Debates
28 de maio de 2020

A União Europeia e a América Latina frente à crise – Um diálogo entre Durão Barroso e FHC

Os interesses mútuos da União Europeia e da América do Sul, em especial o Brasil, foram o fio-condutor desta conversa entre dois estadistas de nosso tempo.

Após uma hesitação inicial que durou cerca de quatro semanas, a União Europeia tomou consciência do tamanho da crise sanitária, econômica e social resultante da pandemia do novo coronavírus. Suas principais lideranças políticas e institucionais se articulam para montar um contundente pacote de ajuda aos países mais atingidos, cujo valor total será superior a 1 trilhão de euros.

“Desta vez, a reação foi mais rápida e mais forte do que durante e após a crise financeira global de 2008-2009 (cujo impacto na Europa se estendeu por muitos anos). Naquela oportunidade, demoramos até quatro anos para agir adequadamente, agora foram algumas semanas. O pacote está causando muita polarização e drama entre os 27 países-membros, mas vai sair e provará mais uma vez a resiliência da Europa”, afirmou o ex-presidente da União Europeia José Manuel Durão Barroso (2004-2014) em Live com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

A dívida resultante deverá ser assumida pelo bloco como um todo, e não pelos 27 países-membros individualmente, muitos deles já sobrecarregados do ponto de vista fiscal. Para pagá-la, a UE cogita  criar, a partir de 2024, novas taxas sobre emissões de dióxido de carbono e resíduos plásticos não recicláveis em todo o continente, além de um imposto digital, cujo alvo são as empresas globais de tecnologia, que frequentemente escapam da tributação nos países onde vendem produtos e serviços.

FHC e Durão Barroso defenderam a ratificação do acordo entre a UE e o Mercosul para enviar um sinal à comunidade internacional de que o comércio, a cooperação e o multilateralismo continuam a ser o melhor caminho para o desenvolvimento global. “Como já estamos vendo, a crise resultante da pandemia de Covid-19 vai acelerar e aprofundar a disputa tecnológica e comercial entre EUA e China. A UE e o Mercosul, com o Brasil à frente, devem dar o exemplo de quão importante é lutar contra os protecionismos e preservar uma ordem mundial aberta e colaborativa. Quanto mais polos de poder existirem no mundo, melhor. Juntos, UE e Mercosul são mais fortes”, defendeu Fernando Henrique.

Destruição da Amazônia adia acordo UE-Mercosul

O ex-primeiro ministro português (2002-2004) alertou, no entanto, ser improvável a ratificação do acordo UE-Mercosul enquanto o desmatamento e as queimadas na Amazônia continuarem aumentando sem que haja uma resposta clara, eficaz e permanente por parte do atual governo brasileiro, cada vez mais visto no exterior como contrário à agenda ambiental. O acordo UE-Mercosul foi anunciado em 2019 após quase 20 anos de negociações, mas para entrar em vigor precisa ser ratificado pelo Parlamento europeu e pelos parlamentos dos quatro países do Mercosul (o acordo passará a valer para cada um dos membros do bloco quando o respectivo Congresso o ratificar). .

“A Europa fez um pacto ambiental para atingir a neutralidade em suas emissões de carbono em 2050. As lideranças políticas de direita e de esquerda, tanto no Parlamento europeu como nos parlamentos nacionais, mas também as empresas e as populações de todos os países, estão firmemente comprometidas com essa agenda. A Amazônia é um símbolo do compromisso do Brasil (ou da falta dele) com o meio ambiente. O argumento de que o governo brasileiro não está agindo para conter o desmatamento será usado para adiar o acordo”, disse Durão Barroso. O acordo com o Mercosul sofre forte resistência na Europa devido à força do agronegócio sul-americano, visto como ameaça por produtores europeus, e à crescente preocupação ambiental entre os eleitores e consumidores europeus.

Segundo o palestrante, “a diplomacia da mudança climática será um elemento fundamental nas relações da Europa com o resto do mundo nas próximas décadas.”

Angela Merkel e o legado europeu

Durão Barroso, que presidiu a Comissão Europeia (braço executivo da UE, com sede em Bruxelas) por uma década, chamou atenção para o fato de que a Alemanha (maior economia do continente) assumirá a presidência rotativa da UE no segundo semestre e sua chanceler, Angela Merkel, de longe a líder mais experiente e respeitada da Europa, certamente não desperdiçará a oportunidade de avançar no enfrentamento conjunto da crise e também levar adiante a reforma do bloco, urgente e necessária diante do recrudescimento do nacionalismo e do populismo no velho continente.

“É óbvio que a chanceler defende os interesses da Alemanha, mas ela também tem um legado europeu a proteger. Tenho certeza de que Merkel colocará todo seu peso político a favor da UE em um momento tão crucial. Também é uma boa notícia o fato de que ela e o presidente Emmanuel Macron estão se entendendo, pois, embora a união de França e Alemanha não garanta que a UE chegue a um acordo, é condição necessária para que isso aconteça”, explicou. Merkel, que cumpre seu quarto e provavelmente último mandato como primeira-ministra, se opôs inicialmente à proposta de endividamento da União Europeia para apoiar os países-membros mais atingidos pelo coronavírus (como Itália e Espanha), mas logo mudou de ideia e passou a trabalhar para estruturar a ajuda. 

Durão Barroso quer ‘Europa geopolítica’

“A Europa deveria caminhar no sentido de substituir o conceito de soberania nacional pelo de soberania europeia. Afinal, somos 27 países-membros relativamente pequenos se comparados ao tamanho de Estados Unidos, China, Índia, Rússia ou Brasil. Para defender nossos interesses em um mundo cada vez mais competitivo e em rápida transformação, sou favorável a uma Europa consciente da importância de sua união para ter mais voz e influência no mundo. Uma Europa geopolítica”, disse o ex-premiê português. 

Segundo ele, diversos pontos da extensa agenda contemporânea, que inclui segurança digital, proteção de dados pessoais, monopólios na área tecnológica, aquecimento global e outras questões ecológicas, desemprego crônico e novas formas de trabalho, aumento da desigualdade social e da imigração ilegal, entre outros, devem ser analisados e encaminhados pela Comissão Europeia, pelo Parlamento Europeu e pelos governos e parlamentos dos países-membros a partir dessa ótica geopolítica.

“Trump repete todo dia o slogan ‘America First’. Putin quer ‘fazer a Rússia grande novamente’. Pequim atua para aumentar a influência chinesa no mundo. A UE também deve pensar sobre seus interesses e defendê-los conjuntamente, sem prejuízo das identidades nacionais. Já está claro que nunca seremos os Estados Unidos da Europa, mas é fundamental nos posicionarmos de forma unida, consistente e coerente em relação ao resto do planeta. Para isso, temos de ser mais geopolíticos”, concluiu.

FHC defende ‘economia social de mercado’

Para o sociólogo e ex-presidente brasileiro, a pandemia deixou claro que o Estado terá de exercer um papel mais relevante no curto prazo e também a médio prazo e longo prazos, em combate permanente à desigualdade social e na construção de uma economia social de mercado.

“O governo não deve substituir a sociedade, mas é preciso governo. Não importa tanto se ele é de esquerda ou de direita, esses são conceitos ultrapassados, mas sim se é um bom governo ou um mau governo. As empresas têm papel fundamental, mas o Estado deve regulamentar o mercado, cobrar impostos de forma justa e eficaz e redistribuir os recursos através de serviços de qualidade para toda a população”, afirmou.

FHC propôs a discussão de programas que possam reduzir a desigualdade num contexto de aumento agudo do desemprego, tanto em função da atual crise como da revolução tecnológica em curso. “É hora de quebrar paradigmas e colocar em prática ideias que às vezes podemos considerar utópicas, como uma renda básica universal”.

“Cada vez mais nos damos conta, principalmente nos países em desenvolvimento, inclusive na América Latina e no Brasil, que a desigualdade social é incompatível com o bom funcionamento da democracia a médio e longo prazo. É essencial incluir todos os cidadãos na vida política, econômica e social de nossos países. A Europa já construiu um estado de bem estar social no pós-guerra, com resultados positivos por muitas décadas. O Brasil começou a caminhar nessa direção após a redemocratização, mas houve retrocessos e ainda há muito o que fazer. Devemos ir além da social democracia e construir uma verdadeira economia social de mercado, em que haja equilíbrio entre iniciativa privada, Estado e sociedade”, concluiu.

3 pontos para uma ‘globalização com valores humanistas’

“Desde a crise financeira iniciada em 2008 e que tem impactos até hoje na Europa, já havia a tendência de um papel maior do Estado no continente. A pandemia reforçará isso, como vemos na Espanha, que acaba de instituir um programa de renda básica. Mas nada de óculos ideológicos: a ação pública deve se traduzir em melhores serviços públicos e em uma sociedade menos desigual, mais justa e democrática”, concordou Durão Barroso.

O ex-premiê português encerrou sugerindo que Brasil (e Mercosul) e Europa se unam, como já fizeram até recentemente, para dar uma “contribuição pela paz, liberdade e prosperidade mundial”. Propôs que esse trabalho se concentre em três áreas principais: proteção do meio ambiente e construção de uma economia verde; investimento em ciência e tecnologia; e firme compromisso com a democracia, o Estado de direito e os direitos humanos.

“Vamos unir forças para construir uma globalização com valores humanistas, enviando assim um sinal potente para todo o mundo”, disse Durão Barroso.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.