Fernando Henrique chega ao Palácio do Planalto
Hábil como negociador e inteligente na análise do cenário, Fernando Henrique viabilizou-se ao ver que o eleitorado buscava um nome em que seu perfil se encaixava perfeitamente.
O Plano Real teve muitos desdobramentos. O principal deles foi a estabilização da economia, estancando uma inflação que há décadas prejudicava o cotidiano dos brasileiros. O novo plano econômico finalmente dava ao país uma moeda forte e permitia que o consumidor pudesse planejar seus gastos e, assim, garantir um nível de vida melhor para si e sua família. Aliado a uma série de reformas estruturais, o Real se consolidou e colocou o Brasil em outro patamar.
Politicamente, o Plano Real se desdobraria ainda em pelo menos dois movimentos: consagraria Itamar Franco como um fenômeno popular, aumentando as chances de ele fazer seu sucessor, sonho de qualquer presidente, e colocaria seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, como um candidato com chances efetivas nas eleições presidenciais de 1994.
No início daquele ano, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, finalista da eleição de 1989, era o favorito no campo da esquerda. À direita, o PPR – o que restou do PDS malufista – tentava se reerguer com Espiridião Amin, ex-governador de um estado politicamente inexpressivo, Santa Catarina. Ao centro, o PMDB, também rachado a partir de 1986 e da morte de Ulysses Guimarães, tentava se reunificar ao redor do nome de Orestes Quércia, embora muitos correligionários já deixassem claro que não acompanhariam o nome indicado. E havia duas incógnitas: o PFL e o PSDB.
O primeiro, fortemente identificado com o Nordeste, tinha alguns nomes bem conhecidos, como o baiano Antônio Carlos Magalhães, mas sem alcance nacional. Já o PSDB, derrotado em 1989 com o senador Mário Covas, precisava encontrar um nome que tivesse uma imagem nacional e densidade eleitoral. O Plano Real deu isso a Fernando Henrique Cardoso, que até então era um político de prestígio, mas sem maior apelo popular.
Consagrado no tsunami eleitoral de 1986, quando o PMDB foi amplamente vencedor em todo o país, Fernando Henrique, nesse meio tempo, havia participado da fundação de um novo partido – o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) –, se licenciado do Senado e passado por dois ministérios durante o governo Itamar Franco (1992-95). Como ministro da Fazenda, ele se tornou a “cara” do Plano Real e, atrelado ao sucesso da iniciativa, chegava às vésperas do pleito de 1994 como um nome a ser lembrado para ocupar o Palácio do Planalto: “Quando me lancei à Presidência, já me candidatara três vezes: ao Senado em 1978, à Prefeitura de São Paulo em 1985 e novamente ao Senado em 1986. Tinha, portanto, certa experiência com comícios, embora nunca tivesse me sentido inteiramente à vontade neles”.
Hábil como negociador e inteligente na análise do cenário social e político, Fernando Henrique viabilizou-se ao perceber que o eleitorado buscava um nome que se opusesse a Lula e ao PT, que fazia uma dura oposição a Itamar, e se colocasse como uma opção segura, mais ao centro. “Exonerei-me do Ministério da Fazenda (em 30 de março de 1994), voltei ao Senado e continuei apoiando as lutas do governo Itamar”, lembraria Fernando Henrique em seu livro de memórias. “Pimenta da Veiga e Tasso Jereissati me haviam procurado no Ministério para que eu declarasse formalmente aceitar a candidatura”.
Habilidade para negociar e formar um leque de apoios
Com o objetivo de fortalecer não apenas sua candidatura, sobretudo no Nordeste, mas também de garantir uma base de apoio consistente no Congresso Nacional, em caso de vitória, Fernando Henrique decidiu formalizar desde o início uma aliança com o PFL, motivo de muitas críticas das alas mais à esquerda do PSDB e de intelectuais próximos a FHC.
Pragmático como sempre, o PFL compreendeu o seu papel coadjuvante e não quis impor nenhuma candidatura que pudesse rachar eleitoralmente uma alternativa de centro. Aliou-se a FHC e indicou o candidato a vice-presidente. O escolhido foi o senador alagoano Guilherme Palmeira, que no entanto foi forçado a desistir diante de suspeitas de favorecimento a uma empreiteira, cedendo a vaga ao pernambucano Marco Maciel, senador experiente e respeitado por seus pares.
Para compreender o dinamismo dos acontecimentos das eleições de 1994 basta lembrar os eventos da época e notar que, a cada mês, o quadro se modificava substancialmente. No final de março, Fernando Henrique demitiu-se do Ministério da Fazenda e, na despedida oficial, ele apresentou a arte das notas da nova moeda. Em abril, as pesquisas de opinião indicavam vitória de Lula (PT) com 40%, e pouco mais de 12% para Fernando Henrique (PSDB). Em maio, se define a coligação entre PSDB e PFL. O PTB também se integra à coalizão. Em junho, Lula dá entrevista para explicar por que não apoiava o Plano Real e alerta sobre a possibilidade de o plano ser usado como mera estratégia eleitoral. Em julho, a nova moeda é lançada e estabiliza os preços, tornando-se a principal alavanca da candidatura de Fernando Henrique. Em agosto, uma pesquisa mostra que 70% dos eleitores de Lula se diziam favoráveis ao Plano Real e, na pesquisa do dia 30 daquele mês, Fernando Henrique ultrapassa o adversário e atinge 40% das intenções de voto, contra 22% de Lula.
Dois meses antes de ser realizada, a eleição já estava ganha. O resultado do primeiro turno, realizado em 3 de outubro de 1994, apenas confirmou o que todos já esperavam: Itamar encerrava seu governo consagrado e conseguia fazer seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, eleito com 55% dos votos, eliminando assim a necessidade de um segundo turno.
Sr. Presidente – Entrevista de FHC à Revista da Folha, 16 de outubro de 1994
Estruturas que pesam e se movem
Em dezembro, pouco antes do Natal, o presidente eleito divulgaria os 21 nomes que integrariam seu ministério, com uma surpresa: a criação do Ministério Extraordinário dos Esportes, a ser ocupado por Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Na lista, eram ainda contemplados nomes do PFL, como Reinhold Stephanes (Previdência), do PMDB dissidente, como Nelson Jobim (Justiça) e Odacir Klein (Transportes), do PTB, com Andrade Vieira (Agricultura) e do próprio PSDB, José Serra (Planejamento) e Paulo Renato Souza (Educação), além de escolhas técnicas, da chamada “cota do presidente”, como Pedro Malan (Fazenda), Clóvis Carvalho (Gabinete Civil) e Francisco Weffort (Cultura).
A avaliação político-eleitoral de Itamar Franco, do próprio candidato e das lideranças tucanas e pefelistas mostrou-se acertada. Fernando Henrique Cardoso obteve a maioria absoluta dos votos válidos já no primeiro turno, o dobro dos votos dados ao seu principal adversário. Assumiu com folgada maioria no Congresso. Porém, já nos primeiros meses de 1995, Fernando Henrique reconheceria: “Arte difícil esta, a da política. As estruturas pesam, sem dúvida. Os interesses organizados atuam”. No Planalto, o novo ocupante começava a desvendar a esfinge do poder.
Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.
Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim” (Matrix, 2022).