A extrema direita na América Latina e a contestação global ao script liberal
Recebemos dois cientistas políticos para discutir as principais causas da polarização e dos processos de ‘democratic backsliding’ na América Latina.
O grande desafio para aqueles que defendem o modelo político, social e econômico liberal – e não existe um só, mas vários modelos liberais, a depender da ênfase maior ou menor no indivíduo ou no coletivo – é encontrar e pôr em prática soluções liberais para os problemas que afligem as sociedades contemporâneas.
A dificuldade é que, devido à crescente polarização política em muitos países, a centro-direita tem se movimentado mais para a direita e a centro-esquerda tem adotado posições mais à esquerda, em especial na Europa, ou mais populistas, em particular na América Latina, esvaziando o centro político, em geral mais afeito ao liberalismo, disse Tanja A. Börzel, diretora do Cluster de Excelência “Contestations of the Liberal Script”, da Berlin University Alliance.
“Apesar de todos os problemas, os sistemas democráticos que surgiram nos anos 1970 e se espalharam pelo mundo, inclusive pela América Latina, nas décadas seguintes (fenômeno conhecido como terceira onda democrática), têm sido capazes de incorporar setores da sociedade que haviam sido historicamente excluídos, o que provocou uma reação de atores da extrema direita. O atual avanço da extrema direita está mais relacionado a transformações culturais do que a questões econômicas”, disse Cristóbal Rovira Kaltwasser, professor titular no Instituto de Ciência Política da Universidad Católica de Chile.
Os dois cientistas políticos – ela alemã, ele chileno – se encontraram no auditório da Fundação FHC, em São Paulo, para apresentar suas recentes pesquisas sobre as principais causas da polarização e o aprofundamento dos processos de contestação do script liberal que tiveram início na década de 2010, em uma perspectiva comparativa.
Extrema direita avança rapidamente na América Latina, alerta chileno
Diferentemente da Europa, onde movimentos de extrema direita como a Frente Nacional francesa vem ganhando terreno paulatinamente há mais de duas décadas, na América Latina a extrema direita não conseguiu ser eleitoralmente competitiva nas primeiras décadas após a redemocratização (a partir dos anos 1980). Mas isso está mudando rapidamente.
“Há apenas dois anos, eu, como muitos aqui que estudam a política latino-americana, nem sabia quem era Javier Milei. De repente ele estava no segundo turno da eleição argentina e pouco depois foi eleito presidente. O mesmo aconteceu com Jair Bolsonaro em 2018. Na Europa, a extrema direita vem se fortalecendo há pelo menos 20 ou 30 anos, na América Latina é um fenômeno muito mais rápido”, disse o pesquisador do COES (Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social).
Em sua apresentação, Cristóbal comparou as plataformas político-ideológicas de três líderes latino-americanos que chegaram ao governo de seus respectivos países – o brasileiro Jair Bolsonaro (2019-2022), o salvadorenho Nayib Bukele (presidente de El Salvador desde 2019) e o argentino Javier Milei, que assumiu a Casa Rosada em dezembro de 2023 – e de três movimentos de extrema direita que estão ganhando tração no Chile (com o oposicionista José Antonio Kast, do Partido Republicano), no Uruguai (Partido Cabildo Abierto) e no Peru (Renovación Popular).
“Todos esses atores políticos são profundamente conservadores na dimensão moral e defendem políticas do tipo mano dura, que admitem deixar de lado o estado de direito para enfrentar a criminalidade”, explicou o diretor do Ultra-Lab (Laboratorio para el Estudio de la Ultraderecha).
“A falta de segurança crônica que assola a região é um tema complicado para a esquerda, que historicamente não tem políticas adequadas para lidar com o problema da criminalidade e da violência. A extrema direita tem sido muito eficiente em politizar esse tema central para a vida das pessoas. Não é à toa que Bukele, com sua política mano dura, está se tornando uma referência em toda a América Latina”, disse Cristobal.
Por serem também anticomunistas e anti-chavistas, esses atores assumem um discurso em favor de políticas neoliberais, mas quando no governo frequentemente flertam com o populismo, distanciando-se do liberalismo econômico, como aconteceu com Bolsonaro.
No Chile, aparece com vigor um tema que ainda não é tão forte no restante da América Latina: a preocupação com o crescente número de imigrantes vindos de outros países da região, sobretudo da Venezuela.
No Brasil, além da defesa de políticas de mano dura e dos valores tradicionais, a ultradireita incorporou o tema ambiental, adotando uma postura de negação da mudança climática. Em nome da soberania nacional, fez do ambientalismo, em particular das ONGs ligadas à preservação da Amazônia, um dos seus alvos.
O México é um caso à parte, pois o atual presidente, Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO), embora seja um líder historicamente de esquerda, adotou uma pauta de costumes mais conservadora desde que chegou ao governo em 2018, dificultando o avanço de grupos políticos mais à direita. Mas isso pode mudar nos próximos meses e anos, pois o país irá às urnas em junho próximo, quando duas mulheres, Claudia Sheinbaum, que governou a Cidade do México e é apoiada por AMLO, e a oposicionista Xóchitl Gálvez, devem se enfrentar.
De acordo com Cristóbal, não há evidências empíricas de que a maioria do eleitorado latino-americano se identifique visceralmente com pautas de extrema direita, como a proibição do aborto ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas a crise dos partidos de direita tradicionais, que vem perdendo discurso e apoio político, está empurrando os eleitores conservadores para a extrema direita.
“Se você é um eleitor mais conservador e os partidos de direita mainstream estão fracos e não conseguem derrotar a esquerda nas urnas, qual é a alternativa? Você vai para a extrema direita, mesmo que não goste de todas as ideias defendidas por ela”, disse o chileno, que recentemente publicou o livro “Riding the Populist Wave: Europe´s Mainstream Right in Crisis”, em coautoria com Tim Bale (Cambridge University Press, 2021).
Modelo liberal deve equilibrar autodeterminação individual e coletiva, diz alemã
Segundo Tanja A. Börzel, professora da Freie Universität Berlin, algumas pessoas tendem a reduzir o liberalismo à ideia de autodeterminação individual acima de tudo, mas o liberalismo exige um balanço entre a autodeterminação individual e a autodeterminação coletiva, possibilitando diferentes variedades de scripts liberais. “Ambas são importantes e existe uma tensão natural entre elas. A forma como essa tensão é resolvida determina o tipo de script que cada sociedade terá”, disse.
“O script deixa de ser liberal quando coloca a autodeterminação coletiva acima de tudo e o indivíduo passa a ser subordinado ao coletivo, como acontece no comunismo ou no fascismo, e também em regimes fundamentalistas religiosos”, explicou.
Já o hiperindividualismo – como propõe o novo presidente ultraliberal da Argentina, Javier Milei – também pode ser um risco para a sociedade.
“Com a polarização, na Europa, a centro-esquerda está se afastando do centro e defendendo ideias mais à esquerda. Essa tendência de radicalização no lado esquerdo do espectro político-ideológico ainda não é um fenômeno tão dramático do que do lado direito, mas está acontecendo e preocupa”, disse a autora de “Effective Governance under Anarchy: Institutions, Legitimacy, and Social Trust in Areas of Limited Statehood”, em coautoria com Thomas Risse (Cambridge University Press, 2021”).
“A contestação ao script liberal sempre existiu, não é algo novo. O que mudou nos últimos 15 anos é o contexto de crescente polarização. Ideias não liberais estão presentes tanto na extrema direita como na extrema esquerda. Para conter esse processo, é necessário investir em políticas que possam unir as pessoas, em vez de dividi-las ainda mais”, continuou a cientista política.
Tanja concordou com Cristóbal que o aparecimento e o fortalecimento da extrema direita na América Latina demorou para acontecer, em relação à evolução do fenômeno na Europa e em outras regiões, mas alertou que ele já é uma realidade e atingirá fortemente o continente.
“Até o momento, as instituições democráticas têm resistido e isso é muito importante. Mas resiliência não deve ser sobre voltar ao status quo anterior e, sim, sobre capacidade de mudança. Mudança no sentido de que os princípios liberais sejam mantidos, mas que a democracia liberal se mostre capaz de responder às dores da sociedade tanto à esquerda e à direita, evitando assim que o script liberal seja destruído”, concluiu a palestrante.
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.