Desafios para a Educação Pública agora e depois da Covid-19
É fundamental haver maior integração entre diferentes áreas das políticas públicas e coordenação entre os Estados e seus municípios.
É ilusão pensar que, no retorno às aulas, professores e alunos retomarão o processo de ensino-aprendizado no ponto em que o deixaram quando as atividades escolares foram subitamente suspensas. A pandemia atingiu famílias, cujos membros adoeceram ou morreram. O confinamento em casa traz consequências emocionais-afetivas tanto para as crianças e os adolescentes como para os profissionais da educação. O longo período sem aulas também agrava problemas como a desigualdade entre alunos de diferentes classes sociais.
Para enfrentar com sucesso os desafios que surgirão com a reabertura das escolas, é fundamental haver maior integração entre diferentes áreas das políticas públicas (educação, saúde, assistência social, cultura etc.) e coordenação entre os Estados e seus municípios. Em um momento tão crucial, o MEC tem se mostrado incapaz de definir diretrizes nacionais para o retorno às aulas.
Estas foram as principais mensagens deste webinar realizado pela Fundação FHC que reuniu Beatriz Cardoso, fundadora e presidente do Laboratório de Educação, Priscila Cruz, presidente-executiva e co-fundadora do Todos Pela Educação, e Daniel De Bonis, diretor de Políticas Educacionais na Fundação Lemann.
“O fechamento das escolas aconteceu de forma repentina e houve muito improviso nas tentativas de implementar algum nível de ensino remoto, mas o retorno às escolas pode e deve ser bem planejado. Todos sabemos que o ensino presencial é insubstituível, mas as redes escolares precisam estar bem preparadas para esse momento tão importante”, disse Cruz, mestre em Administração Pública pela Harvard Kennedy School of Government.
“Com a pandemia, uma parcela maior da sociedade se conscientizou de que o descaso com a ciência e o conhecimento é extremamente prejudicial e nos conduz ladeira abaixo. Mais do que nunca, chegou a hora de um pacto social de valorização da educação, da ciência e da cultura”, afirmou Cardoso, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e diretora da Fundação FHC.
“Este é um momento crítico para as redes públicas de ensino. No momento em que mais é preciso planejar, coordenar ideias e ações, trabalhar junto, a política tem impedido isso. Não há integração entre os responsáveis pelo Ministério da Educação e os secretários estaduais e municipais”, disse De Bonis, doutor em Administração Pública e Governo pela EAESP-FGV e ex-secretário-adjunto de Educação do município de São Paulo.
Nota técnica propõe passo a passo para a volta às aulas
No início de maio, o movimento Todos pela Educação emitiu a nota técnica Educação na pandemia: o retorno às aulas presenciais frente à Covid-19. A nota se baseia na análise de experiências de países que passaram por desastres naturais (como terremotos e tsunamis) ou conflitos armados e contou com a colaboração de cinco profissionais com ampla experiência em gestão pública na área da educação em diferentes regiões do País.
O documento traz 3 mensagens principais:
- As escolas irão se deparar com desafios que só podem ser enfrentados com apoio de outras áreas;
- Não será uma “retomada de onde paramos”. O plano de ações deve contemplar diversas frentes e demandará intensa articulação e contextualização local;
- As respostas ao momento atual podem dar impulso a mudanças positivas e duradouras nos sistemas educacionais.
‘Estudantes e profissionais voltarão diferentes’
A pandemia e a necessidade de isolamento em casa provoca sofrimento e aumenta a frequência de problemas emocionais-afetivos envolvendo as crianças e seus pais, irmãos e parentes próximos: desde dificuldades de relacionamento, ansiedade, depressão e outros distúrbios mentais mais graves até casos de abuso ou violência doméstica.
“As dificuldades individuais e familiares vividas nesse longo período longe da escola virão para a sala de aula junto com o retorno dos estudantes e profissionais da educação. Eles chegarão diferentes e precisamos nos preparar para acolhê-los”, disse Cruz.
Daí a necessidade de uma abordagem multidisciplinar e intersetorial, envolvendo educadores, médicos, psicólogos, assistentes sociais etc. Cruz também destacou a importância da comunicação com as famílias. “Nunca essa parceria foi tão necessária porque muitas ações vão depender de um diálogo ágil e eficiente entre educadores e pais. Não é hora de um lado culpar o outro”, afirmou.
“A nota técnica do Todos pela Educação é muito bem-vinda e toca em pontos fundamentais, como a importância de buscar um equilíbrio entre o atendimento socioemocional e cognitivo dos jovens. É preciso integrar o trabalho de diferentes profissionais para tratar as duas coisas. Afinal, professor não é psicólogo. O que é específico da escola é a pedagogia, alertou Cardoso.
‘Desigualdades entre os estudantes se aprofundaram’
Daniel De Bonis lembrou que a escola pública é um espaço de redução de desigualdades, pois a alimentação é a mesma para todos os jovens, assim como os professores, a sala de aula, a biblioteca, o espaço de recreio etc. “Com a suspensão das aulas por um período prolongado, esse efeito nivelador desaparece. Tem alunos que permaneceram conectados à escola mesmo a distância, outros não. Alguns tiveram apoio dos pais para estudar online, outros tiveram de se virar sozinhos. Em alguns lares, a alimentação foi adequada, em outros não. Uma coisa é certa: as desigualdades se aprofundaram nesse período. Um dos desafios a curto prazo será mitigar esses prejuízos”, disse.
De Bonis também alertou para o risco de aumento da evasão escolar, principalmente no ensino médio. “A pandemia colocou muitas famílias em uma situação econômica extremamente difícil e é possível que um número razoável de jovens abandonem a escola para buscar trabalho e ajudar os pais”, disse.
Para evitar o aumento da evasão, será necessário monitorar os alunos com atenção e fazer uma busca ativa para trazer de volta aqueles que não retornarem por conta própria. “Mais um motivo para uma ação coordenada com equipes de assistentes sociais com o objetivo de impedir que esses adolescentes fiquem pelo caminho”, afirmou Cruz.
Outro fator de preocupação é a provável migração de alunos da rede privada para a rede pública, devido à crise econômica e ao aumento do desemprego e da queda de renda. Isso sobrecarregará a rede pública num momento em que terá de enfrentar maiores desafios com menores recursos.
‘Focar na formação do professor’
Para Beatriz Cardoso, a formação dos professores deve ser a prioridade número 1 na fase pós-Covid. “Sempre fui favorável a programas de avaliação, ao desenvolvimento e à divulgação de boas métricas, mas arrisco dizer que talvez esta seja a hora de concentrar recursos na capacitação do professor. São eles que precisam estar equipados para entender a nova realidade e saber reagir a ela da forma adequada”, disse a educadora. A observação se deu em resposta à ideia de que as redes públicas deveriam fazer uma avaliação para testar o nível de conhecimento dos alunos no retorno às aulas. A educadora acredita que essa avaliação consumiria recursos que poderiam ser melhor empregados na preparação dos professores.
Cardoso propôs a criação de um Dia Nacional de Planejamento da Educação, juntando professores, coordenadores, diretores e gestores públicos dos três níveis federativos. “Seria algo simbolicamente importante e poderia contribuir para termos uma visão sistêmica dos desafios como um todo neste momento”, disse.
Flexibilidade ao reorganizar o ano letivo
Os palestrantes também defenderam flexibilidade e criatividade na hora de reorganizar o calendário e o currículo escolar. “Seria o caso de pensar em um ciclo de aprendizado mais longo, juntando o que resta deste ano a 2021?”, perguntou Cruz.
“Diferentemente do hemisfério Norte, onde o ano letivo já passava da metade quando as aulas foram suspensas, no Brasil o ano mal havia começado. Considerando que as atividades serão retomadas em meados do ano ou no início do segundo semestre, pode fazer sentido repensar o calendário e o currículo para distribuir o conteúdo de dois anos letivos em 18 meses”, concordou De Bonis.
Ambos defenderam o uso das ferramentas digitais, às quais muitos estudantes e professores se familiarizaram durante a quarentena, para apoiar os estudantes que precisarem de reforço de aprendizado. Este, segundo eles, pode ser um dos legados positivos da pandemia. “A tecnologia pode ser uma importante aliada em atividades de apoio ao ensino presencial”, disse Cruz.
Renovação do Fundeb
Diante da profunda crise econômica e do agravamento da situação fiscal não apenas da União, mas dos municípios e estados, responsáveis pela educação básica, a renovação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) pelo Congresso Nacional se torna ainda mais urgente.
O Fundeb — criado durante o governo Lula para suceder o Fundef, formulado durante o governo FHC — tem o objetivo de redistribuir de forma mais equitativa os recursos destinados à educação entre os três níveis federativos. O atual Fundeb acaba no final deste ano e os deputados e senadores precisam votar sua prorrogação, com eventuais mudanças e aperfeiçoamentos. (Veja como foi o seminário Educação: a renovação do Fundeb em pauta, realizado em abril de 2019 na sede da Fundação em São Paulo)
“Assim como o SUS (Sistema Unificado de Saúde) está comprovando ser essencial durante a pandemia, o Brasil precisa urgentemente de um sistema unificado de educação, em que o papel de cada ente federativo e cada órgão público esteja mais claro, assim como o financiamento de todo o sistema. Para isso, é fundamental o envolvimento de governadores e prefeitos, secretários estaduais e municipais, senadores e deputados e também das autoridades do MEC e do governo federal. Infelizmente, o MEC não tem feito nenhuma articulação nesse sentido”, criticou Cruz.
“O Brasil é um país enorme, diverso e extremamente complexo. Nada do que estamos dizendo aqui é novidade, mas, com o coronavírus, os nervos estão mais expostos e o quadro, mais dramático. Falta uma liderança que coordene e articule soluções. O governo federal não está fazendo esse papel”, concordou Cardoso.
“A crise da educação, se não for bem conduzida, carregará diversas outras crises junto com ela, como na segurança pública, na prevenção à saúde etc. Como a pandemia atinge todo o mundo, ministros e ex-ministros da educação de mais de 80 países têm dialogado em busca de saídas. O Brasil está ausente desse debate global”, concluiu De Bonis.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.