Relações entre Estado, mercado e sociedade civil – Uma conversa com Raghuram Rajan
O professor da The University of Chicago falou sobre a importância dos laços comunitários de cooperação e solidariedade para contrabalançar a concentração de poder nos mercados e no Estado.
Os países e a comunidade internacional devem buscar uma nova moldura institucional, política e econômica que permita que a globalização siga seu curso e, ao mesmo tempo, garanta mais voz e poder às comunidades locais ou regionais, frequentemente negligenciadas pelo Estado (governo central) e pelo mercado. Esse desafio se torna ainda mais urgente diante da crise econômica e social decorrente da pandemia de Covid-19.
“Afinal, são as diferenças locais e regionais que são a base do sentimento de que temos um lugar no planeta e nos fazem, cada um de nós, únicos.”
Raghuram Rajan, professor titular de Finanças da The University of Chicago (Booth School).
Neste webinar em que apresentou as teses centrais de seu livro “The Third Pillar: How Markets and the State Leave the Community Behind” (2019), o economista indiano – governador geral do Banco Central da Índia de 2013 a 2016 – foi entrevistado pelo ex-ministro da Fazenda Pedro Malan (1995-2003) e por Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, que realizou o evento em parceria com o CEBRI.
“Em toda a minha vida adulta, nunca estive tão preocupado com o rumo que a humanidade está tomando. A pandemia do novo coronavírus e a profunda crise econômica resultante dela tornam ainda mais importante o equilíbrio correto entre Estado, mercado e comunidade. Sua obra mais recente descreve por que essa relação está desequilibrada, sendo a comunidade o elo mais frágil. Pode nos explicar como chegou a essa conclusão e o que deve ser feito para encontrar um novo equilíbrio?”, perguntou o economista brasileiro.
“Os mercados são em geral uma coisa boa, e quanto mais livres eles forem melhor. O Estado sempre terá papel essencial. O terceiro pilar – o papel da comunidade local ou regional – vem perdendo força devido à globalização e ao surgimento das cadeias globais de valor, impulsionadas pela revolução tecnológica e das comunicações”, disse o economista-chefe e diretor de pesquisa do Fundo Monetário Internacional de 2003 a 2006. “Diversos mercados emergentes se beneficiaram desse processo, pois souberam se transformar e exportar. Os países industrializados também, mas, se avaliarmos os resultados no mundo e dentro dos países, o que vemos é um resultado bastante desigual.”
Nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, esse equilíbrio entre os três pilares – Estado, mercado e comunidade – resultou no êxito das democracias liberais no mundo industrializado: “Muitos de nós, nos mercados emergentes, tentamos seguir pelo mesmo caminho visando atingir padrões de prosperidade e estabilidade semelhantes. Infelizmente, isso não aconteceu como esperávamos e, nas duas primeiras décadas do século 21, populações de diversos países começaram a demonstrar desilusão com aquele modelo. Esse processo é, em parte, responsável pela crise da democracia representativa e pelo surgimento de projetos de poder iliberais”, explicou Rajan.
‘Desigualdade espacial’
A expansão da globalização a partir dos anos 1990 e a rápida mudança tecnológica e das comunicações – com digitalização acelerada, crescente automação e a popularização das redes sociais – são outros elementos do processo. “Com a emergência das cadeias globais de produção e a transferência de fábricas de países desenvolvidos para o mundo em desenvolvimento, pequenas ou médias cidades de países ricos perderam empregos, renda e arrecadação. Os mais atingidos foram os trabalhadores com nível educacional mediano, que antes tinham empregos estáveis e salários razoáveis e, de repente, viram-se sem perspectivas. Processo semelhante atingiu o setor de serviços, com a automação e a terceirização”, disse.
“Já habitantes de grandes centros urbanos, como Nova York, São Paulo ou Mumbai, com alto nível educacional, globalizados e digitalizados, passaram a ter melhores oportunidades de trabalho e salários cada vez mais altos, aprofundando a desigualdade social mesmo nos países ricos”, continuou o palestrante. Essa classe urbana privilegiada se deu melhor mesmo durante a pandemia, pois pode trabalhar em casa, com segurança e conforto.
“A desigualdade hoje não se reflete apenas na qualidade dos postos de trabalho e na renda, mas é também espacial. Atinge mais fortemente comunidades nos subúrbios ou em cidades pequenas, cujas indústrias ou empresas foram esmagadas e nada foi colocado no lugar. Enquanto isso, Londres, San Francisco e Milão vão de vento em popa”, disse.
Por fim, com a formação dos grandes blocos econômicos (como a União Europeia, o Nafta e outros), houve crescente pressão para que o arcabouço legislativo e regulatório nacional caminhasse progressivamente para uma harmonização supranacional ou mesmo global, tornando mais fácil para as corporações atuarem através das fronteiras nacionais. “Essa perda (de poder) do local para o nacional e, em seguida, para o supranacional é o que explica, por exemplo, o Brexit (2016), referendo em que a maioria dos britânicos (entre os que foram às urnas) se manifestou contrária à transferência de poder para Londres e Bruxelas (sede da UE)”, afirmou.
Segundo Raghuram, membro do Group of Thirty, os governos centrais têm sido negligentes ou deram respostas inadequadas a esse complexo fenômeno e são em parte responsáveis pela emergência de movimentos e líderes nacionalistas, protecionistas e populistas em países importantes do mundo.
É esse conjunto de fatores que explica a eleição de Donald Trump à Casa Branca também em 2016, com as promessas de trazer de volta para os Estados Unidos fábricas e empresas que se mudaram para países em desenvolvimento (sobretudo na Ásia), rever acordos comerciais, aumentar tarifas de importação e limitar a imigração.
“Não é novidade para ninguém que a eleição norte-americana de 2016 foi decidida nos chamados fly over states e no meio-oeste, onde, além do desespero econômico resultante da ausência de empregos, houve uma importante desintegração social, com aumento de divórcios, violência e abuso de álcool e drogas. Jovens e famílias com filhos pequenos abandonaram suas comunidades, num círculo vicioso em que os que ficaram para trás não têm como reagir a não ser pelo voto. Naquele momento, a escolha foi Trump”, disse.
‘Populistas trazem perguntas certas, mas respostas erradas’
Segundo o professor e pesquisador, esse processo complexo já vem ocorrendo há algum tempo, mas os líderes políticos descuidaram das comunidades que ficaram para trás. Ele criticou soluções idealizadas centralmente, nas capitais, que, no entanto, “nem sempre são a resposta certa para o que as comunidades realmente precisam”.
Como exemplo, ele citou a concessão de subsídios para grandes empresas se estabelecerem fora dos grandes centros. Foi o caso, por exemplo, da Amazon.com, que anunciou a criação de uma nova sede em Long Island (costa este dos EUA). “Diversas comunidades da região se opuseram, pois a Amazon.com atrairia uma mão de obra altamente especializada (programadores e gerentes) mas não empregaria trabalhadores locais pouco familiarizados com o mundo digital. O resultado seria a alta dos aluguéis e mais competição por vagas em escolas”, explicou.
“Os líderes nacionalistas/populistas têm trazido para o debate público questões pertinentes, e têm recebido apoio por causa disso, mas oferecem respostas erradas. O mais provável é que substituam um conjunto de problemas por outro”, afirmou. “Um dos riscos desse discurso nacionalista é que ele precisa constantemente de novos inimigos para satisfazer sua base de apoio, principalmente nas redes sociais.”
Raghuram propôs que a comunidade política, acadêmica e a sociedade civil reflitam sobre como promover soluções locais/regionais que reforcem o poder das comunidades, sem, no entanto, abrir mão dos aspectos positivos de um mundo cada vez mais interconectado: “O antídoto a esta situação complicada em que estamos imersos é enfatizar o sentimento de pertencimento a uma comunidade de verdade sem que isso se transforme em fonte de alienação e isolamento.”
“Se o governo central efetivamente abrir mão de poder e transferir decisões e recursos para o poder local de forma articulada e eficaz, as pessoas participarão mais das soluções, ainda que pequenas, e a democracia se fortalecerá.”
“A comunidade é a antítese da volatilidade dos mercados e da economia. É para elas que as pessoas retornam em momentos de grave crise, como a que estamos vivendo agora em todo o mundo”, afirmou. Como exemplo, ele citou o êxodo de dezenas de milhares de trabalhadores indianos das grandes cidades para suas vilas de origem, caminhando centenas de quilômetros a pé depois que o governo decretou lockdown. “O governo em Déli ou nas capitais provinciais não oferecem redes de proteção a esses trabalhadores migrantes que vivem precariamente. A vila onde nasceram e cresceram é o único lugar onde eles sabem que serão acolhidos em qualquer situação”, disse.
A tecnologia pode ser uma aliada nessa descentralização, por meio da telemedicina, da educação a distância e do trabalho online. “Minha esperança é que, cada vez mais, a tecnologia distribua a atividade econômica por todo o território nacional, em vez de concentrá-la nos grandes centros. Para isso, é fundamental investir em inclusão digital universal e gratuita”, concluiu.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.