Debates
22 de setembro de 2020

90 anos de Ruth Cardoso: o olhar de FHC sobre a antropóloga, mulher e mãe

“Ruth sempre foi independente. Tinha personalidade e opiniões próprias. Não é fácil conviver com uma mulher forte, mas é mais desafiador e mais rico”, disse Fernando Henrique Cardoso neste debate on-line.

“Ruth sempre foi independente. Tinha personalidade, vontade e opinião próprias. Não é fácil conviver com uma mulher forte, mas é mais desafiador e mais rico. Nos adaptamos a viver cada um com suas crenças, mas respeitando o outro e buscando consensos, sempre que possível.” Assim o sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso começou este webinar em que trouxe, de forma descontraída e em alguns momentos emocionante, sua visão de Ruth Cardoso como mulher, intelectual, professora, mãe e primeira-dama (título que ela resistia a usar). “Ela tinha múltiplas dimensões, das mais sofisticadas intelectualmente às mais simples e cotidianas. Fazia tudo bem feito, com dedicação e rigor.”

Ruth e FH foram casados por 55 anos (de 1953 até o falecimento dela em 2008) e tiveram um filho e duas filhas. Neste mês, a Fundação realiza uma série de atividades, inclusive uma exposição virtual, para lembrar os 90 anos de Ruth e seu legado como antropóloga, professora e ativista social. “FH vai estrelar hoje na qualidade de marido e será entrevistado por Antonio Prata. Escritor reconhecido nacionalmente, apesar de jovem, Antonio participou ainda adolescente do programa Universidade Solidária. Não chegou a conviver proximamente com minha mãe, o que o deixa livre para perguntar a meu pai tudo o que quiser. A ideia é fazer uma conversa intergeracional, guiada pela curiosidade de explorar um passado não tão remoto, mas muito inspirador”, disse a educadora Beatriz Cardoso, filha mais nova do casal, ao abrir o evento.


Acesse a exposição virtual: “Ruth Cardoso, formadora”.

Por meio das perguntas de Prata, que provocaram lembranças de FHC, o público foi convidado a conhecer aspectos da trajetória de vida deste casal tão marcante da história contemporânea brasileira. Ruth Vilaça Correia Leite e Fernando Henrique Cardoso se conheceram ao ingressarem juntos, no início da década de 1950, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Ruth em primeiro lugar e eu, em segundo. Pensei que a superaria depois (como estudante universitário), mas ela não deu chance”, ele fez questão de mencionar. “Ruth contava que você teria pedido cola a ela”, provocou Prata. “Pedi”, esclareceu, “para uma prova de matemática, mas ela, claro, recusou.”

‘Nunca publiquei nada que ela não tivesse lido. Sinto falta disso’

Desde a faculdade, Ruth se destacou pela liberdade intelectual e pelo olhar profundamente crítico. “Enquanto Ruth viveu, nunca escrevi e publiquei nada sem que antes ela tivesse lido. Era uma crítica atenta e impiedosa. Sinto falta disso”, revelou. A independência de Ruth também determinou o modo de viver do casal e de seus três filhos. “Em casa, cada um foi estimulado a ter seus próprios pensamentos, suas crenças e suas ações. E o outro tinha que entender, conversar e respeitar. Foi assim o tempo todo”, conta.

Para exemplificar esse espírito de independência, FH lembrou um fato ocorrido durante os oito anos em que foi presidente da República (1995-2003) e ela, primeira-dama, função institucional que fez questão de exercer sem abrir mão de sua carreira como antropóloga, professora e pesquisadora. “Um dia ela chegou e disse que iria dar aula nos Estados Unidos. Você vai sozinha?, perguntei. Como? E como fica a sua segurança? Não é possível, respondi. Minha oposição foi inútil porque ela foi mesmo assim”, contou. Em 2000, Ruth passou uma temporada como professora visitante no Center for Latin American Studies da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde recebeu a visita de seu marido, então presidente do Brasil. 

Convergências e diferenças intelectuais

“Vocês estudaram juntos, participaram de grupos de estudo”, quis saber Prata. “Quais eram os autores que mais interessavam Ruth? Tinham convergências, divergências?” Enquanto o sociólogo FHC dedicava-se ao estudo de Max Weber, Karl Mannheim e Karl Marx, a antropóloga Ruth se aprofundava na obra de Claude Lévi-Strauss, com quem mais tarde estudaria em Paris. “Formamos um grupo para ler O Capital, do qual Ruth chegou a participar, embora não fosse sua preferência. Ela estava grávida e, no meio de um encontro em casa, entrou em trabalho de parto e tivemos de correr para o hospital. Por pouco, a Bia não nasceu em casa, diante de todos os que estavam reunidos em torno da obra de Marx.” Segundo FH, Ruth nunca foi muito “adepta da dialética marxista, preferindo uma visão mais antropológica do mundo”.

“Ruth gostava mais de estudar os movimentos da sociedade, eu me dediquei a compreender as estruturas da organização social”, disse o ex-presidente. “E suas referências literárias?”,  questionou o escritor. “Ruth gostava mais de literatura e de poesia do que eu. Foi influenciada pela geração modernista. Mário de Andrade era um dos ídolos dela. Eu gostava do Oswald, ela não tanto. E tinha Carlos Drummond, que na época estava no auge.”

FH lembrou que um ponto em comum foi a preocupação de ambos com o racismo no Brasil. “Como sociólogo, eu comecei logo no início da carreira a pesquisar as relações raciais em algumas regiões do país, sob orientação do Prof. Florestan Fernandes. Como antropóloga, a questão racial também sempre esteve no centro dos trabalhos de Ruth”, explicou.

‘Para ela não era o outro, era o mesmo’

Nascer e crescer em Araraquara, cidade de porte mediano do interior de São Paulo, marcou a relação de Ruth com a família, os amigos, a antropologia e até mesmo a política. “A criação interiorana tornou-se sua ‘arma’ etnográfica”, disse Prata, que em seguida perguntou a FH como sua mulher conseguia transitar com tanta integridade pelo ambiente “tão sisudo da academia” sem perder a simplicidade de uma pessoa vinda do interior. “A educação e a vida interiorana deu a ela a capacidade de se comunicar com pessoas de todas as origens e classes sociais, na vida pessoal e profissional”, disse FH. 

De Araraquara veio a habilidade de enxergar as pessoas não “como o outro, mas como sendo, todos nós, parte do mesmo todo”. Também de lá vieram referências intelectuais e amizades de toda a vida, como Gilda de Mello e Souza, sua conterrânea, e seu marido, Antonio Candido. A cidade natal inspirou o gosto pela culinária e pelos cuidados com a casa, aptidões que levou para o Palácio da Alvorada, em Brasília. “Durante oito anos o Alvorada se tornou de fato nossa casa. Ela cuidava de tudo com perfeição, dos funcionários, do jardim, da decoração, dos almoços e jantares. Tenho saudades daquele tempo”, disse o ex-presidente.

Em certo momento, Bia comenta, sorridente, sobre o bom andamento da conversa entre o pai e Antonio Prata: “Parece mesmo que estamos em Araraquara, com aquelas conversas longas e sem pressa”.


Conheça as linhas do tempo sobre a evolução dos direitos no Brasil (1985-1918):

Direitos das mulheres

Questão racial


‘Como primeira-dama, preservou sua independência e carreira intelectual’

“Primeiro veio para São Paulo sozinha, a família ficou em Araraquara, o que não era habitual naquela época. Já nos anos 1950 e 60, tinha esse pensamento de igualdade entre homem e mulher, o que também não era comum. Fez parte do primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina, em São Paulo (criado em 1983 durante o governo de Franco Montoro). Depois, já em Brasília, eu criei o conselho nacional, por insistência dela”, lembrou FHC.

A influência da mulher na vida política do marido foi outro ponto importante no webinar. “Ela tinha horror de ser só primeira-dama”, disse o ex-presidente, lembrando-se que, mesmo não gostando dos holofotes do poder, Ruth soube se valer da posição para promover iniciativas que buscavam aproximar o governo da sociedade civil e unir o plano institucional federal à realidade das pessoas país afora.

“Quando era necessário, ela exercia muito bem o papel da primeira-dama, mas não era isso o que ela desejava. Em 1995 (primeiro mandato de FHC), Ruth criou e desenvolveu o programa Comunidade Solidária. O programa não era do governo, era da sociedade civil. Ela de alguma maneira desenhou um modo pelo qual ela podia participar ao mesmo tempo da sociedade civil e, inevitavelmente, sendo minha mulher, da política e do poder em Brasília”, disse FH. “Fez desse grande limão uma boa limonada”, brincou Prata.

Embora com cuidado para não interferir no dia a dia da política, a antropóloga soube influenciar o governo FHC: “Às vezes quem está muito metido na vida política,  não percebe certas coisas. Já quem está um pouco fora percebe melhor. Ruth percebia, tinha suas próprias opiniões e dizia o que pensava. Sempre conversamos muito, isso foi importante para meu governo”, comentou o ex-presidente.

Como exemplo, FHC cita a convicção de Ruth de que deveria haver mais diversidade nas instituições públicas. “Ela nunca sugeriu nomes, mas foi por inspiração dela que indiquei Ellen Gracie para o Supremo Tribunal Federal em 2000, tornando-se a primeira mulher a ocupar aquela função”.

FH conta também que, sempre que participava de algum comício ou evento público, Ruth evitava o centro do palco e se aproximava o máximo que podia da plateia: “Esse era o estilo dela. Queria sentir o clima do povo, o que as pessoas estavam falando e comentando.”

‘Uma pessoa multidimensional’

Ruth foi uma pessoa multidimensional, que não se enquadrou em estereótipos. “Era difícil caracterizá-la”, disse FHC. Antonio Prata comentou ter assistido recentemente a um programa Roda Viva de 1999, em que Ruth estava no centro como entrevistada. “Naquela época ela já falava da força do feminismo negro, da urgência de salários equivalentes para homens e mulheres, de aborto. É como se o programa tivesse sido gravado ontem”, disse o escritor. 

A Ruth feminista voltou à conversa quando Prata mencionou seu retorno de Paris a São Paulo em abril de 1968, apenas um mês antes de estourar o movimento Maio de 68 na capital francesa (o casal se exilou primeiro no Chile e depois na França durante os primeiros anos do regime militar no Brasil). “Como ela enxergava antropologicamente e pessoalmente aquele ambiente de contestação surgido no final dos anos 60 na França?”, perguntou o escritor.

“Ruth era feminista e aquela revolução ocorrida no final dos anos 60 e início dos 70 era sobre o comportamento, o modo de viver, a cultura. Extremamente democrática, liberal e aberta às novidades, ela sintonizava fortemente com tudo aquilo que estava acontecendo em diversos países e também no Brasil. Eu já era mais tradicional, tive de fazer um esforço para compreender o que estava em jogo”, respondeu. FH salientou, no entanto, que o casal nunca teve experiências com drogas: “Em casa nunca entrou. Sempre fomos caretas em relação a isso”, disse. 

‘Foi melhor professora do que eu porque cuidava genuinamente dos alunos’

No decorrer da conversa, uma das qualidades de Ruth predominou: a de formadora. “Ruth era melhor professora do que eu fui. Ela cuidava da formação dos alunos com interesse genuíno, orientava, acompanhava, estimulava. Tanto é assim que várias pessoas que foram alunas ou orientandas dela até hoje mantêm um certo culto da convivência com Ruth. Eu já preferia dar aulas, falar em público”, contou. Em sua fala de abertura, Bia admitiu a influência da mãe na escolha profissional: “Não é por acaso que sou pedagoga e educadora.”

Já ao final da conversa, Prata perguntou: “Como você descreveria Ruth para um bisneto que não a conheceu?”. A resposta de FH: “Que pena que você não a tenha conhecido. Era profundamente humana, ajudou muita gente a se desenvolver e a melhorar de vida e deixou um exemplo de aceitação das diferenças e da importância do trabalho solidário. Uma mulher excepcional”.

Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.