O futuro da ONU e sua importância para o Brasil
Neste evento, discutimos os desafios que enfrentam as Nações Unidas e o próprio multilateralismo, além de olhar para o futuro e pensar de que maneira isso afeta o Brasil.
No ano de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) completa seu 75º aniversário e se vê diante de grandes desafios. Além do devastador impacto sanitário, social e econômico causado pela pandemia de Covid-19, o mundo vive um aumento das desigualdades, uma aceleração da crise climática e uma escalada de tensões geoestratégicas. Há também riscos postos pelas novas tecnologias, como a violação de direitos humanos e da privacidade. Apresentando esse cenário, a embaixadora brasileira Maria Luiza Ribeiro Viotti, chefe de gabinete do escritório executivo do secretário-geral da ONU, António Guterres, abriu sua exposição no webinar “O futuro da ONU”, realizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso em parceria com o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).
Também participaram o ex-ministro das Relações Exteriores e conselheiro do CEBRI e da Fundação FHC, Celso Lafer, e o embaixador e conselheiro do CEBRI Gelson Fonseca. Os convidados trouxeram suas vastas experiências para discutir os desafios que enfrentam as Nações Unidas e o próprio multilateralismo, e também olhar para o futuro e pensar de que maneira isso afeta o Brasil.
Uma ONU mais diversa e inclusiva
A ONU marcou seus 75 anos com um processo amplo de pesquisa. O objetivo foi ouvir os anseios das populações, sobretudo dos jovens, e buscar inspirações para a superação desses desafios. Organizaram-se conversas globais sobre o tema “O futuro que queremos, a ONU que precisamos”, para que as populações pudessem indicar suas prioridades, preocupações e expectativas, e foram reunidas mais de 1 milhão de respostas em todos os 193 Estados-membros. A embaixadora apresentou as principais conclusões desse levantamento.
Primeiramente, destacou uma notável convergência entre os entrevistados de diversas regiões, idades e grupos sociais, em relação às prioridades para o futuro — melhoria de acesso aos serviços básicos, assistência médica, água potável, saneamento e educação.
“A segunda principal demanda é a de maior solidariedade internacional para ajudar os mais necessitados. Existe uma expectativa de que a recuperação pós-pandemia seja transformadora e resulte na construção de sociedades mais inclusivas e sustentáveis. Olhando para a frente, a preocupação é em relação às mudanças climáticas e à destruição do meio ambiente”, relatou Viotti. Para enfrentar esses desafios, os entrevistados esperam ver uma ONU mais representativa, diversa, transparente, inclusiva e eficaz.
“Acreditamos que agora é a hora de intensificar a ação”, disse a embaixadora. A grande prioridade da ONU, desde quando a pandemia de Covid-19 se instalou, passou a ser a contenção da propagação do vírus e a mitigação de seus efeitos. Para isso, a organização mobilizou-se para apoiar os países no enfrentamento da crise, buscando formas de aliviar as consequências sociais e econômicas — as ações incluem envio de medicamentos, testes e equipamentos de saúde para mais de 130 países, treinamento de quase 2 milhões de profissionais de saúde, além de uma intensa campanha para viabilizar o acesso universal às vacinas, quando estiverem disponíveis.
“A corrida pela vacina infelizmente vem se tornando extremamente politizada e marcada pela desinformação”, lamentou Viotti, explicando que, na ausência de um esforço coordenado de vacinação ampla, os impactos econômicos e sociais da pandemia tenderão a se prolongar no tempo, com efeitos severos e persistentes em termos de perda de empregos, níveis recorde de dívidas, falências e consequente aumento da pobreza e das desigualdades.
Cessar-fogo durante a pandemia
A embaixadora também citou — em relação ao tema da resolução de conflitos, razão de ser por excelência da ONU — o apelo ao cessar-fogo global lançado pelo secretário-geral, António Guterres, em março deste ano, assim que a OMS decretou a existência de uma pandemia no planeta. O cessar-fogo foi apoiado por cerca de 180 países, e por mais de 20 grupos armados, além de centenas de organizações da sociedade civil. Mas ainda não produziu os resultados desejados.
Com relação à crise climática, a grande preocupação da ONU é que haja um maior compromisso com a implementação das medidas determinadas no Acordo de Paris. Negociado durante a COP-21 e aprovado em 12 de dezembro de 2015, o tratado prevê medidas de redução de emissão de gases do efeito estufa a partir de 2020, a fim de manter o aquecimento global abaixo de 2 ºC. “A boa notícia nessa área é a grande mobilização da sociedade civil, do setor privado e de autoridades em nível local”, explicou.
Proteção na era digital
A nova era digital e seus efeitos sobre os direitos humanos foi um dos temas abordados. “Abriram-se novas fronteiras de bem-estar, conhecimento e inovação; no entanto as tecnologias têm sido usadas com muita frequência para violar direitos de privacidade, por meio de vigilância, repressão, assédio e ódio online. São também ferramentas usadas crescentemente por terroristas e traficantes de seres humanos. É importante que os avanços tecnológicos não sejam usados para minar os direitos humanos, aprofundar a desigualdade ou exacerbar a discriminação”, afirmou a embaixadora, explicando que o secretário-geral lançou, em meados de 2018, um relatório — elaborado por um painel de alto nível — que apresenta um conjunto de recomendações à comunidade internacional, com o propósito de contribuir para que todas as pessoas estejam conectadas, respeitadas e protegidas na era digital.
“Não obstante as divisões, as tensões e os conflitos que têm dominado o debate na organização, os países-membros puderam adotar, por consenso, uma declaração em comemoração aos 75 anos que é um verdadeiro manifesto de renovação do compromisso com a ONU e seus ideais, valores e princípios, e com o multilateralismo”, concluiu a embaixadora.
Perigos do unilateralismo
“O mundo hoje é polarizado, com conflitos e dificuldades de diálogo se multiplicando”, colocou Gelson Fonseca, “e uma das coisas que me choca é que, em vez de haver um movimento de cooperação entre os Estados, vemos crescer uma disputa política, com uma narrativa de confronto, mesmo quando as necessidades são claramente globais.”
A importância do multilateralismo, ainda mais no momento atual, foi reforçada pelos participantes do webinar. Sua função é criar mecanismos institucionalizados de cooperação entre os Estados, explicou Celso Lafer, apontando que as organizações internacionais multilaterais (como a ONU e a OMS) não provêm de uma “fantasia globalista”, mas de uma necessidade — a ONU é um centro destinado a harmonizar a ação das nações, cumprindo um papel de “terceiro” entre partes, atuando na solução pacífica de controvérsias, com a mediação, a conciliação e os bons ofícios.
Dada a realidade internacional, Lafer não crê na mera convivência de unilateralismos, reiterando que a lealdade em relação às propostas da ONU se faz cada vez mais relevante. A articulação dos interesses gerais do Brasil, na dinâmica de funcionamento do mundo, só pode ser realizada nas instâncias multilaterais. “Não perceber o papel da ONU é uma das grandes opacidades evidenciadas na condução da política externa brasileira, que almeja para o nosso país a condição de pária internacional”, disse, citando a filósofa alemã Hannah Arendt: “Somos do mundo, não apenas estamos no mundo”.
Contra a crescente retórica — que ganha apoio em alguns países — de que a ONU significaria uma limitação à autonomia dos Estados nacionais, representando uma infringência da soberania popular, os participantes do webinar se colocaram, de maneira enfática, em defesa da organização. “Os assuntos do mundo e dos países não podem ser resolvidos apenas no âmbito exclusivo do seu espaço territorial. Mudança climática é o exemplo mais óbvio de todos, pois é uma questão indivisível”, disse Lafer.
Gelson Fonseca acrescentou que as decisões da ONU são uma combinação de interesses nacionais e têm origem em pontos de acordo entre os Estados, o que contraria quem desqualifica a organização alegando que ela seja um mecanismo “supranacional”. O embaixador concluiu elogiando a ação do secretário-geral Guterres em seu empenho de chamar a atenção para os problemas dramáticos que afetam a comunidade internacional como um todo: “alguém precisa falar e encarnar essa vontade”. O embaixador reiterou que, mesmo em tempos de crise, a ONU historicamente criou um conjunto de agências, regras e instituições que permitem olhar para os interesses da comunidade internacional.
Assista ao vídeo: O mundo sob pandemia: uma conversa entre Manuel Castells e FHC
Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.