Debates
04 de abril de 2019

América Latina e União Europeia: História entrelaçada, mas e o futuro?

Reunimos dois experientes analistas para discutir este tema: o embaixador Rubens Barbosa e Carlos Malamud, pesquisador sênior do Instituto Elcano, o mais prestigiado think tank da Espanha.

Apesar dos laços históricos e culturais de mais de cinco séculos, a Europa não sabe bem o que quer da América Latina e a América Latina também não sabe bem o que quer da Europa nesta altura do Século 21. “A AL é uma região formada por 20 países, e a União Europeia é um bloco econômico e político com 27 membros. Chegar a posições comuns é complicado. Daí a necessidade de pensar e renovar essa relação a partir de uma perspectiva global. Isso pode calibrar melhor as demandas e expectativas e facilitar o entendimento”, disse o historiador hispano-argentino Carlos Malamud, pesquisador do Real Instituto Elcano (Madri), neste debate na Fundação FHC.

O ponto de partida seria o peso e a presença dessas duas regiões no mundo. Os países latino-americanos são importantes exportadores de commodities e fizeram, recentemente, esforços significativos para reduzir a pobreza e a desigualdade, mas ainda têm uma presença aquém do desejado no comércio global. A UE, por sua vez, reúne algumas das principais potências econômicas do planeta, como Alemanha e França, mas enfrenta um longo período de baixo crescimento e desemprego, divisões e problemas internos e está atrás de EUA, China e outros países asiáticos na disputa pela liderança tecnológica.

“Quase 90% das trocas comerciais impulsionadas pela globalização ocorrem na Ásia, América do Norte e Europa e a AL ainda tem papel marginal nesse processo. O Acordo Mercosul-UE (já concluído, mas dependente de ratificação por todos os países envolvidos) pode ajudar muito tanto a AL como a Europa a se posicionarem melhor (no competitivo mercado global)”, afirmou o palestrante, que lembrou que a UE já tem acordos de diferentes tipos com a maioria dos países latino-americanos, incluindo México, Chile, Colômbia e Peru, assim como com várias nações asiáticas que integram a Aliança do Pacífico. “O Mercosul está atrasado e no momento possui acordos em vigor com poucos países, entre eles Egito e Israel. É muito importante para o Mercosul que o acordo com a UE se traduza em resultados concretos o quanto antes”, disse.

‘América Latina poderia ter papel mais relevante no mundo’     

Segundo Malamud, os países da AL (que não formam um bloco) têm sido bastante presentes em questões fundamentais para o planeta como mudança climática e migração, mas não costumam se envolver em questões geopolíticas importantes. Como exemplo, ele citou a anexação da Crimeia (região da Ucrânia) pela Rússia em 2014, criticada por EUA e Europa e não reconhecida pela ONU. “EUA e UE já têm por certo que a AL não costuma se posicionar nesses assuntos.Mas os países latino-americanos podem e devem fazer mais parte do mundo”, defendeu.

O historiador também falou da crescente rivalidade entre EUA e China que, segundo ele, tende a se estender e afetar outras partes do globo. “Trata-se de uma grande oportunidade para a UE e a AL, não no sentido de tomar partido (de um ou outro lado), mas sim de definir e defender valores comuns. Também na área tecnológica as duas regiões podem ganhar se cooperarem mais”, afirmou.

A questão venezuelana

Por fim, Malamud estacou a atuação do Grupo de Lima na crise da Venezuela. venezuelana.  em curso. “Os 12 países do grupo entenderam que a crise já havia ido longe demais e começava a se tornar um problema regional e decidiram aumentar a pressão sobre o governo Maduro, denunciando violações aos direitos humanos e exigindo diálogo. Ainda que os resultados esperados ainda não tenham se concretizado, essa ação conjunta é importante. Sem o Grupo de Lima, a UE dificilmente teria adotado posição crítica tão firme em relação ao regime ditatorial venezuelano”, concluiu.

“Nos últimos meses, o Grupo de Lima tem refletido principalmente a posição dos EUA sob liderança de Donald Trump no que diz respeito à Venezuela. Embora a maioria dos países da UE (e o Parlamento europeu) tenham seguido o Grupo de Lima e os EUA no reconhecimento do oposicionista Juan Guaidó (presidente da Assembleia Nacional da Venezuela) como presidente interino da Venezuela, a Europa tem tido uma posição mais construtiva na busca de soluções para o impasse político no país. Aliou-se ao Uruguai e ao México para criar um grupo que busca impulsionar as negociações entre governo e oposição. O Brasil também deveria ter papel mais relevante do que está tendo”, disse Rubens Barbosa, que foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e Washington (1999-2004) e representante permanente do Brasil junto à Associação Latino Americana de Integração (ALADI).

Barbosa demonstrou preocupação com o recente envio de militares chineses para a Venezuela: “Se for verdade e tiver efeito (no sentido de fortalecer o governo Maduro), isso contradiz a visão de que a China não pretende se chocar com os EUA em questões de segurança na região”, afirmou.

O presidente do IRICE (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior) concordou que tanto a AL perdeu importância para a Europa como vice-versa e disse que esse processo deve continuar. “A partir do início do Século 14, a Europa teve enorme influência política, cultural, comercial e econômica na região depois conhecida como América Latina. No Século 20, a influência dos EUA cresceu exponencialmente. Vivemos agora o início de uma nova época, em que a cooperação da China com os países latino-americanos está evoluindo muito. A China já é o principal parceiro comercial do Brasil. Também a UE busca maior aproximação com a China. Com a mudança do eixo de poder econômico, comercial e tecnológico do Atlântico para o Pacífico, as prioridades são outras, os valores também começam a mudar. Essa tendência vai se aprofundar”, disse.

Divisões internas na UE e na América Latina

Esse processo é agravado pelos problemas internos vividos pela Europa (estagnação econômica, desemprego, Brexit, emergência de movimentos populistas, crise migratória) e pela AL (desigualdade social persistente, fragmentação econômica e política muito forte, insegurança e crescente influência do crime organizado, corrupção). “Ambas as regiões enfrentam grandes desafios internos, o que dificulta que foquem na melhoria de suas relações e em definir posições comuns sobre grandes temas globais”, afirmou o autor do livro “Um diplomata a serviço do Estado” (Editora FGV, 2018).

Apesar de sua visão realista sobre o declínio das relações UE-AL, o embaixador ressaltou a importância do recém-concluído acordo Mercosul-UE. “Depois de cerca de 20 anos de negociação, finalmente chegamos a um acordo justo e equilibrado, que no entanto ainda depende de ratificação pelos envolvidos. É essencial que esse processo seja concluído o quanto antes. Diante da crescente disputa comercial e tecnológica entre EUA e China, o Mercosul e a União Europeia têm muito a ganhar ao reforçar os laços, aumentar o comércio e a cooperação”, concluiu.

Investimentos e valores comuns

“É verdade que nas últimas décadas houve um declínio da relevância da AL para a UE e vice-versa, mas o comércio entre as duas regiões está aumentando e o investimento europeu na América Latina continua sendo muito significativo. O acordo com o Mercosul é muito importante para trazer mais dinamismo”, lembrou Claudia Gintersdorfer, chefe da delegação da UE no Brasil.

“É fato que a AL tem perdido espaço no processo de globalização e que a UE não é a maior vencedora na corrida pelo domínio tecnológico mundial. Mas continuamos no jogo. UE e AL têm grandes afinidades históricas e culturais e um conjunto de crenças e valores comuns, como defesa da democracia e dos direitos humanos, questão climática e outros. Há base sólida para uma maior coordenação política em temas globais e também na área comercial e econômica”, disse o cientista político Sergio Fausto, superintendente executivo da Fundação FHC, ao final deste encontro, fruto de parceria com o grupo dos Cônsules da UE, com apoio da Embaixada da Espanha no Brasil.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.