Pascal Lamy: perspectivas do mercado global e da União Europeia
“A Europa agirá de acordo com seus próprios valores e interesses geopolíticos, econômicos e comerciais e não aceitará pressões seja de EUA ou China”, disse Pascal Lamy, ex-diretor da Organização Mundial do Comércio, neste evento on-line.
A rivalidade EUA-China veio para ficar e o melhor que a Europa pode fazer é fortalecer sua união para ter mais autonomia em relação a Washington e Pequim e trabalhar pelo resgate do multilateralismo como caminho para resolver os problemas de um mundo mais fragmentado, mais complexo e mais desigual no período pós Covid-19.
“A UE se prepara para adotar uma postura de autonomia, evitando o alinhamento sistemático a um lado ou ao outro, pois EUA e China são ao mesmo tempo concorrentes e parceiros da Europa, dependendo do assunto ou do momento. Portanto, a Europa agirá de acordo com seus próprios valores e interesses geopolíticos, econômicos e comerciais e não aceitará pressões seja de Washington ou de Pequim. Para isso, é fundamental estar forte e unida”, disse o francês Pascal Lamy, ex-diretor da Organização Mundial do Comércio (2005-2013) e atual presidente do Fórum da Paz de Paris, neste webinar da Fundação FHC e do CEBRI.
A pandemia do novo coronavírus deu novo estímulo ao processo de integração europeu, que parecia estar em risco na década passada. O mesmo pode acontecer em relação à disputa sino-americana. “A integração europeia sai da crise provocada pela pandemia em relativa boa forma, pois os 27 países-membros mostraram ser capazes de superar suas divergências e aprovar um pacote de recuperação econômica de 750 milhões de euros, com garantia da própria União Europeia. Foi um grande passo adiante no sentido de uma maior solidariedade financeira e fiscal no continente”, afirmou o palestrante, um dos principais especialistas em temas relacionados ao comércio global. O evento teve comentários e perguntas do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan.
De olho em Biden e Trump
Para o ex-comissário de Comércio da União Europeia, o resultado das eleições norte-americanas de 3 de novembro ditará o tom do enfrentamento entre Estados Unidos e China nos próximos anos: “Se Joe Biden vencer, o mais provável é que Washington adote uma estratégia mais ‘kissingeriana’ para lidar com Pequim. Já Trump enxerga a China como uma ameaça aos EUA e fará o que puder para dificultar e atrasar seu avanço.”
Em 1972, em plena Guerra Fria, o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, fez uma viagem histórica à China comunista com o objetivo não apenas de isolar a União Soviética (que acabou por ruir em 1991), mas também de iniciar uma paulatina aproximação com a nação mais populosa do planeta, que nas décadas seguintes se tornaria um ator econômico e depois também político cada vez mais relevante. Apesar da crescente rivalidade, principalmente no campo das novas tecnologias (5G, Inteligência Artificial, cibersegurança, energias renováveis etc.), as economias chinesa e norte-americana são hoje de tal forma entrelaçadas que a possibilidade de a disputa sair do controle é pouco provável.
Segundo diferentes analistas, existe hoje um consenso em Washington de que os EUA não podem ficar de braços cruzados diante de uma China decidida a conquistar cada vez mais espaços mundo afora por meio do comércio, investimentos em infraestrutura e exportação de novas tecnologias. A diferença é que um governo democrata buscaria formar uma aliança para conter Pequim com tradicionais aliados norte-americanos na Europa e na Ásia/Oceania. Já Trump (se reeleito) redobraria a aposta em um enfrentamento mais direto, baseado em sanções, barreiras e pressões internacionais.
“Tanto os EUA como a China se sentem hoje vulneráveis em relação ao outro. Pequim teme que Washington atue politicamente para enfraquecer o regime. Washington teme o avanço econômico, comercial e principalmente tecnológico da China. A pandemia piorou as coisas”, disse Lamy.
Como exemplo de algo que incomoda a Europa, Lamy citou as sanções comerciais impostas pelos EUA ao Irã após o fim do acordo nuclear, anulado por Trump. “Imagine se Trump (reeleito) decidir impor sanções mais drásticas à China, como fez com o Irã, prejudicando vultosos investimentos europeus no país asiático e colocando em risco as relações comerciais entre China e UE?”, perguntou, lembrando que as sanções americanas atingem também as empresas que têm negócios com o país sancionado.
“A estratégia de adoção de sanções unilaterais por parte de Washington tem um forte potencial divisivo nas relações entre Europa e Estados Unidos. Não há dúvida de que a UE adotará contramedidas no caso de os EUA optarem por uma política de contenção da China com impactos negativos ao comércio europeu”, disse.
Pandemia aprofunda divisão Norte-Sul
Além da divisão Leste-Oeste, a crise econômica e fiscal decorrente da pandemia do novo coronavírus também deve aprofundar a distância econômica entre os hemisférios Norte (onde fica a maioria dos países desenvolvidos) e Sul (que concentra boa parte das nações em desenvolvimento). “Enquanto o mundo desenvolvido despejou cerca de US$ 20 trilhões em suas respectivas economias para contrabalançar as consequências negativas das medidas de isolamento social, a outra metade do planeta, representada pelos países mais pobres, foi deixada ao relento”, criticou o palestrante.
“É um privilégio da parte mais rica do mundo emprestar dinheiro com prazos de pagamento de até 30 anos e taxas de juros próximas de zero ou negativas. O restante (dos países) vai sofrer muito mais (com a crise econômica decorrente da Covid-19)”, continuou.
Para Lamy, os países menos desenvolvidos terão sua capacidade de desenvolvimento e crescimento econômico reduzida no pós-pandemia, o que aprofundará desigualdades econômicas e sociais e ampliará pressões e divergências de diversos tipos. “Em um mundo mais instável, complexo e perigoso, os desafios da colaboração entre os países e da governança internacional, que já não eram pequenos, se tornam ainda maiores”, disse.
A intervenção estatal massiva nas economias também têm um efeito distorcivo na competitividade dos países no comércio mundial e as regras da Organização Mundial do Comércio (OMS) relativas à ajuda estatal são frágeis.
‘Precaucionismo’ é nova tendência
Entre os aspectos positivos que podem resultar da pandemia estão a preocupação com um planeta mais sustentável e resiliente, mas Lamy alerta para o que chamou de “precaucionismo”. “Mais do que o protecionismo, é o precaucionismo que pode colocar obstáculos ao processo de globalização, ao comércio internacional e ao crescimento da economia mundial”, alertou.
Segundo o analista, diversas nações devem adotar medidas para proteger cada vez mais suas populações de riscos ligados às condições sanitárias, à segurança alimentar e cibernética, à dependência em relação a produtos importados essenciais, ao movimento de pessoas e à mudança climática, entre outras ameaças. “O mundo já sabe como lidar com excessos de protecionismo, sobretudo por meio da Organização Mundial do Comércio, mas medidas precaucionistas estão em um campo mais desconhecido e difícil de regular”, disse.
Para o especialista, a Europa tem três grandes desafios nos próximos anos: aprofundar seu processo de integração, acelerar a transição rumo a economias e sociedades mais sustentáveis e fortalecer o multilateralismo, em crise já há alguns anos: “Como reviver o multilateralismo no mundo pós Covid-19? Este é o tema do próximo Fórum da Paz de Paris, que acontecerá em novembro. Queremos engajar não somente lideranças políticas e governos, mas principalmente ONGs, think tanks, companhias, instituições acadêmicas, cidades e regiões.”
A determinação de líderes como a veterana Angela Merkel (Alemanha) e o relativamente novato Emmanuel Macron (França) de avançar com o projeto europeu pode fazer a diferença em momentos desafiadores como o atual, mas o mais importante é o apoio da opinião pública. “Historicamente cerca de 60% da população europeia é favorável ao processo de integração europeu. Durante (e após) a crise financeira global e suas repercussões na zona do euro (2008-2012), esse apoio caiu a menos de 50%, devido ao baixo crescimento econômico, ao alto desemprego e à imigração ilegal, mas com a pandemia voltou ao patamar de 60%”, explicou.
‘UE não ratificará acordo com Mercosul’
Quais são as perspectivas da América Latina e do Brasil neste mundo mais instável e perigoso?, perguntou Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC. Para Lamy, a América Latina tem um nível muito baixo de integração com o comércio global (só fica atrás da África e do Oriente Médio) e essa desvantagem está sendo agravada pela velocidade da inovação, da digitalização e do que ele chamou de “economia desmaterializada”. “Se já é difícil para a Europa competir com os EUA e a China nos campos da tecnologia e da inovação, para os países latino-americanos o desafio é ainda maior”, disse.
A mudança de rumo do Brasil nas políticas ambiental e externa preocupa: “A atual administração brasileira praticamente tirou o Brasil do sistema de cooperação internacional, onde o país vinha conquistando cada vez mais relevância desde o início do Século 20. Também as notícias de devastação na Amazônia isolam o país.”
Segundo Lamy, não existe a menor chance do acordo Mercosul-União Europeia ser ratificado pelos países europeus enquanto o Brasil não mudar de rumo e começar a apresentar resultados positivos em relação à proteção da Amazônia.
“Quando ocupei posições de liderança na Europa, sempre defendi o acordo com o Mercosul, entre outros motivos para garantir que o Brasil continuaria do lado certo no combate ao aquecimento global. Mas esse argumento parece não ter dado resultado. Basta olhar para os incêndios que destroem a Amazônia e outras partes do país neste momento. Enquanto o Brasil não mudar sua política ambiental, não há chance de o acordo UE-Mercosul sair do papel”, concluiu.
Assista ao vídeo: Manuel Castells e FHC: O mundo sob pandemia
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.