Debates
21 de novembro de 2023

A Argentina após a eleição presidencial: perspectivas econômicas e políticas

Javier Milei, presidente eleito da Argentina, terá condições de tirar o país da beira do precipício e fazê-lo reencontrar um caminho de estabilidade e crescimento há muito perdido?

O presidente eleito, Javier Milei, tomará posse em 10 de dezembro com o país à beira da hiperinflação e sua primeira prioridade deveria ser evitar a queda da Argentina no precipício. Por ora, porém, a sensação é que o país vizinho deu um salto no vazio. Embora tenha recebido um apoio mais amplo do que o esperado, 55% dos votos válidos no segundo turno, Milei não tem um programa claro nem uma equipe definida e experiência alguma no trato das questões concretas de governo.  

Até recentemente um outsider na política, fez uma campanha com propostas ao gosto dos ultraliberais, sem preocupação com a sua viabilidade. Agora terá de administrar o terceiro maior país da América Latina. Para assegurar um mínimo de governabilidade, precisará negociar com as forças políticas tradicionais que governaram o país nos últimos anos, às quais atacou ferozmente durante a sua campanha. Como fará isso, em um curto espaço de tempo, é uma incógnita.

Estas são as principais conclusões deste webinar, realizado dois dias após o final das eleições argentinas, em 19 de novembro, com as participações do jornalista e historiador Carlos Pagni e do ex-ministro da economia  Alfonso Prat-Gay. A jornalista Sylvia Colombo, correspondente em Buenos Aires, e o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, entrevistaram os dois especialistas.

“Como analista político, tenho feito um esforço para entrar na cabeça do Milei. Que capacidade alguém tão dogmático e radicalizado como ele terá para lidar com frustrações? Terá jogo de cintura para negociar com as oposições no Congresso e nas províncias? Como vai enfrentar a resistência de setores organizados como os sindicatos e os movimentos sociais? Será que o novo presidente entende a complexa cena política argentina? Simplesmente não sabemos”, disse Pagni, colunista dos jornais La Nación e El País.

“Milei chegou ao poder levantando a bandeira de um choque econômico e, de fato, a economia argentina está à beira da hiperinflação e pede um ajuste forte e rápido. Mas sua coalizão, La Libertad Avanza, será minoritária tanto na Câmara dos Deputados como no Senado. Sempre é possível obter o apoio de outras forças políticas, mas o presidente eleito terá habilidade para costurar um acordo político que lhe dê condições de aprovar medidas duras, com a urgência necessária?”, disse Prat-Gay, que foi ministro da Economia (2015-16).

No domingo, 19 de novembro, Javier Milei venceu em 19 das 23 províncias argentinas e na Cidade Autônoma de Buenos Aires, mas sua coalizão de extrema direita não elegeu nenhum governador. Na Câmara dos Deputados, que tem 257 cadeiras, nenhuma coalizão elegeu o número mínimo de deputados para obter maioria ( 129 parlamentares), mas os peronistas terão vantagem, com 108 cadeiras, seguidos da centro-direita, 93 cadeiras. A coalizão La Libertad Avanza elegeu apenas 37 deputados. Em teoria, o presidente eleito poderia contar com o apoio da centro-direita, mas esta se dividiu entre os que decidiram, sob a liderança do ex-presidente Maurício Macri, apoiar Milei no segundo turno e os que optaram pela neutralidade, com duras críticas ao candidato da Libertad Avanza.

No Senado, formado por 72 senadores, a situação é ainda mais difícil para o presidente eleito: a coalizão peronista terá 34 senadores, e a coalizão de centro-direita, 24 senadores. A coalizão de Milei terá apenas 8 senadores. Para ter maioria, são necessários 37 senadores.

Oposições estão fraturadas, o que pode ser uma oportunidade para Milei

Tanto o peronismo (que possui diversas correntes políticas, algumas mais à esquerda e outras mais ao centro) como a coalizão de centro-direita que governou o país entre 2015 e 2019 (governo Mauricio Macri) saíram das eleições deste ano fraturados, devido à derrota significativa do peronista Sergio Massa (atual ministro da Economia) no segundo turno e de Patricia Bullrich (candidata de Juntos por El Cambio) já no primeiro turno.

“Há algum tempo a convivência entre os diversos grupos políticos dentro do peronismo tem sido difícil. Com a derrota, esta disputa interna tende a se aprofundar. Milei conquistou muitos votos peronistas, inclusive no interior da Argentina. É possível que congressistas peronistas ligados aos governadores das províncias que deram vitória a ele se mostrem dispostos a colaborar com o novo presidente. Também há movimentos sociais, tradicionalmente ligados ao peronismo, que dependem de recursos estatais e poderão ser pressionados a buscar um acordo com o novo governo. Resta saber se Milei saberá tirar proveito dessas oportunidades”, explicou Pagni.

Na centro-direita, a candidata derrotada Patricia Bullrich apoiou Milei no segundo turno. O ex-presidente Mauricio Macri se reuniu diversas vezes com o futuro presidente mesmo durante a campanha eleitoral (embora seu grupo político tivesse uma candidata). Milei, no entanto, resiste a se aproximar demasiadamente da centro-direita, por dois motivos: em primeiro lugar, não quer se vincular a políticas fracassadas do governo Macri (sobretudo na gestão da economia); em segundo lugar, o futuro presidente quer manter enquanto for possível sua imagem de político independente e antissistema.

“Se a coalizão Juntos por El Cambio decidisse apoiar o governo Milei com base em um programa definido em comum acordo, poderia ser interessante do ponto de vista político. Mas, até o momento, Macri está agindo por conta própria, com o objetivo de ter influência pessoal no novo governo. E Milei não quer assumir nenhum compromisso formal com o ex-presidente. Esse terreno fragmentado na centro-direita pode empurrá-lo a buscar apoio na ala mais à direita do peronismo. Um sinal disso é que ele pode apoiar um peronista para presidir a Câmara dos Deputados”, disse o colunista.

Choque na economia ou gradualismo?

Uma das críticas ao governo de Mauricio Macri é que ele prometeu reformar a economia argentina após dois mandatos de Cristina Kirchner que resultaram em uma situação econômica frágil, com forte aumento dos gastos públicos, maquiagem de dados econômicos cruciais, entre eles a taxa oficial de inflação, crescente desvalorização do peso frente ao dólar e vários tipos de câmbio. Mas, avaliando as  condições políticas, Macri adotou um programa gradualista de ajuste e reformas econômicas, que não surtiu os esfeitos desejados e levou à sua derrota na disputa pela reeleição. 

Em 2019, o peronismo voltou ao poder com Alberto Fernández, candidato indicado por Cristina, na cabeça de chapa, e a ex-presidente como vice-presidente. Fernández, um presidente fraco, sem apoio popular, vítima de fogo amigo dentro do próprio governo, também fracassou na economia, abrindo caminho para a vitória de Milei.

“O desafio imediato de Milei é evitar a hiperinflação para, depois, baixá-la a níveis razoáveis. Mas as ideias apresentadas durante a campanha vão na direção contrária”, disse Alfonso Prat-Gay.

“Milei gostaria de se diferenciar do gradualismo de Macri e dar um choque na economia. Mas a questão fiscal, por exemplo, não se resolve sem uma discussão ampla no Congresso, onde, assim como Macri, o futuro presidente não tem apoio suficiente. Ninguém na oposição parece hoje disposto a uma política de choque como a pretendida pelo novo governo”, disse Alfonso Prat-Gay.

Segundo o economista, que presidiu o Banco Central da Argentina de 2002 a 2004, a proposta de dolarizar o país esbarra na escassez de reservas da moeda norte-americana: “Mesmo no círculo mais íntimo de Milei não parece haver consenso de que isso seja possível. Por um simples motivo: o Estado argentino não tem dólares para dolarizar a economia, o que torna a proposta inviável.”

A ideia de fechar o Banco Central, defendida por Milei durante a campanha e em seu discurso de vitória, também é pouco factível porque, segundo o economista, o BC não dispõe de recursos para pagar suas dívidas com credores de fora e de dentro do país. “O que fazer com os passivos do Banco Central? O BC deve para todo mundo, tanto fora do país como na própria Argentina, e essas dívidas são de curto prazo. Vai haver um calote generalizado?”, disse. 

Apesar destas e de outras dificuldades, Prat-Gay lembrou que a sociedade argentina demonstra uma capacidade histórica de se recuperar de crises e, se Milei acertar em algumas questões centrais logo de cara, é possível que ocorra um ciclo virtuoso que ajude o novo governo a decolar. “Se ele apertar os botões corretos e conseguir aprovar um programa de disciplina fiscal potente, crível e sustentável, que melhore rapidamente as expectativas econômicas e desate algumas potencialidades da Argentina, como o desejo de empresas estrangeiras de entrar ou voltar a investir no país, é possível que haja uma recuperação mais rápida do que a prevista”, disse.

Segundo o ex-ministro da Economia, Milei tem um mandato forte para reorganizar as contas públicas, e deveria começar por aí, mas a tolerância social a um ajuste fiscal amplo é baixa, sobretudo entre os argentinos que dependem de transferências do Estado para sobreviver. “Quais as chances de isso acontecer nas atuais condições socioeconômicas, políticas e até mesmo psicológicas?”, perguntou.

“O desafio imediato de Milei é evitar a hiperinflação para, depois, baixá-la a níveis razoáveis. Mas as ideias apresentadas durante a campanha vão na direção contrária. A proposta de implementar uma dolarização sem suficientes reservas em dólares e o fim do controle cambial, entre outras medidas, podem causar uma aceleração abrupta dos preços. Estamos falando de um país que saiu das urnas com uma feição que não conhecemos, caracterizada por uma enorme discordância entre os sonhos e as possibilidades concretas. Isso me assusta”, concluiu o economista. 

Carlos Pagni descreveu Milei como um candidato, agora eleito presidente, utópico e desprendido da realidade macroeconômica e administrativa da Argentina. “Embora seja formado em economia e tenha feito propostas radicais como a dolarização, Milei se vê muito mais como um reformador de longo prazo da sociedade argentina. Como fará isso com uma economia em colapso, é uma incógnita. Estamos definitivamente diante do desconhecido”, reforçou o analista.

Milei ainda não entendeu a importância da relação com o Brasil

Segundo os convidados, a atitude de Milei, como candidato e também depois de eleito, em relação ao Brasil, e sobretudo o atual governo brasileiro, revela um desconhecimento da importância das relações bilaterais. “O grupo político que acaba de conquistar o poder na Argentina não imaginava que pudesse vencer as eleições. Milei será um presidente que não conhece o Estado, não conhece a máquina política e também não conhece as relações externas e a diplomacia. Certamente haverá uma curva de aprendizagem nas relações com o Brasil e com a China, dois parceiros comerciais importantíssimos da Argentina”, disse Pagni.

A situação ainda é mais delicada em relação ao Brasil porque, durante a campanha, Milei fez críticas pessoais ao presidente Lula. Além disso, convidou o ex-presidente Jair Bolsonaro e seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, para sua posse em dezembro. “O presidente Lula foi habilidoso ao reconhecer rapidamente a vitória de Milei, mesmo não o citando diretamente. Mais do que um pedido de desculpas, creio que o que Lula não deseja é que o novo presidente argentino dê espaço ao ex-presidente Bolsonaro em sua posse”, disse Pagni.

O jornalista destacou recente encontro entre Milei e o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, em que o argentino demonstrou simpatia pela ideia de uma maior flexibilização do Mercosul, o que poderia abrir caminho para acordos bilaterais de países-membros do grupo com outros países, entre eles a China, um desejo do governo uruguaio que não é bem-visto pelo Brasil.

“Se alguém acha que Milei pretende tirar a Argentina do Mercosul, é melhor ir devagar porque ele não terá apoio das demais forças políticas argentinas. Ele pode propor algumas mudanças para agilizar e flexibilizar o bloco, como deseja o Uruguai. Quanto ao acordo do Mercosul com a União Europeia, é possível até que haja um avanço do lado argentino”, disse Prat-Gay. 

Assista ao vídeo do debate na íntegra.

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.