Com o prazo do Brexit se esgotando, quais os cenários para a Europa e o Reino Unido?
“O Parlamento britânico está tão dividido hoje que não podemos confiar nem no governo nem na oposição para dirimir as consequências de um Brexit sem acordo”, disse o cientista político inglês Michael Leigh.
Quais os cenários para a Europa com a saída do Reino Unido, um dos principais países do bloco, em princípio marcada para 31 de outubro, com ou sem acordo? “É difícil prever, mas os especialistas veem três possibilidades: relançamento do projeto europeu (puxado por França e Alemanha), desintegração e colapso da UE a médio prazo (como resultado do exemplo britânico) ou consolidação do bloco (sem que haja maiores avanços ou recuos). Na minha opinião, a hipótese de consolidação não está num distante terceiro lugar”, disse o cientista político inglês Michael Leigh em palestra na Fundação FHC, sugerindo que este último cenário lhe parece ser o mais provável.
“(Emmanuel) Macron terá sucesso em relançar a Europa? Os novos líderes europeus se erguerão à altura do desafio que têm pela frente? A UE se provará resiliente? Trago a vocês mais perguntas do que respostas.”
Michael Leigh, cientista político, foi diretor-geral da Comissão Europeia (órgão executivo da UE), onde trabalhou por mais de 25 anos. É PhD pelo Massachusetts Institute of Technology.
Leigh, que foi diretor-geral da Comissão Europeia (órgão executivo da União Europeia), onde trabalhou por mais de 25 anos, detalhou os 3 cenários:
1. Relançamento do projeto europeu
Frequentemente defendida pelo presidente francês, Emmanuel Macron, desde sua vitoriosa campanha eleitoral em 2017 e em vários discursos posteriores, a ideia de relançar a UE significaria, segundo o palestrante, construir uma “Europa mais protetora, com medidas voltadas para atender às necessidades e desejos das ‘vítimas da globalização’ no continente e, ao mesmo tempo, preservar a democracia e seus valores fundamentais”.
“Trata-se de uma agenda ambiciosa que, por um lado, incluiria medidas como uma política comum de asilo e proteção de fronteiras mais rígida e, por outro, buscaria fortalecer o Estado de Direito, talvez por meio de uma agência para monitorar sua observância nos 27 países-membros”, explicou. A visão de uma Europa renovada e mais sensível aos anseios de seus habitantes defendida por Macron esbarra, no entanto, em diversos obstáculos.
“A adoção dessa agenda exigiria que as instituições da UE, incluindo o Parlamento Europeu e a própria Comissão Europeia, tivessem uma nova liderança de alto nível comprometida com a ideia de uma Europa forte e integrada, o que não parece ser o caso”, disse. Ele também citou a oposição de políticos nacionalistas como o húngaro Viktor Orban (premiê), a francesa Marine Le Pen (líder da Frente Nacional, segunda colocada nas eleições de 2017) e do britânico Nigel Farage (líder do Brexit Party ou Partido de Independência do Reino Unido), entre outros.
Além, claro, das dificuldades vividas por Macron em seu próprio país, onde enfrentou durante meses os protestos dos chamados “coletes amarelos”, e do declínio político de Angela Merkel, também defensora ferrenha da UE, que já anunciou que deixará o cargo de chanceler da Alemanha em 2021, quando termina seu quarto mandato. França e Alemanha são os países que, historicamente, lideram o processo de integração europeu.
2. Desintegração ou colapso da UE
Segundo o palestrante, a legitimidade da União Europeia está em xeque diante do fortalecimento do nacionalismo em diversos países europeus (além do Reino Unido) e da crise do multilateralismo no mundo. Dois pilares da integração europeia, a moeda única (Euro) e a livre circulação de pessoas (Acordo de Schengen), correm risco. Para Leigh, não há clima, no momento, para aprovar nenhuma medida consistente no sentido de uma maior ou melhor integração, “até porque qualquer novo tratado teria de ser aprovado em referendos por todos os países-membros”.
“Não são poucos os especialistas que preveem que a União Europeia entrará em colapso no prazo de até 20 anos. George Soros (megainvestidor norte-americano de origem húngara), por exemplo, costuma dizer que a UE caminha sonolentamente para o esquecimento”, concluiu.
Ainda segundo o palestrante, a lembrança das duas guerras que assolaram a Europa (e o mundo) no Século 20 já está apagada na memória da maioria das pessoas. “Estou convencido de que a falta de conhecimento histórico e geográfico da tragédia vivida no século passado contribui para a situação que vivemos hoje. Isso vale tanto para meu filho de 14 anos como para os novos líderes políticos europeus”, disse. A destruição causada pelas duas grandes guerras impulsionou a integração do continente, como meio para evitar um novo conflito.
3. Consolidação
A terceira alternativa consistiria na consolidação da UE mais ou menos como é hoje, no máximo com pequenos passos incrementais em áreas como controle de fronteiras externas, investimento em pesquisa e inovação e medidas de proteção ao meio ambiente e combate ao aquecimento global, entre outras.
“A opção de preservar o que existe hoje, sem grandes avanços nem retrocessos, não deve ser descartada. Na prática, significar manter um certo nível de cooperação entre os países-membros, mas descartar uma integração mais completa e profunda”, disse.
Divórcio inevitável?
O palestrante evitou fazer prognósticos sobre os impactos do Brexit no próprio Reino Unido, devido à profunda crise política que o país atravessa desde que, em 2016, pouco mais de 50% dos britânicos que foram às urnas optaram pela saída da UE. “Sempre achei que conhecia bem meu país, mas já não estou tão confiante nisso. Tudo por lá anda muito emocional”, comentou Leigh, que criticou tanto o governo (liderado pelos conservadores) como a oposição (trabalhistas e liberais) pela falta de visão, liderança, pragmatismo e união.
Leigh disse discordar da ideia de que o divórcio do Reino Unido da Europa seria algo inevitável, como sustentam os chamados “eurocéticos”, que sempre viram mais perdas que ganhos na integração com a União Europeia e se posicionaram desde logo contra o abandono da libra em favor do euro, quando a moeda europeia foi criada na virada deste século. “Estou convicto de que as quase três décadas de vida da UE (fundada em 1993) resultaram em grandes benefícios tanto para os habitantes da Europa continental como para os insulares britânicos e o resto do mundo”, disse.
Ele também não compartilha da tese de que o Reino Unido seria como um cavalo de Troia inserido no bloco europeu para, por fim, destruí-lo. “Pelo contrário. A influência britânica foi decisiva para moldar algumas políticas de cunho liberal que fazem parte do coração da UE. Margaret Thatcher (premiê britânica entre 1979 e 1990) foi uma das grandes defensoras da ideia de um mercado comum europeu e teve participação decisiva na definição de seu bem-sucedido formato”, disse. O Reino Unido ingressou na Comunidade Econômica Europeia, antecessora da União Europeia, em 1973.
Sobrevivência do Reino Unido
O cientista político disse temer pela própria sobrevivência do Reino Unido, formado por Inglaterra, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales. “A situação mais delicada é a da Irlanda do Norte, cuja fronteira com a Irlanda (que continuará sendo um membro da UE) está aberta há mais de 20 anos, sem que ocorram os distúrbios e a violência vividos no passado (devido ao conflito entre as populações protestante e católica). Se o Brexit resultar em caos na fronteira e puser em risco a qualidade de vida dos habitantes da parte norte da ilha, quais serão as consequências? Não é absurdo imaginar que impulsione o movimento pela unificação das duas Irlandas e reative o conflito na região”, disse.
Também a Escócia, cuja população votou majoritariamente a favor da permanência do Reino Unido na UE no plebiscito de 2016, poderá questionar o Brexit. “Se a Irlanda do Norte tiver um status especial (em relação à UE), os escoceses poderão exigir o mesmo e, eventualmente, questionar a própria continuação da Escócia como parte integrante do Reino Unido”, afirmou Leigh. Em 2014, os escoceses realizaram um plebiscito sobre a independência da Escócia e, naquela ocasião, a maioria preferiu continuar no Reino Unido, mas isso pode mudar e levar a uma nova consulta sobre o tema.
Mesmo deixando claras suas preocupações, Leigh disse acreditar que as circunstâncias políticas e econômicas levarão o novo premiê britânico, Boris Johnson, a retomar negociações com a Europa em curto espaço de tempo, ainda que ele venha a cumprir a promessa de abandonar a UE sem acordo em 31 de outubro,.
“Se eu fosse Boris Johnson, desejaria continuar no cargo de premiê por vários anos. Para isso, terá de vencer as próximas eleições parlamentares. É do interesse dele construir uma relação construtiva com a Europa para evitar problemas ainda maiores para a economia britânica. O Reino Unido até pode abandonar a UE, mas sempre precisará manter laços estreitos com a Europa”, concluiu Leigh.
Polêmico político britânico frequentemente comparado ao norte-americano Donald Trump, Johnson foi escolhido pelo Partido Conservador para chefiar o governo em julho deste ano, após renúncia da então premiê Theresa May (do mesmo partido), motivada justamente pela confusão em torno do Brexit.
Logo após assumir, ele solicitou à rainha Elizabeth a suspensão do Parlamento por várias semanas (para impedir que a Câmara dos Comuns tomasse alguma decisão que pudesse atrasar o Brexit), medida que foi considerada ilegal e nula pela Suprema Corte do país. Desde então, a crise política se aprofundou e não está descartada a antecipação de eleições gerais, previstas para maio de 2022.
“O Parlamento britânico está tão dividido hoje que não podemos confiar nem no governo nem na oposição para dirimir as consequências de um Brexit sem acordo (hard Brexit), cujos impactos são desconhecidos e imprevisíveis tanto para o Reino Unido como para a UE”, concluiu o palestrante.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.