia”, concluiu.
CNA: ‘Existe espaço para todos’
“Os direitos indígenas não representam entrave e suas reservas não fazem falta para o agronegócio elevar sua produtividade. Há muitas terras degradadas que podem ser recuperadas para a agricultura e a pecuária, utilizando modelos de exploração mais sustentáveis, sem prejuízo à floresta”, afirmou o engenheiro agrônomo e advogado Rodrigo Justus de Brito, representante do setor agropecuário no painel.
No início de janeiro, o jornal “O Estado de S.Paulo” publicou reportagem sobre uma fazenda do tamanho do município de São Paulo no Mato Grosso, que estava degradada e no vermelho e, ao integrar a pecuária intensiva ao plantio de soja, aumentou sua produção de alimentos em 40 vezes sem desmatar nenhuma árvore. Como resultado, passou a capturar CO₂ em vez de emitir, invertendo sua relação com o aquecimento global.
“Existe espaço para tudo e para todos: comunidades indígenas e setor produtivo, preservação ambiental e desenvolvimento econômico”, afirmou o assessor sênior da Confederação da Agricultura e Pecuária no Brasil (CNA).
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.