Debates
09 de junho de 2016

A Europa em sua hora mais grave

“Com a criação da União Europeia e, antes, da Comunidade Econômica Europeia, tivemos décadas de paz e prosperidade. Se isso se perder, ninguém sabe o que será o dia seguinte”, falou Paulo Portas, que foi vice-primeiro ministro e ministro de Estado de Portugal.

“Se olharmos para a Europa de todos os pontos cardeais possíveis, a palavra que se encontra em primeiro lugar é crise. Por outro lado, se a União Europeia se perder ou estiver em risco, ninguém sabe o que será o dia seguinte.” (Paulo Portas, foi vice-primeiro ministro e ministro de Estado de Portugal).

A União Europeia (UE), fundada em 1993 e formada atualmente por 28 Estados-membros independentes, vive sua terceira década de vida em um clima de profunda incerteza causado por cinco motivos principais: a possibilidade de saída do Reino Unido, a relação complicada com a Rússia, o terrorismo islâmico atuante dentro de seu próprio território, a crise dos refugiados e a dificuldade de se adaptar à globalização.

“Posso parecer pessimista, mas sou apenas realista”, disse o jurista, jornalista e político português Paulo Portas em palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. Portas foi vice-primeiro ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal de 2011 e 2015 e presidente do CDS, mais conhecido como Partido Popular, inspirado pela democracia cristã e de tendência liberal, por 16 anos. Entre 2002 e 2005, foi ministro da Defesa.

1 – O Reino Unido e a caixa de Pandora europeia

Em 23 de junho, o Reino Unido, constituído por Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte, realizará um referendo para consultar a população sobre a seguinte questão: O Reino Unido deve permanecer como membro da União Europeia ou deixar a União Europeia? Para Paulo Portas, um voto pelo ‘não’ poderá resultar na “abertura da mais sensível de todas as caixas de Pandora da Europa, que é a questão do nacionalismo e das nações sem Estado”.

“A Inglaterra tem a tendência de sempre dizer não a uma maior integração europeia, enquanto a Escócia costuma dizer sim. Se a maioria dos britânicos optar por sair da UE, a Escócia terá de deixar o Reino Unido para seguir no bloco europeu?”, perguntou o político português.

“O que dirá um catalão, um basco ou um lombardo se os escoceses declararem independência em relação ao Reino Unido? Também se considerarão no direito de fazer o mesmo na Espanha ou na Itália?”

Em 2014, houve um referendo sobre a independência da Escócia: 55,3% dos escoceses optaram por continuar no Reino Unido e 44,7% votaram pela independência.

A fragmentação de alguns países europeus, desejo alimentado por movimentos separatistas, alguns deles com histórico de violência e terrorismo, é um dos maiores tabus dentro da União Europeia, que sempre se posicionou de forma contrária à revisão das atuais fronteiras do velho continente.

Portas criticou a realização do referendo no Reino Unido, uma promessa de campanha do atual primeiro-ministro David Cameron (Partido Conservador), favorável à permanência do país na UE. “O Reino Unido tem o melhor dos mundos, pois é membro da UE mas manteve sua própria moeda, além de preservar outros aspectos de sua soberania. Quando se tem uma solução razoável, por que radicalizar?”, disse.

Além de acender a chama do nacionalismo, uma eventual saída do Reino Unido da UE poderá criar um novo foco de crise econômica no bloco europeu, já atingido pelas dificuldades da Grécia e de outros países nos últimos anos. “Sem dúvidas cai uma pedra sobre o mercado europeu porque a economia britânica é uma das mais fortes da UE”, explicou o político português.

No próprio Reino Unido, apoiadores do ‘sim’ (permanência na UE) alertam que a economia britânica pode ser prejudicada por um desligamento do bloco. Com 500 milhões de habitantes (7,3% da população mundial), a UE tem cerca de 20% do PIB (Produto Interno Bruto) global. O Reino Unido tem cerca de 60 milhões de habitantes e alterna com a França o posto de segunda maior economia europeia. A Alemanha está isolada em primeiro lugar.

Para Paulo Portas, “não há atualmente na Europa lideranças políticas com capacidade de dizer ‘se vocês querem sair, tudo bem, mas nós vamos seguir avançando’”. No passado, líderes como o chanceler alemão Helmut Kohl e o presidente francês François Mitterrand impulsionaram a integração europeia apesar da resistência do Reino Unido, tradicionalmente “eurocético”.

2 – ‘A Rússia não vai mudar’

“Não escolhemos nossos vizinhos, só escolhemos nossos aliados”, disse Paulo Portas ao falar sobre a difícil relação da União Europeia com seu vizinho gigante, a Rússia, o maior país do planeta em termos geográficos. Nos últimos anos, essa relação ficou ainda mais complicada após a anexação da Crimeia (ex-território ucraniano) pelo governo do presidente Vladimir Putin em 2014. Complicou-se também pelo apoio velado do governo russo aos separatistas do leste da Ucrânia e pelo envolvimento russo na guerra da Síria do lado do ditador, Bashar al-Assad.

De acordo com ex-ministro da Defesa português, a UE deveria ter como prioridade a aproximação com a Rússia, apesar das diferenças que remontam a séculos. “A União Soviética foi apenas um intervalo, que durou 70 anos e terminou no início dos anos 1990. Já a Rússia é milenar e será sempre de alguma maneira imperial, centralista e autocrática. Do contrário, se desintegra, pois tem mais de 90 nacionalidades”, explicou.

“Nós não vamos mudar a Rússia, então a pergunta pertinente é ‘precisamos desenvolver uma relação estável com uma Rússia que é diferente de nós?’ Se, em 30 anos, não houver mais uma única superpotência, os Estados Unidos, no mundo, mas sim um equilíbrio ainda por se definir entre os EUA e a emergente China, quem estará mais perto ou menos distante da Rússia? Creio que a Europa deveria buscar essa posição”, afirmou o palestrante.

Para Paulo Portas, a Rússia é um dos poucos aliados possíveis da Europa no combate ao fundamentalismo islâmico, por ser também profundamente atingida pelo terrorismo dentro de seu território. Segundo ele, se Rússia e União Europeia tivessem trabalhado conjuntamente para impedir o agravamento do conflito na Síria, a atual crise dos refugiados não teria atingido a Europa em cheio.

“Se a Europa tivesse investido politicamente em uma relação estável com a Rússia, teria provavelmente poupado em grande medida a crise dos refugiados e evitado o estabelecimento, na Síria, de um campo de treinamento privilegiado para terroristas decididos a matar civis e a se suicidar em pleno território europeu”, afirmou. Disse considerar um erro a UE ter aberto um confronto com a Rússia por causa da Ucrânia.

“Àqueles que acham que a diplomacia é um exercício de ideologia e que a política externa é o domínio da utopia — limito-me a achar que ela é a defesa dos interesses permanentes dos Estados — diria com toda franqueza que, do ponto de vista estratégico, é preciso encontrar um modus vivendi com a Rússia”, concluiu. Para uma melhor compreensão da Rússia, o palestrante sugeriu a leitura do livro “The Romanovs 1613-1918”, de Simon Sebag Montefiore.

3 – Os refugiados e o colapso do processo decisório da UE

Segundo Paulo Portas, as centenas de milhares de refugiados que nos últimos dois anos têm tentado chegar à Europa vindos principalmente da Síria, mas também de outros países do Oriente Médio, da Ásia Central e do norte da África, expõem a fragilidade do processo decisório e da cooperação entre os países-membros da UE.

“Cerca de 1 milhão de pessoas tentou chegar ao território europeu e não existe nenhum mecanismo para definir com mais clareza quem é refugiado de guerra e teria direito a asilo, quem busca migrar por razões econômicas e quem está se aproveitando da crise para tentar chegar à Europa e instalar uma célula terrorista”, afirmou. Ele também criticou o fato de a UE só reconhecer até o momento de forma oficial a necessidade de abrigar 160 mil refugiados e de, na prática, só ter tido êxito em realocar em torno de 6 mil pessoas nos 28 Estados-membros.

“Isso mostra claramente o colapso do sistema decisório da União Europeia, que deveria tomar como exemplo a bem sucedida cooperação entre a Espanha e o Marrocos para controlar a migração do Norte da África para a Espanha. “Esse problema foi muito grave há uns dez anos, mas foi em parte resolvido com um sistema de cooperação entre as duas partes, que deveria servir de exemplo ao resto da UE”, afirmou.

Ele também criticou a inação europeia diante da morte de milhares de pessoas que tentam atravessar o Mar Mediterrâneo rumo à Europa. “A Europa é uma união em torno de valores ou não? Não podemos assistir impotentes a notícias terríveis como esta sem uma ação coordenada”, disse.

4 – O terror dentro de casa

A ausência de cooperação entre os países europeus também dificulta o combate a um novo tipo de terrorismo que ameaça as principais cidades europeias: aquele praticado por jovens que, mesmo tendo nascido em território europeu e possuindo cidadania europeia, decidem aderir a grupos fundamentalistas, viajar para países em conflito para serem treinados e, depois, retornar à Europa para praticar atentados contra civis em pleno território europeu.

“É muito preocupante que haja uma geração de jovens europeus disposta a viajar para a Síria ou outro país em guerra para aprender a matar e, depois, se suicidar. O problema não é apenas que sejam colocadas bombas e realizados atentados em nossas cidades, mas que os terroristas sejam europeus. De segunda, terceira ou quarta geração de migrantes, muçulmanos, convertidos ou não, isso não importa. Do ponto de vista jurídico, são nacionais de um Estado europeu”, disse.

Esse fenômeno relativamente recente expõe não apenas a dificuldade de integração das comunidades de migrantes nos países europeus mesmo décadas depois dos primeiros migrantes chegarem à Europa como, novamente, a falta de cooperação entre os países-membros. “Diferentemente dos Estados Unidos, que têm várias agências de informação, não necessariamente cooperativas umas com as outras, a Europa não possui um órgão de inteligência europeu. Os serviços de inteligência são vistos como o último reduto de um Estado soberano e, por isso, a última coisa que cada país-membro deseja partilhar com os outros”, afirmou Portas.

Como exemplo, ele citou o caso do autor de um atentado terrorista em Bruxelas neste ano que havia sido detido na Turquia em 2014, quando tentava viajar para a Síria. Na época, o governo turco alertou as autoridades belgas, que não teriam tomado providências nem avisado outros países da UE. “A cooperação em termos de inteligência é muito delicada nas relações entre os Estados. Demanda construção de confiança, investimento em tecnologia e tempo”, afirmou o ex-ministro da Defesa de Portugal.

5 – Ameaçada pela globalização

Paulo Portas também alertou para uma questão mais estrutural que ameaça o futuro da Europa: a resistência do velho continente de se adaptar à globalização e ao rápido processo de digitalização da economia. “A somatória de globalização e digitalização mudou a balança da economia mundial. E a Europa perdeu”, afirmou.

Como exemplo, ele citou o fato de nenhuma das dez maiores empresas globais ser europeia. Lembrou também que a forma de trabalhar está mudando rapidamente enquanto os europeus tentam preservar o status quo de décadas atrás. “Os norte-americanos mudam de emprego, em média, mais de dez vezes durante a vida. E não veem problema em mudar de cidade. Já os europeus mudam de emprego uma ou no máximo duas vezes na vida e raramente admitem se mudar”, disse.

Segundo relatório do Banco Europeu de Investimentos citado pelo palestrante, o sistema econômico norte-americano seria mais competitivo e injusto, mas, por outro lado, o PIB do país tem crescido cerca de 3% ao ano e a taxa de desemprego é inferior a 5%, em comparação ao crescimento econômico inferior a 2% na maioria dos países europeus e às taxas de desemprego de duas a quatro vezes maiores.

“Não querer admitir os efeitos da combinação entre globalização e digitalização e tentar manter a ilusão do emprego permanente e estável e de um sistema de pensões caro e insustentável é mentir para as pessoas”, disse o político português. “Populismo é bom para ganhar eleições, mas não para governar um país.”

Segundo Paulo Portas, “a Europa reage mal à globalização por acreditar que ela põe em risco o trabalho e a segurança econômica de seus cidadãos, mas se esquece de que, do outro lado de suas fronteiras, houve grandes avanços nas últimas décadas e muitas pessoas deixaram de ser pobres”. “A globalização é uma enorme oportunidade, mas a Europa a vê como ameaça.”

União é garantia de paz

Apesar das graves ameaças que rondam a Europa, o palestrante defendeu que a União Europeia é a maior garantia de que o velho continente, descrito como “maravilhoso do ponto de vista da cultura e da civilização”, não volte a viver momentos trágicos como os ocorridos durante o século passado. “O Século 20 europeu é o século dos totalitarismos. Foi na Europa que o comunismo, primeiro, e o nazismo, depois, nasceram, se desenvolveram e cercearam a liberdade de milhões de pessoas, causando milhões de mortes. Temos uma história política marcada pelos conflitos entre Estados-nação e nações sem Estado”, disse.

“Com a criação da União Europeia e, antes, da Comunidade Econômica Europeia, tivemos décadas de paz e prosperidade. Se isso se perder, ninguém sabe o que será o dia seguinte”.

Ele lembrou também que, se o ‘não’ vencer no Reino Unido, a UE pode entrar em um novo período de imprevisibilidade econômica e institucional. Os Estados Unidos, lembrou, também vivem um período de incertezas até a eleição presidencial de novembro, em especial devido à candidatura de Donald Trump, um outsider da política com visões preconceituosas e protecionistas. “Se fosse norte-americano, normalmente votaria no Partido Republicano, mas neste ano escolheria Hillary Clinton porque a política precisa de profissionais”, disse o político português.

“Diante da imprevisibilidade existente neste momento em ambos os lados do Atlântico, sugiro que o Brasil se apresse a resolver seus problemas para sobreviver e se desenvolver num mundo cada vez mais incerto em que todos competem contra todos o tempo todo”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.