O complexo industrial da saúde no Brasil: desafios e soluções para o futuro
A pandemia trouxe uma questão importante: por que dependemos tanto de importações de fármacos e de equipamentos de baixa complexidade?
O sistema de saúde brasileiro foi brutalmente afetado por problemas na cadeia de suprimentos médico-hospitalares e farmacêuticos — incluindo os IFAs, essenciais para a produção de vacinas, e outros produtos — mas a resposta às fragilidades expostas pela pandemia não está em tentar produzir todos os equipamentos, insumos e medicamentos internamente. Está, isto sim, em maior inserção das empresas brasileiras nas cadeias globais de produção, melhor articulação interna e externa nas áreas de pesquisa e desenvolvimento e investimento em inovação.
Essas foram as principais conclusões do webinar “O complexo industrial da saúde no Brasil: desafios que a pandemia escancarou e soluções para o futuro”, que teve como convidados quatro profissionais da área com larga experiência nos setores público e privado. Segundo eles, o Estado deve atuar como articulador e facilitador e garantir recursos à pesquisa científica básica e aplicada e ao desenvolvimento tecnológico.
“Desde o início da pandemia, o choque de oferta e de demanda na área farmacêutica foi se expandindo e mudando constantemente. Tivemos 1.000% de aumento de produção de alguns medicamentos, o que exigiu muita agilidade para obter os insumos necessários de várias origens. Se dependêssemos apenas de fornecedores brasileiros, dificilmente teríamos conseguido. A resposta a esse problema está em mais inserção global, não em menos.”
Martha Novelli Penna, vice-presidente de Estratégia e Inovação da Eurofarma.
“A urgência em decifrar o genoma do novo coronavírus e desenvolver uma vacina exigiu uma colaboração inédita entre os centros de pesquisa, as grandes empresas farmacêuticas, as startups e os governos de diversos países. Sem abrir mão da segurança, tivemos êxito em realizar pesquisas e ensaios clínicos em menos de um ano e, paralelamente, acelerar o processo de análise e aprovação dos imunizantes pelas agências responsáveis. Foi uma revolução no modelo de desenvolvimento de novos produtos e um aprendizado que trará benefícios posteriormente.”
Marco Aurelio Krieger, vice-presidente de Produção e Inovação da Fiocruz.
“A globalização é uma realidade nas áreas de pesquisa, desenvolvimento e produção de novas vacinas e medicamentos. Para participarmos desse processo, precisamos dar robustez a nosso ecossistema de inovação, que ainda é incipiente. Temos recursos humanos e financeiros, boas universidades e empresas. O governo pode ser mais pró-ativo, utilizando por exemplo o instrumento da encomenda tecnológica, já disponível mas, que eu saiba, raras vezes usado na área da saúde.”
José Fernando Perez, diretor-presidente da Recepta Biopharma.
“No Brasil, falta articular políticas públicas de longo prazo por meio de um diálogo organizado entre o governo federal, os governos estaduais, as universidades, os centros de pesquisa e a iniciativa privada. Também precisamos nos conectar com o que está acontecendo globalmente, tanto nas cadeias de suprimentos como de pesquisa e inovação tecnológica. A articulação com essas cadeias globais é fraca.”
Maurício Mendonça, diretor de Relações Institucionais da Sanofi no Brasil.
‘Em busca da melhor tecnologia para inovar’
“É ilusão imaginar que um grande parque nacional vá suprir a indústria farmacêutica de todos os farmoquímicos, frascos, tampas e outros insumos de que necessitamos para entregar o produto final ao consumidor brasileiro. A cadeia global de insumos começa na China ou na Índia, muda para a Itália ou para outros países até chegar às fábricas no Brasil. Essa cadeia muda o tempo todo e o desafio que enfrentamos é o de buscar novos parceiros e melhores fornecedores constantemente”, explicou Martha Novelli Penna, formada em medicina pela UFRJ. A Eurofarma é uma empresa farmacêutica multinacional de capital 100% nacional, com catálogo de quase 300 produtos.
Para a executiva, existe espaço para o Brasil inovar na área de saúde e se tornar mais relevante globalmente: “Discordo da ideia de que esse mercado esteja concentrado em poucos países. Pelo contrário, muitos países hoje têm força na área de inovação, como a Irlanda, o Canadá, a Coreia do Sul, Israel e, claro, a China. Temos boas universidades e institutos, cientistas competentes, empresas capitalizadas, startups, enfim tudo o que é necessário para trocas intensas e proveitosas com o resto do mundo.”
A inserção, no entanto, depende de boas parcerias. Como exemplo de parceria bem-sucedida envolvendo players de diversos países, a palestrante citou o acordo entre a Pfizer, farmacêutica multinacional sediada em Nova York, e a BioNtech, startup de biotecnologia alemã criada em 2008 por um casal de universitários alemães de origem turca, que resultou na descoberta da primeira vacina contra a Covid-19 autorizada para uso emergencial no Reino Unido e nos Estados Unidos, no início de dezembro de 2020. Em janeiro de 2021, a francesa Sanofi, uma das maiores fabricantes de medicamentos do mundo, anunciou que fabricará 125 milhões de doses da vacina Pfizer/BioNTech.
“A beleza do mundo globalizado em que vivemos é que podemos buscar a melhor tecnologia não importa onde ela esteja, e trabalhar de forma veloz e colaborativa, cada um entregando o que tem de melhor”, concluiu a palestrante.
O físico José Fernando Perez citou o exemplo de sua própria empresa, a Recepta Bio, fundada em 2006 por empresários brasileiros em parceria com o Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer: “Estamos na fase final do desenvolvimento de um medicamento imunobiológico para tratamento de câncer de colo de útero. Fizemos isso em colaboração com a empresa suíça 4-Antibody, que foi comprada pela norte-americana Agenus, nossa atual parceira. Ninguém inova sozinho.”
O geneticista Marco Aurelio Krieger, autor de várias publicações científicas e titular de seis patentes, destacou a importância do acordo da Fiocruz com a Universidade de Oxford e a AstraZeneca para a produção no Brasil de 110 milhões de doses do imunizante desenvolvido pela instituição britânica e o conglomerado anglo-sueco. Anunciado em 31 de julho de 2020, o contrato prevê a transferência de tecnologia para que a instituição vinculada ao Ministério da Saúde e sediada no Rio produza a vacina integralmente no Brasil, sem depender de insumos (IFA) importados. O cronograma de produção nacional sofreu atrasos, mas deve ganhar velocidade a partir do segundo semestre e em 2022 (veja informações mais detalhadas no site da Fiocruz).
“Está cada vez mais claro que a parceria internacional é o caminho para enfrentar com a agilidade necessária os grandes desafios impostos por novas epidemias. Não pode ser um sistema fechado, mas aberto e cooperativo”, defendeu o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz.
‘Encomendas tecnológicas a empresas brasileiras’
Perez defendeu mais ousadia no uso das Encomendas Tecnológicas, previstas no Novo Marco Regulatório Legal Da Ciência, Tecnologia e Inovação (2016), por parte dos governantes brasileiros. Segundo o ex-diretor científico da FAPESP, o Operação Warp Speed — parceria público-privada iniciada pelo governo dos Estados Unidos para facilitar e acelerar o desenvolvimento, a fabricação e a distribuição de vacinas, terapêuticas e diagnósticos contra Covid-19 — é um “exemplo da importância do apoio do Estado no coração do liberalismo econômico”.
“Os EUA destinaram recursos aos projetos de vacinas da Pfizer, da Moderna, da Janssen e também da Oxford/Astrazeneca, tendo como contrapartida a garantia de compra. Isso foi feito ainda durante o governo do negacionista Donald Trump. O resultado é que hoje o país tem doses suficientes para vacinar toda a sua população. A Alemanha, outra potência capitalista, também investiu na startup BioNTech, parceira da Pfizer”, disse.
Segundo Perez, o Science Business — definido por ele como os negócios ligados à inovação científica — é de grande complexidade e representa um grande desafio para os investidores: “Primeiro, o investimento é maior do que em áreas onde a ciência já está estabelecida. Segundo, leva-se tempo para se chegar a um produto. Por fim, existe uma grande incerteza no desenvolvimento de uma nova droga. Quando, por exemplo, você vai fazer o projeto de um avião, se dispuser de boa engenharia, você sabe que o avião vai voar. Se vai vender, é outro problema. Na área de saúde, você pode dispor dos melhores cientistas, mas só depois do ensaio clínico de fase 3 ou mesmo depois da droga já aprovada, vai descobrir se o avião voa ou não voa. É importante compreender essa complexidade da inovação em saúde.”
“O Brasil é um mercado grande, temos o SUS, temos o poder de compra do governo, ainda podemos pegar o bonde da inovação. Em primeiro lugar, tem que ter boa ciência, sem a qual não se faz nada. Isso significa investir fortemente em pesquisa básica e aplicada, no apoio às startups e às empresas. Temos recursos, como os de renúncias fiscais, que podem ser direcionados para objetivos específicos, selecionados com inteligência e foco”, defendeu Perez.
“O governo brasileiro pode ser mais pró-ativo e utilizar o instrumento das Encomendas Tecnológicas para apoiar a inovação no país. E não só para as vacinas. Para tudo. E tem que fazer isso com as empresas brasileiras. Por que não? Ainda podemos pegar esse bonde, mas está faltando coragem para as autoridades pegarem a caneta e assinarem os contratos. O governo norte-americano fez isso. É importante tirar lições do que foi feito durante a pandemia em outros países”, afirmou.
‘Fronteira do conhecimento se desloca rapidamente’
Segundo o economista Maurício Mendonça, que trabalhou no Ministério da Ciência e Tecnologia (1999-2002) e no IPEA (2003-2004), o Brasil “já perdeu bondes importantes, como no caso da produção de IFAs (Insumos Farmacêuticos Ativos), mas não está condenado a seguir a pé e ainda pode embarcar na onda de inovação que está acontecendo globalmente.”
“A fronteira do conhecimento está se deslocando mais rápido do que a nossa capacidade de acompanhar. Temos competências internas, mas a conexão com as cadeias globais é fraca e, se não pensarmos em políticas públicas de longo prazo, podemos perder o bonde novamente em áreas como biotecnologia, terapia gênica e nanotecnologia, por exemplo”, disse o diretor de Relações Institucionais da Sanofi no Brasil.
Segundo Mendonça, o mercado brasileiro é grande sob o aspecto do tamanho da população, mas não da renda per capita e do financiamento público. “A política dos medicamentos genéricos (implementada no país a partir de 1999) garantiu o acesso da população com menos recursos a medicamentos importantes. Mas é preciso pensar também em formas de ampliar o acesso a drogas de alto custo”, concluiu.
Para Saber Mais:
Ouça o podcast Luz no Fim da Quarentena, no qual o bioquímico brasileiro Fernando Reinach traduz didaticamente os mais recentes estudos e descobertas científicas sobre a Covid-19.
Leia a entrevista feita pela BBC Brasil com o imunologista norte-americano Anthony Fauci, conselheiro médico-chefe do presidente Joe Biden.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. É editor de conteúdo da Fundação FHC.