Debates
16 de julho de 2020

A questão racial no Brasil: o que mudou, o que falta mudar e o papel do movimento negro

O maior desafio da luta contra o racismo é garantir que o aparato jurídico-legal que foi construído desde a redemocratização se enraíze na sociedade brasileira.

O maior desafio da luta contra o racismo no Brasil é garantir que o aparato jurídico-legal que foi construído desde a redemocratização se enraíze na sociedade brasileira, tanto nas instituições públicas como privadas, e não haja retrocesso. A tradução da letra da lei em prática concreta é especialmente importante na área de segurança pública, haja vista o tratamento com frequência discriminatório dispensado pela polícia a populações mais pobres, na sua maioria compostas de pardos e negros. Também importante para o avanço da luta antirracismo é que um número maior de homens e mulheres negros, ainda hoje flagrantemente sub-representados, ocupem posições de poder no Executivo, Legislativo e Judiciário, nos três níveis de governo da Federação.

Essas foram as principais conclusões deste webinar, cujo objetivo foi discutir como e por que a questão racial ganhou destaque na agenda política do Brasil e o papel do movimento negro nesse processo. Como palestrantes convidados, dois jovens e talentosos cientistas sociais negros que acumulam significativa bagagem de pesquisa e atuação nessa área: os professores Flavia Rios (Universidade Federal Fluminense) e Luiz Augusto Campos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Além de refletir sobre o movimento antirracismo no Brasil no contexto da onda de protestos provocada pelo assassinato do afro-americano George Floyd por um policial branco de Cincinnati em 25 de maio de 2020, o evento também teve a intenção de divulgar o projeto Linhas do Tempo 1985-2018, recém-lançado pela Fundação FHC, que destaca a “Questão Racial”, entre outros temas que marcaram a construção da cidadania nesse período.

“O antirracismo brasileiro tem uma longa tradição que vem desde antes da abolição da escravatura, mas é principalmente a partir dos anos 1950 que ativistas, intelectuais e artistas começaram a atuar de forma mais articulada e consistente para desconstruir o mito de que nosso país seria uma democracia racial”, disse Flavia, que coordena a licenciatura em Ciências Sociais da UFF e o Grupo de Estudos Guerreiro Ramos (NEGRA).

Estudos sobre relações raciais e preconceito no Brasil

Rios citou especificamente estudos acadêmicos sobre as relações raciais e o preconceito racial no Brasil realizados pelo sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974) após sua chegada ao Brasil em 1938 para lecionar sociologia na recém-criada USP e, em décadas posteriores, pelos brasileiros Luiz Aguiar Costa Pinto (1920-2002), Florestan Fernandes (1920-1995), Octavio Ianni (1926-2004) e Fernando Henrique Cardoso (nascido em 1931).

“O importante trabalho desses e de outros pesquisadores e das instituições onde atuavam teve desdobramentos no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que passou a produzir dados sobre as desigualdades no Brasil de forma mais sistemática, construindo assim uma base para as futuras políticas públicas de enfrentamento do racismo a partir da crescente pressão exercida por grupos ligados ao movimento negro, com o apoio de ativistas de outras causas, entre eles trabalhadores e feministas”, disse.

Luta pela democracia impulsiona movimento antirracismo

Se a questão racial já havia adquirido destaque no mundo acadêmico, sob uma perspectiva crítica, foi só com a redemocratização do país que ela ganhou a arena política. O movimento negro se organiza ao final dos ano 70, estabelece relações com os partidos políticos de oposição ao regime militar, se faz presente em conselhos de defesa de direitos da população negra, criados por governadores eleitos pelo PMDB e pelo PDT em 1982, e busca incorporar as suas reivindicações na Constituição de 1988, conseguindo tornar o racismo um crime (pela Lei Afonso Arinos, de 1951, era considerado uma contravenção).

Para Rios, embora o governo Sarney tenha criado em 1988 a Fundação Cultural Palmares, em homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares (1655-1695), foi no governo de Fernando Henrique Cardoso que “começamos a ver uma maior interação do Estado brasileiro com o movimento negro, por meio do reconhecimento de Zumbi dos Palmares como herói nacional, da progressiva titulação de terras quilombolas e do início do debate sobre políticas de ação afirmativa”.

Segundo a pesquisadora, as políticas públicas em favor da igualdade racial avançaram nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), que para essa finalidade criou uma secretaria vinculada à presidência da República, com status de ministério, e impulsionou no Congresso a aprovação Estatuto da Igualdade Racial em 2010. Em paralelo, um número crescente de universidades federais passou a adotar cotas raciais no ingresso de novos alunos, política cuja constitucionalidade foi estabelecida em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal. No mesmo ano, a então presidente Dilma Rousseff (2011-2016) sancionou a Lei de Cotas para o Ensino Superior.

“Faço essa retrospectiva para refutar a ideia de que exista uma passividade da população brasileira em relação ao racismo. Ainda há muito a ser feito, mas é importante rejeitar informações pouco qualificadas ou mesmo falsas e conhecer a verdadeira história política do antirracismo no Brasil”, concluiu a professora em sua fala inicial.

“O movimento antirracismo é uma rede complexa e ampla. Pesquisas universitárias, instituições públicas e privadas e ONGs têm sido fundamentais na produção de estudos, divulgação de dados e pressão política”, concordou Luiz Augusto Campos. “Mas foi nos últimos 40 anos que o Estado brasileiro começou a tomar para si a responsabilidade de propor políticas estruturais antirracistas. Durante os governos FHC, Lula e Dilma, houve progressividade dessas políticas. É importante que as novas gerações tenham consciência disso”, disse o coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).

‘Política brasileira ainda é majoritariamente branca’

Apesar dos avanços, a política brasileira ainda é majoritariamente branca e só será possível falar em políticas antirracistas de maneira sustentada quando políticos e gestores públicos tiverem perfis mais diversos do que no presente, disse o autor do livro “Ação Afirmativa: história, conceito e debates” (EdUERJ, 2018). “Por que há poucos políticos e políticas negras no Brasil? O problema não é a falta de candidaturas pretas e pardas. Elas existem, mas dificilmente conseguem se eleger. O gargalo está principalmente no financiamento das campanhas desses candidatos e candidatas negros”, disse.

“Existe uma miríade de possibilidades de políticas públicas para estimular uma maior participação negra na política, mas elas têm de ser pragmáticas. São as Executivas dos partidos  que definem o uso dos recursos do Fundo Partidário Eleitoral destinados a cada agremiação. Daí a importância das direções partidárias serem mais democráticas e diversas”, afirmou o sociólogo.

O pesquisador também destacou a importância de cotas raciais nos concursos públicos, instituídas em lei desde 2014 para a Administração Pública Federal, principalmente para a Magistratura: “O Estado brasileiro atende principalmente pobres e negros, mas é gerido por gestores e políticos brancos. Isso precisa mudar.” Segundo Campos, raça no Brasil não é um tema entre outros, mas uma questão transversal. “A dimensão racial se expressa em todos os principais problemas ainda não superados no Brasil, entre eles a desigualdade social, a violência, o acesso à educação, à saúde e à moradia”, concluiu.

Feminismo negro

Segundo Flavia Rios, o movimento negro brasileiro vive um período de renovação capitaneado pelas mulheres. “São as mulheres negras periféricas que estão assumindo a linha de frente desse combate. E isso é uma ótima notícia”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.