Debates
23 de junho de 2021

Da fome à boa nutrição: medidas de emergência e políticas estruturantes

Uma pesquisa realizada pela Rede PENSSAN mostra que a insegurança alimentar atinge mais de 50% da população brasileira e 9% passam fome.

Um inquérito nacional realizado no final de 2020 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional revelou que a insegurança alimentar atinge mais de 50% da população. Quase 95 milhões de brasileiros não têm garantidos os seus direitos à alimentação adequada e saudável, como previsto na Constituição Federal. Aproximadamente 20 milhões de pessoas passam fome, mais do que o dobro do observado em 2013. A solução para combater esse cenário de retrocesso passa pela elaboração de políticas públicas de geração de emprego e renda, pelo estímulo à produção e distribuição de alimentos, pela descentralização e integração do tema com outras áreas, como saúde e educação, e pela participação ativa da sociedade civil.

A Fundação FHC e o Instituto Ibirapitanga promoveram uma conversa entre três profissionais de larga experiência e com trajetórias distintas. Anna Peliano, socióloga e  coordenadora do Grupo de Pesquisa de Nutrição e Pobreza no Instituto de Estudos Avançados (IEA/USP); Ana Maria Segall Corrêa, médica, pesquisadora e professora aposentada do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp; e Maïra Gabriel Anhorn, coordenadora e pesquisadora na ONG Redes da Maré. As participantes apresentaram dados, compartilharam experiências e discutiram aspectos do enfrentamento da fome no Brasil.

Uma história em quatro atos

Anna Peliano apresentou uma cronologia comentada das políticas de combate à fome no Brasil. A socióloga participou deste processo desde a década de 1970, na maior parte do tempo em órgãos governamentais no âmbito federal. A apresentação foi dividida em quatro “atos”.

No primeiro ato, que vai da década de 1940 a meados da década de 1970, observamos os primórdios da política da alimentação no Brasil: “Dirigidos aos trabalhadores, na esteira das políticas trabalhistas de Getúlio Vargas, lançavam-se os primeiros programas de alimentação e nutrição no Brasil, muitos deles vigentes até os dias atuais”.

O segundo ato, de meados dos anos 1970 ao final da década de 1980, foi marcado por contradições. “Houve um avanço no desenho dos programas, na abertura de espaço para participação e no marco legal. Mas a prioridade foi o Programa Nacional de Leite para Crianças Carentes, um programa contrário a tudo que os especialistas recomendavam na época, dissociado de qualquer ação de saúde, educação e apoio à produção de alimentos”, explicou Peliano.

O terceiro ato acontece nos anos 1990. No período, é elaborado o primeiro Mapa da Fome do Brasil (realizado pelo Ipea, do qual Anna foi diretora de Política Social em 1992-94 e 2003-07). O mapa identificou que 32 milhões de brasileiros não tinham renda para garantir uma alimentação adequada. A informação alavancou o debate nacional sobre a questão, e houve grande mobilização social, em boa parte liderada pelo sociólogo e ativista de direitos humanos Herbert José de Sousa, o Betinho (1935-1997).

Em 1994, durante o Governo Itamar Franco (1992-95), é lançado o Plano Real, idealizado pela equipe do então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, que conseguiu controlar a inflação e teve impacto imediato na melhoria da renda dos brasileiros. Em outubro de 94, FHC é eleito presidente da República.”Em janeiro de 1995, Fernando Henrique assume o governo e há uma virada. O Programa Comunidade Solidária, um compromisso de campanha, é lançado e a prioridade maior passa a ser o combate à pobreza. A fome entrava no leque de problemas da pobreza”, explicou Peliano. O Comunidade Solidária foi idealizado pela Dra. Ruth Cardoso, antropóloga, professora e primeira dama do país na época.

“O combate à fome passa pela melhoria da renda e pelas políticas no campo da economia”, disse Anna Peliano.

“Entre 1990 e 1999, 8,2 milhões de brasileiros haviam saído da condição de extrema pobreza e 10,1 milhões da condição de pobreza. Mas o que estudos da época revelam é que o maior programa de combate à fome e à pobreza na década de 90 foi a estabilização econômica (com o Plano Real). Esse dado comprova a tese de que o combate à fome passa pela melhoria da renda e pelas políticas no campo da economia.”

O quarto ato se inicia com o Governo Lula (2003-2011), que em sua campanha prometeu erradicar a fome no país. No período, foram lançados programas como o Fome Zero e o Bolsa Família, com resultados muito positivos em termos de redução da pobreza e impactos na economia local. “Entre 2004 e 2013 (período que inclui o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, iniciado em 2011), a situação de insegurança alimentar grave nos domicílios caiu para menos da metade e, em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome (ONU). Novamente, os maiores avanços nesse período podem ser atribuídos ao crescimento econômico e à valorização do salário mínimo.”

Dados revelam um cenário de retrocessos

Desde o final de 2014, quando teve início um longo período de recessão e baixo crescimento econômico, os índices de fome no país vêm aumentando. “Daqui a alguns anos, ao contar essa história, um quinto ato será inserido, que começa com o governo Bolsonaro (iniciado em 2019). Desde então, observamos um desmonte das políticas de segurança alimentar, com a redução de recursos e o enfraquecimento das instituições”, concluiu a socióloga.

Apresentando dados para apoiar as conclusões de Peliano, a médica e pesquisadora Ana Maria Segall trouxe os principais resultados da pesquisa realizada pela Rede PENSSAN em 2020, que buscou monitorar a segurança alimentar (SA) e os níveis de insegurança alimentar (IA, que pode ser leve, moderada ou grave) no Brasil no contexto da pandemia de Covid-19. A pesquisa foi realizada usando-se os mesmos parâmetros do IBGE, para que pudesse ser comparada com os estudos passados do instituto (os gráficos estão disponíveis seção Conteúdos Relacionados).

Além de revelar o alarmante número de brasileiros que enfrentam a fome (IA grave) no dia a dia, o inquérito mostrou a gravidade das consequências do cenário de crise econômica, política e sanitária. “Houve um expressivo aumento também na insegurança alimentar leve, ou seja, o comprometimento da qualidade da dieta, mostrando que a classe média brasileira também foi afetada nesse período”, explicou a médica. “O grande determinante da capacidade de acesso das famílias ao alimento é a renda familiar. Quando a renda da família chega a um salário mínimo (R$1.147 em 2020), a insegurança alimentar grave ou moderada dá lugar a insegurança alimentar leve.”

Os dados também revelam um “perfil humano da fome no Brasil”: a insegurança alimentar é maior quando os chefes de domicílio são mulheres, pessoas pretas ou pardas ou com baixa escolaridade — os mais vulneráveis. “Essas condições são muito emblemáticas e mostram quais caminhos seguir se quisermos ter um Brasil diferente, com sua população realmente realizando seu direito à alimentação adequada. A pandemia de Covid-19 é uma catástrofe sanitária e social jamais vista no país, que trouxe sofrimento para todos, e que sacrifica os mais pobres e socialmente vulneráveis”, concluiu Segall.

A experiência na Maré 

Trabalhando há mais de dez  anos na ONG Redes da Maré — uma instituição da sociedade civil que realiza projetos e ações para fortalecer a garantia de direitos dos 140 mil moradores do conjunto de 16 favelas da Comunidade da Maré, no Rio de Janeiro — a pesquisadora Maïra Gabriel Anhorn trouxe ao evento a experiência de campo da campanha realizada pela ONG desde março de 2020.

“A fome não era uma agenda da Redes da Maré, mas em março do ano passado uma nova realidade emergiu de forma rápida: as pessoas estavam perdendo o trabalho e passando fome”, contou Anhorn. A organização se mobilizou para criar uma campanha de distribuição de cestas básicas, instaurar uma frente de saúde, com centro de testagem e monitoramento, uma frente de geração de renda focada em mulheres, além de uma frente de comunicação, que atuou no combate às fake news e na divulgação de informações baseadas em fatos e na ciência. “Hoje o ritmo da campanha diminuiu, mas ficou claro que a frente de segurança alimentar será nossa prioridade nos próximos anos”, explicou.

Cabe ressaltar que a campanha realizada pela ONG não teve respaldo de nenhuma esfera do poder público: “foi uma campanha realizada a partir da iniciativa privada e de organizações comunitárias. E isso é muito simbólico do momento que estamos em termos de política pública no Brasil”, disse Anhorn.

A experiência foi reveladora: “Mostrou a importância de se ter uma organização forte, com histórico de trabalho e com capilaridade no território. É um exemplo que mostra que, se houver cooperação entre políticas públicas governamentais, iniciativa privada e instituições da sociedade civil com atuação no território, e esse trabalho for realizado de forma transparente e eficaz, podemos produzir um impacto real em ações de nível local”, concluiu a pesquisadora.

Políticas públicas prioritárias

Afinal, que políticas devem ser prioritárias para pavimentar o caminho para a retomada do combate à fome no futuro próximo? As três convidadas trouxeram respostas convergentes.

“De caráter imediato, sem dúvida nenhuma é a garantia de uma renda mínima”, disse Anna Peliano. A afirmação foi reiterada por Ana Maria Segall e Maïra Anhorn. Outro ponto em comum foi a importância de se pensar em programas locais, que identifiquem problemas e soluções específicas. As parcerias e a descentralização, nesse caso, são essenciais. “Estamos confiantes com o modelo que conseguimos instaurar na Maré, de pensar soluções locais, de mobilizar parcerias e de atuar cotidianamente. Precisamos pensar também em programas de geração de renda, com foco nas mulheres”, acrescentou a coordenadora da ONG Redes da Maré.

Ana Maria Segall enfatizou a importância da participação da sociedade civil: “A sociedade precisa pressionar por políticas públicas de saúde e sanitárias mais efetivas, pois a pandemia está sacrificando os mais pobres. Precisamos de vacina e de atenção primária, isso é urgente para que se possa melhorar as condições das famílias”.

Para Saber Mais: 

Conheça iniciativas e campanhas de combate à fome e ajude com doações na campanha “Tem Gente com Fome”.

 

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Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.