Balanço de um ano de Emmanuel Macron: ‘Derrubando tabus’
“Não sei se as reformas terão o efeito de acelerar a economia, mas os primeiros dados indicam que o investimento saiu do vermelho e começa a entrar no verde”, falou Pascal Perrineau, professor do Sciences Po.
“Macron tem revelado enorme audácia e capacidade de transgredir e derrubar tabus, algo de que, do meu ponto de vista, a França estava precisando.”
Pascal Perrineau, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po)
Pouco mais de um ano após se tornar o mais jovem presidente da história da França, com apenas 39 anos de idade, o centrista Emmanuel Macron conduz, em ritmo acelerado, reformas que mexem em setores essenciais da vida política, econômica, social e cultural francesa. “É cedo ainda para avaliar os resultados, mas nenhum outro presidente francês realizou tantas reformas em um ano”, disse o cientista político Pascal Perrineau, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, conhecido como Sciences Po, no seminário “Balanço de 1 ano da presidência de Emmanuel Macron: a mudança está em marcha?”, realizado na Fundação FHC.
Segundo Perrineau, as reformas, que visam tornar o país mais dinâmico economicamente e sintonizado com as rápidas mudanças do mundo, têm suscitado protestos e manifestações por parte dos diversos grupos atingidos, mas não há, por enquanto, um movimento mais sólido capaz de ameaçar a força e a maioria política do novo presidente. “Não sou adivinho e não sei o que acontecerá nos próximos anos, mas até agora os grupos sociais resistentes às mudanças não se tornaram um movimento político capaz de articular uma oposição mais consistente”, disse o palestrante, que de 1994 a 2013 dirigiu o Centro de Pesquisas Políticas (CEVIPOF), um dos principais centros de estudo da vida política na França e na Europa.
Veja abaixo algumas reformas já realizadas ou em processo de aprovação:
- Lei de moralização da vida política;
- Reformas constitucionais, entre elas a diminuição do número de deputados na Assembleia Nacional Francesa;
- Reforma trabalhista (simplificação do Código de Trabalho, para torná-lo menos rígido e mais adaptável à nova realidade do emprego);
- Reforma tributária (mais detalhes abaixo);
- Reforma do acesso à universidade, da formação profissional e do ensino técnico (o objetivo, segundo o palestrante, é formar jovens mais preparados para o mercado de trabalho atual e reduzir o desemprego entre jovens adultos, superior a 20%);
- Reforma do sistema de seguro-desemprego (ampliou-se o espectro dos beneficiados, mas estabeleceu-se controle mais rígido para evitar abusos);
- Reforma do estatuto da SNCF (empresa ferroviária pública, cujo sindicato é um dos mais fortes do país).
‘Presidente dos ricos?’
Durante a campanha, Macron prometeu reduzir a carga tributária para aumentar o poder aquisitivo das classes média e baixa, por um lado, e liberar mais recursos das empresas para investimentos, por outro. Nos últimos meses, o governo isentou 80% da população da Taxa de Habitação, mas criou polêmica ao acabar com o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), “agradando” ora a direita ora a esquerda.
Ao eliminar o IGF, a intenção é atrair investidores e desestimular a fuga de milionários franceses para outros países (cerca de 60 mil desde 2000, segundo a New World Wealth, sediada na África do Sul). Acusado por alguns críticos de agir como “o presidente dos ricos”, Macron rebateu: “Não podemos criar empregos sem empresários.” Leia reportagem sobre o assunto publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo.
“Não sei se as reformas terão o efeito de acelerar a economia e reduzir o desemprego (9,5%), mas os primeiros dados indicam que o investimento saiu do vermelho e começa a entrar no verde”, disse Perrineau. Embora seja a 2ª maior economia da União Europeia e a 5ª do mundo, com alto nível de vida, a França passou por um período de quase estagnação econômica entre 2012 e 2015 (crescimento de 0% a menos de 1%) e só a partir de 2016 iniciou uma lenta recuperação. A expectativa de crescimento em 2018 é de cerca de 2%.
Apoio a Macron oscila
A tabela acima mostra a popularidade dos antecessores de Macron (desde Charles De Gaulle, no final dos anos 50) no dia em que foram eleitos (percentual de votos no segundo turno) e um ano após a posse. O socialista François Hollande (2012-2017) perdeu 32 pontos e tinha apenas 29% de apoio após um ano. Já o republicano Nicolas Sarkozy (2007-2012) perdeu 30 pontos e tinha 35%.
A pesquisa acima, realizada em abril deste ano, mostra a evolução do apoio ao presidente desde maio de 2017, quando obteve 66% dos votos. Em outubro, o percentual de apoiadores havia caído a 44%, em janeiro (com a aceleração das reformas) subiu para 53%, mas voltou a 45% recentemente. O percentual de desaprovação partiu de 30%, chegou a 55%, caiu para 45% e voltou a 55%. “Há uma oscilação razoável da percepção em relação a Macron, o que preocupa, mas mas não houve, até o momento, uma deterioração contínua e consistente como aconteceu, por exemplo, no caso de Hollande, que só foi ladeira abaixo”, disse o cientista político.
A mesma pesquisa mostra que, para os franceses, nenhum de seus oponentes, se estivesse à frente do governo, estaria realizando um trabalho melhor ou equivalente ao que está sendo feito por Macron.
Reversão do pessimismo
Apesar de haver ainda muitas dificuldades e incertezas pela frente, Pascal Perrineau afirmou que a surpreendente eleição de Macron teve o poder de reverter, ao menos momentaneamente, a tendência à autodepreciação, que ele atribuiu ao “narcisismo ferido” dos franceses. “Nos últimos anos, os franceses, em geral muito orgulhosos de sua terra e sua cultura, andavam muito pessimistas sobre as perspectivas do país, quase detestando a si mesmos. Essa ‘doença’ começa a dar sinais de que está finalmente cedendo”, disse. No levantamento apresentado, 39% dos franceses disseram acreditar que, em quatro anos, a situação do país estará melhor; para 32%, estará igual e, para 29%, pior.
Ampla maioria parlamentar
Se, por um lado, o governo enfrenta oposição de parte da sociedade francesa, resistente a mudanças, na Assembleia Nacional, tem folgada maioria. As eleições parlamentares se realizam algumas semanas depois da presidencial e sofrem grande influência do candidato vencedor. O movimento En Marche (fundado por Macron em abril de 2016, pouco mais de um ano antes da eleição que o consagrou) apresentou uma lista de candidatos da sociedade civil, metade homens metade mulheres, sem experiência política anterior. Apesar da alta abstenção, o movimento conseguiu eleger 313 dos 577 deputados. “Os eleitos são em sua imensa maioria neófitos em política e sabem muito bem quem foi que os fez deputados”, disse.
A França tem um primeiro-ministro, mas o presidente reúne amplos poderes, não apenas em relação à política externa, mas também à interna, e seu mandato dura cinco anos, com direito a uma reeleição. “Daí a pressa em fazer as reformas para que elas surtam efeito antes das eleições de 2022”, disse Perrineau.
Quebra da bipolaridade esquerda vs. direita
Segundo o professor da Sciences Po, Macron soube personificar e cristalizar um desejo de inovação política que há anos os franceses acalentavam. “Já há bastante tempo, o que vemos não é apenas ceticismo, mas um verdadeiro ódio à classe política e às instituições partidárias tradicionais. Ao mesmo tempo, os franceses, que têm uma fixação histórica pelo espetáculo da política, demonstravam alto grau de interesse pela eleição presidencial (de 2017). Em Paris, se você quer animar um jantar basta falar de política. Como esse aparente paradoxo — desconfiança vs. engajamento — se refletiu no resultado das urnas?”, perguntou.
No primeiro turno (abril de 2017), cerca de 22% dos eleitores se abstiveram, ou seja, optaram por “sair do sistema” enquanto outros 41% votaram em candidatos de protesto, seja em em Marine Le Pen (ultra-direita, obteve 21% dos votos) ou Jean-Luc Mélenchon (extrema-esquerda, 20% dos votos). Apenas 26% votou nos candidatos dos partidos Socialista (Benoît Hamon) e Republicano (François Fillon), que dominaram a política francesa por décadas. Nenhum dos dois foi ao segundo turno.
“O que poucos de nós percebemos foi a inovação chegar. Se a democracia nos desagrada, por que não tentar outra coisa? Macron compreendeu esse desejo de inovação radical e apostou na criação de um movimento que quebrou o sistema bipolar de partidos, dominante na política francesa por décadas”, explicou o cientista político. “Quando ele anunciou sua candidatura, ninguém acreditou que teria sucesso: ‘Ah, ele é pequenininho, não tem partido, não vai longe’, diziam.
Macron lançou uma candidatura independente do sistema político tradicional, soube aproveitar as oportunidades que surgiram, ganhou força e chegou em primeiro lugar no 1º turno (24% dos votos), vencendo a disputa final contra Le Pen (66% contra 34%). “Ele mostrou o quão importante, em política, é acreditar em si mesmo”, disse Perrineau.
‘Nova clivagem política’
Segundo o estudioso, a última eleição definiu uma nova clivagem política na França. “Durante a campanha, Macron dizia não ser ‘de esquerda ou de direita’, mas ser ‘da esquerda e da direita’ favoráveis a uma atitude de abertura e ousadia da França em relação à globalização. Já Marine Le Pen (segunda colocada) dizia não ser ‘nem de esquerda nem de direita, mas francesa’. Estabeleceu-se então uma nova clivagem, entre uma França mais aberta à Europa e ao mundo e uma França mais voltada a si mesma”, explicou.
“A esquerda e a direita não morreram, essa dicotomia surgiu em 1789 (Revolução Francesa) e, desde então, é o principal produto de exportação francês. Só que perde cada vez mais sentido diante de desafios complexos como a globalização, o aquecimento global, a construção europeia e outros temas contemporâneos”, afirmou o professor da Sciences Po.
“Tendo horror ao vácuo, a política experimenta uma nova divisão ideológica, à qual estudo há mais de 20 anos. É uma nova clivagem entre setores sociais que consideram que temos (os franceses) mais a ganhar com a abertura econômica, política, social e cultural para o mundo e aqueles que acreditam que chegou a hora de voltar a um profundo protecionismo econômico, político e cultural”, continuou.
“Em 92, a maioria dos franceses disse sim ao Tratado Maastricht, pedra fundamental da União Europeia. Mas, em 2005, por ocasião de consulta sobre a elaboração de uma constituição europeia, a maioria optou pelo não. Nas duas ocasiões, houve ‘sins’ de direita e de esquerda e ‘nãos’ de esquerda e de direita. Isso foi macronismo antes da hora”, disse o palestrante. Em 7 de maio de 2017, o presidente recém-eleito comemorou sua vitória diante do Museu do Louvre, ao som do hino da UE e de uma mistura de bandeiras da França e da UE.
Ainda segundo Perrineau, Macron iniciou sua campanha a partir de um espaço político mais ao centro, mas conquistou parte da esquerda, ao defender bandeiras liberais, no campo da moral, como o direito de casais homossexuais adotarem filhos, e agregou também parte da direita, ao prometer (e tocar adiante) reformas difíceis para reduzir o gasto público e aumentar a competitividade da economia. “Hoje, não há dúvida de que ele representa uma nova realidade política com força para moldar o futuro do país”, disse.
Horizontal na campanha, vertical no poder
Perrineau destacou também outro aspecto surpreendente do fenômeno Macron, que a seu ver responde a um aparente paradoxo; o desejo por uma democracia mais horizontal, contemporânea, digital, de um lado, e por uma liderança política verticalizada, de caráter imperial, “jupiteriana”, de outro. “Ele apelidou sua startup política de EM, as iniciais de seu nome. Não foi à toa. Ao mesmo tempo que adora debater, dialogar e está sempre disposto a convencer qualquer pessoa que encontra pela frente, deixa claro que não existe outro chefe além dele. Ele de fato encarnou a autoridade presidencial”, disse.
“Isso pode parecer contraditório, mas pesquisas na Europa mostram que, ao mesmo tempo que existe uma demanda por mais horizontalidade, como respeito aos direitos do indivíduo, também há uma demanda pelo exercício da autoridade”, afirmou o professor.
“Na política, a personalidade conta muito. Macron percebeu que existe o corpo real do monarca (ou do presidente) e o corpo simbólico. Até o momento, ele soube unificar essas duas dimensões”, concluiu.
No primeiro ano de governo, Macron recebeu o presidente russo, Vladimir Putin, no Palácio de Versalhes com toda pompa e circunstância, enviando um claro sinal de que, assim como seu poderoso colega no Kremlin, sabe jogar com a simbologia “quase imperial” do cargo presidencial.
‘Sonho europeu’
No plano externo, o grande desafio é o relançamento da União Europeia, em parceria com a Alemanha, dificultado, no entanto, pelo enfraquecimento da veterana chanceler alemã, Angela Merkel. Em setembro de 2017, Merkel conquistou um 4º mandato à frente da maior economia europeia, mas não obteve maioria parlamentar e passou meses negociando uma aliança com os social-democratas, considerada frágil. “Macron sempre diz que o ceticismo europeu cresce em todos os países do continente porque a Europa abriu mão dos sonhos de paz e prosperidade e se tornou muito tecnocrática. Ele quer resgatar esses sonhos”, disse Perrineau.
Quer também recuperar o protagonismo francês na cena mundial. Embora tenha estabelecido uma relação pessoal amistosa com o presidente norte-americano, Donald Trump, fez fortes críticas a suas políticas isolacionistas, como a retirada dos EUA do Acordo do Clima de Paris (2015) e medidas comerciais unilaterais. Em discurso no Congresso dos EUA, usou a expressão “Make our planet great again”, em contraponto ao slogan de campanha de Trump (“Make America great again”).
‘Brasileiros também terão imaginação política?’
Pascal Perrineau evitou comentar a política brasileira, mas lembrou que, aqui como na França, há um desgaste em relação à política tradicional e um forte desejo de mudança. “Temos regimes políticos muito diferentes, mas será que os brasileiros, assim como os franceses há um ano, darão prova de imaginação política e elegerão um homem ou uma mulher capaz de encarnar essa demanda por inovação?”, perguntou.
“A história que Pascal está nos contando também é nossa história, apesar das particularidades de cada país. Daqui a pouco mais de cinco meses, os brasileiros tomarão uma decisão que definirá nossas chances no futuro próximo e a médio prazo”, disse Fernando Henrique Cardoso, em sua breve fala de agradecimento ao palestrante. “No Brasil também há um desejo de renovação, mas não se reinventa a política sem que ela encarne em pessoas. Também não basta apenas ter ideias. Elas precisam ser defendidas de forma responsável e levadas adiante com vigor por um novo líder, eleito pelo povo. A eleição é o momento adequado para esse novo recomeço”, concluiu o ex-presidente.
É importante lembrar, como já foi dito neste texto mais acima, que a sociedade francesa tem demonstrado descontentamento em relação ao sistema político há bastante tempo e só no ano passado parece ter encontrado uma possível resposta àquela demanda latente (só o tempo dirá se Macron de fato responderá a toda essa expectativa). Não podemos ser ingênuos de achar que, no caso brasileiro, a renovação está próxima, considerando que, a menos de seis meses das eleições de outubro, não surgiram alternativas políticas com discurso consistente e apoio político.
Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.