Debates
24 de abril de 2024

50 anos da Revolução dos Cravos e os desafios da democracia portuguesa

Conversamos com dois intelectuais públicos portugueses de grande expressão: a escritora Inês Pedrosa e o historiador e líder político Rui Tavares.

A Revolução dos Cravos, um levante militar e popular realizado de forma pacífica em 25 de abril de 1974, marcou o início da terceira onda de democratização, que se estendeu pelos anos 1980 e 1990 e atingiu a Europa, a América Latina, a Ásia e a África, disse o historiador português Rui Tavares, neste webinar que marcou o aniversário de 50 anos da revolução portuguesa. “Desde o início da segunda década do século 21, vivemos um período de contrarrevolução desta terceira vaga, com o surgimento de uma extrema direita autoritária que representa uma ameaça à democracia em várias partes do mundo, inclusive em Portugal e no Brasil”, afirmou o palestrante.

“A extrema direita portuguesa, assim como em outros países, cavalga o ressentimento social que se intensificou na última década por vários motivos e a falta de conhecimento da história. Vejo muitos jovens portugueses dizendo que, no tempo do ditador Salazar, o país tinha mais autonomia, enquanto hoje somos excessivamente dependentes da Europa. Segundo eles, não podemos fazer nossas próprias leis, o que representaria uma ausência de soberania nacional. Essas ideias nostálgicas, primárias mas com forte apelo afetivo, têm sido exploradas eficientemente pela extrema direita nas redes sociais”, explicou a escritora e jornalista Inês Pedrosa.

Revolução dos Cravos teve grande repercussão no Brasil sob ditadura, diz Fausto

“A comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos é uma data muito importante na vida de Portugal e do Brasil. Em 25 de abril de 1974, o Brasil vivia o início de um processo de distensão política (Governo Geisel, 1974-1979). Eu tinha 12 anos na época e foi um alento assistir ao fim pacífico da longa ditadura salazarista. Ventos democráticos começaram a soprar na Europa, primeiro em Portugal, depois na Grécia e, em seguida, na Espanha. E chegaram à América Latina no final dos anos 1970 e início dos 80”, lembrou o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, na abertura do evento. 

“Jamais vou me esquecer de uma cena inédita, diria quase insólita, aos olhos dos latino-americanos, que foi a imagem de tanques nas ruas derrubando uma ditadura, com os soldados e milhares de pessoas confraternizando nas ruas de Lisboa. E a beleza dos cravos vermelhos, que começaram a ser distribuídos à população em festa e ostentados na lapela de soldados, homens, mulheres e crianças como símbolo da liberdade que Portugal acabara de conquistar. Uma cena que marcou minha adolescência porque era toda contrária à experiência que vivíamos no Brasil e na América Latina naquele momento”, disse Fausto.

Em 24 horas, tudo mudou em Portugal, conta Tavares

Rui Tavares lembrou que, em 25 de abril de 1974, Portugal amanheceu sob a ditadura mais longa da Europa Ocidental – o regime de António Salazar, que durou 48 anos –, sob censura total aos meios de comunicação, com grande número de presos de opinião e uma polícia política presente em todos os poros da sociedade portuguesa: “Tudo isso desapareceu em menos de 24 horas, inaugurando um período completamente novo na história de Portugal, definida pela sigla DDD: Democratizar, Descolonizar e Desenvolver.”

“Cinquenta anos depois, o imperialismo português acabou, as ex-colônias na África se tornaram independentes e seguem seu caminho, Portugal é uma democracia e o país teve um desenvolvimento socioeconômico surpreendente, sobretudo após a integração à União Europeia. Falta hoje, no entanto, uma visão congregadora como aquela dos três Ds, capaz de unir o país como ocorreu ao fim da ditadura”, disse.

“Este é o período de democracia mais longo já vivido por Portugal, somos uma sociedade livre, cosmopolita, dinâmica, integrada à Europa e ao mundo, mas nada está garantido. Há muito a fazer para integrar a todos os portugueses e portuguesas, inclusive os imigrantes legais e, se não estivermos atentos, podemos sofrer retrocessos que comprometam a nossa democracia”, concluiu o historiador.

Extrema direita explora as promessas não cumpridas pela democracia, diz Pedrosa

“Durante o regime salazarista (1926-1974) o analfabetismo era endêmico, só a elite tinha a possibilidade de chegar à universidade, as mulheres não tinham direito nenhum, o racismo era generalizado. Houve muitos avanços nos últimos 50 anos, mas ainda há grãos que emperram a engrenagem democrática”, disse Inês Pedrosa, autora de mais de duas dezenas de livros de ficção e não-ficção.

“As famílias portuguesas que têm dinheiro e poder, são donas das terras e controlam as grandes empresas e a mídia continuam sendo as mesmas. E a Igreja Católica segue tendo uma influência desmedida em Portugal, quem for contra seus desejos em todas as áreas sofre retaliações. Sem a chancela da Igreja não há consolação terrena, não há prestígio, não há prêmios”, continuou.

Segundo Pedrosa, nos últimos anos vem crescendo a percepção por parte da sociedade de que as promessas de um Portugal democrático, justo e igualitário ficaram sempre aquém, sentimento que tem sido bem explorado pela extrema direita em ascensão. “Alguns dizem ‘há muitos direitos para as mulheres, os negros, os gays, mas para mim, não, não tenho direito a casa, trabalho decente etc.’ Os populistas e oportunistas se aproveitam de sentimentos como este para ganhar votos”, explicou.

Na última eleição para a Assembleia da República, em março de 2024, o Chega (partido de extrema direita fundado em 2019) elegeu 48 parlamentares (antes, tinha 12), tornando-se a terceira maior força política de Portugal. A coalizão Aliança Democrática (centro-direita) ficou em primeiro lugar, com 79 parlamentares, e o Partido Socialista (centro-esquerda) obteve o segundo lugar, com 77 parlamentares.

Logo após a vitória por pequena margem, a Aliança Democrática se negou a negociar o apoio da extrema direita e formou um governo minoritário, mas há dúvidas sobre o que pode acontecer no futuro, sobretudo se o partido Chega continuar a se fortalecer politicamente. 

“André Trindade, líder do Chega, não se diz salazarista, mas seu slogan é ‘Deus, Pátria e Família’, o mesmo do antigo ditador. Ele joga com a ambiguidade. E, embora a centro-direita tenha rejeitado a entrada da extrema direita no governo, políticas do Chega podem vir a ser colocadas em prática na tentativa de evitar que o partido continue a se fortalecer eleitoralmente”, explicou Pedrosa. 

“Que os 50 anos da Revolução dos Cravos, recém-comemorados, sirvam para lembrar que a liberdade nunca está plenamente conquistada. Não é voltar atrás do que precisamos, mas apurar o que exige ser apurado e andar pra frente, rumo a um Portugal realmente justo, diverso, igualitário e democrático”, concluiu a escritora.

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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