Despoluição do Pinheiros: o que pode significar para a cidade?
A despoluição do Pinheiros se tornou uma prioridade do atual governo de São Paulo. Desta vez será para valer? O que é necessário para tanto? Qual o papel do governo, qual o papel da sociedade? O que um rio limpo pode vir a significar para a qualidade de vida na cidade?
A despoluição do rio Pinheiros, prometida pelo governador João Doria até o final de 2022 (quando termina seu atual mandato), é um processo complexo que demanda responsabilidade coletiva, com participação não somente do Governo de São Paulo, da Sabesp (empresa de economia mista que detém a concessão dos serviços públicos de saneamento básico no Estado de São Paulo) e das prefeituras de cidades da Região Metropolitana de SP, mas também dos cidadãos, da sociedade e da iniciativa privada. Exige um novo desenho institucional que integre diversas políticas urbanas e órgãos responsáveis por sua implementação e uma mudança de mentalidade em relação ao papel do rio na vida da metrópole e de seus habitantes.
Estas foram as principais conclusões do debate “Despoluição do rio Pinheiros: o que pode significar para a cidade?”, realizado na Fundação FHC com apoio da ABES (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental).
Lições do Tâmisa
“O engajamento da sociedade é fundamental”, disse Emma Harrington, gerente sênior do programa de voluntariado Thames21, que busca envolver os habitantes de Londres no trabalho constante de manter o rio Tâmisa e todo o sistema de canais e córregos da capital britânica o mais limpo possível. Entre as atividades realizadas por cerca de 10 mil voluntários, sob coordenação da equipe da ONG Thames 21, estão:
- Construção de sistemas de drenagem para evitar que água poluída entre no sistema pluvial do Tâmisa e seus afluentes;
- Coleta de lixo nas áreas em torno dos rios e canais (ruas, terrenos, várzeas e praias) e catalogação do tipo de material encontrado;
- Monitoramento e coleta do lixo que entra no rio vindo do mar, pois o Tâmisa é muito influenciado pela alta das marés;
- Monitoramento constante da qualidade da água em diversos pontos do rio e dos córregos e canais;
- Registro da fauna encontrada no rio e em torno dele, incluindo peixes, pássaros e outros animais;
- Educação e treinamento de crianças para que, desde pequenas, aprendam a valorizar e cuidar das águas;
- Campanhas de comunicação, advocacy e levantamento de recursos.
Convocados pelas redes sociais (Twitter, Facebook e Instagram), rádios, TVs e jornais, os voluntários são treinados, equipados e recebem apoio logístico da Thames 21 e, ao final das atividades, normalmente realizada nos finais de semana, são convidados a confraternizar em um dos diversos pubs existentes à beira do rio. “Coletar lixo nas margens do rio é uma atividade física que exige cuidado e esforço, pois o terreno é escorregadio, cheio de lama e encontramos todo tipo de objetos, inclusive cortantes, contaminados ou pesados. Mas a diferença entre o antes e o depois é óbvia, o que torna nosso trabalho gratificante”, contou a ativista inglesa.
“Além de tornar o Tâmisa mais limpo e saudável, nosso objetivo é fazer com que as pessoas compreendam a importância de todos se responsabilizarem pelo rio”, disse a ativista inglesa.
O rio Tâmisa, com 346 km de extensão, atravessa não apenas o centro de Londres, uma das maiores cidades europeias e do planeta, como diversas outras cidades próximas, áreas rurais e zonas industriais. Durante séculos, recebeu todo o esgoto não tratado da capital inglesa e, com a Revolução Industrial (séculos 18 e 19), passou a ser o destino também de enormes quantidades de dejetos industriais. Em 1957, foi considerado morto biologicamente. Nas décadas seguintes, passou por um longo processo de despoluição e reurbanização. Hoje, está plenamente integrado à paisagem urbana de Londres, com grande número de edifícios residenciais e comerciais, construções históricas, museus e parques à sua margem, e um sistema de transporte fluvial utilizado tanto por londrinos como por turistas.
“Estamos trabalhando para eliminar o mau cheiro”
Benedito Braga, presidente da Sabesp (empresa de economia mista, que detém a concessão dos serviços públicos de saneamento básico no Estado de São Paulo), demonstrou otimismo em relação aos planos de despoluição dos rios Tietê e Pinheiros, que, apesar de terem dinâmicas e características próprias, estão interligados. Entre as iniciativas e obras realizadas e/ou em curso, ele citou os projetos Córrego Limpo, iniciado em 2007 com o objetivo de despoluir 151 córregos na Região Metropolitana de São Paulo, e Se Liga Na Rede, que entre 2011 e 2018 conectou 25,5 mil residências à rede de esgoto. Segundo ele, os investimentos previstos da Sabesp são de cerca de R$ 1 bilhão.
Mas, segundo Braga, ainda existem 2,1 milhões de moradores em áreas irregulares (600 mil moradias) na região metropolitana. “À beira do córrego Água Espraiada (zona sul), por exemplo, há muitas casas praticamente dentro do rio sem qualquer saneamento e o acesso para retirar lixo e instalar redes coletoras é muito difícil”, disse. Outro problema grave é a grande quantidade de lixo nas ruas, que com as chuvas acabam indo parar em bueiros, córregos e rios.
A Sabesp já construiu um emissor ao longo do rio Pinheiros e está instalando Estações de Tratamento de Esgoto compactas às suas margens. “Estamos trabalhando firme para eliminar o mau cheiro. Nadar no rio, como os paulistanos faziam no passado, não está nos planos”, concluiu.
Em julho deste ano, o governador anunciou plano de desassoreamento do Pinheiros, com retirada de 1,2 milhão de metros cúbicos de sedimentos. Em recente viagem à China, assinou protocolo de intenções com a China Railway Construction Corporate, gigante do setor de infraestrutura que demonstrou interesse em participar do projeto de despoluição em troca da exploração de serviços de transporte de carga e passageiros e entretenimento às margens do rio. Não há, no entanto, mais detalhes sobre o projeto.
“Devemos usar a iniciativa privada para dar sustentação, contribuir com a gestão e garantir a irreversibilidade do projeto de despoluição tanto do Pinheiros como do Tietê”, propôs Ronaldo Camargo, presidente da EMAE (Empresa Metropolitana de Água e Energia).
A despoluição do Tietê se arrasta desde os anos 1990, com resultados ainda insatisfatórios. Um dos motivos (não o único) é a grande quantidade de esgoto lançada no rio pela cidade de Guarulhos (uma das mais populosas da Grande São Paulo), que trata apenas uma pequena parte dele. Após anos de disputa devido a uma dívida antiga, em 2018 a Sabesp e a prefeitura assinaram protocolo de intenções para que a empresa trate esgoto e distribua água na cidade. Também há divergências com o governo paulista em relação à responsabilidade pelo tratamento do esgoto no município.
“Não basta um conjunto de obras”
Para Rodolfo Costa e Silva Jr., consultor na área de saneamento, a despoluição dos rios Pinheiros e Tietê só será bem-sucedida se eles forem reintegrados ao cotidiano dos habitantes da metrópole. “Hoje tanto o Tietê como o Pinheiros são rios proibidos, isolados por marginais, muros, viadutos, pontes etc. Além do mau cheiro e do visual terrível, é impossível chegar perto deles sem ser atropelado. A empatia da sociedade em relação aos rios é essencial”, afirmou.
Segundo o especialista, tanto o Tietê como o Pinheiros se tornaram no decorrer de várias décadas não apenas depósitos de esgoto, lixo e outros detritos a céu aberto, como ‘amortecedores de enchentes’ e áreas degradadas pela ocupação ilegal e sem planejamento. “Para reverter esse quadro, não bastam obras, embora elas sejam necessárias. É preciso um plano estratégico, muito bem pensado e estruturado”, disse.
Numa etapa posterior, ambos os rios precisam ser devolvidos à cidade, com a retirada de vias rápidas, fios expostos, fábricas, galpões e até prisões e sua substituição por parques e jardins, trilhas para caminhada, ciclovias e espaços de esportes e lazer, centros de cultura e obras de arte em suas margens. Também devem ser usados para o transporte fluvial de pessoas e comercial. “O uso das águas e das margens dos rios deve ser múltiplo e acessível a toda a população, gratuitamente”, concluiu.
“Repensar a cidade, o território e suas águas”
Stela Goldenstein, consultora do Banco Mundial para programas voltados à universalização do saneamento, destacou a importância de tratar a questão do ponto de vista institucional. “Estamos diante de problemas que não são isolados: habitação, saneamento, coleta de lixo, mobilidade/transporte público, produção e distribuição de energia, planejamento urbano e uso irregular do solo e do território, tudo está interligado e exige convergência de programas de longo prazo”, disse.
Segundo Goldenstein, o modelo institucional de planejamento e gestão dessas diversas políticas urbanas não está resolvido mesmo com a maior integração entre as secretarias estaduais de Energia, de Saneamento e Recursos Hídricos e de Infraestrutura e Meio Ambiente, pois esse conjunto de políticas também envolve prefeituras e subprefeituras, iniciativa privada e os próprios cidadãos (organizados ou não). “O lixo, por exemplo, é em primeiro lugar responsabilidade de cada um de nós”, lembrou.
Ela também chamou atenção para o problema das enchentes, frequentes na cidade durante o verão, e do excesso de água direcionado rapidamente para os córregos e rios sem qualquer tratamento. “Devemos aprender a conviver com as águas, em vez de buscarmos nos livrar delas o mais rapidamente possível. Por isso, é importante interferir na microdrenagem e não apenas na macrodrenagem”, explicou.
“Está mais do que na hora de repensarmos as cidades e suas águas de forma completa e articulada, ecológica e sustentável”, concluiu a consultora do Banco Mundial.
Como exemplo, Goldenstein citou um programa de cidades-esponja lançado pela China, em que até 80% dos materiais utilizados em construções, ruas e calçadas devem absorver e reter água das chuvas, evitando assim grandes inundações, contaminações e desperdício de água. “Com as mudanças climáticas resultantes do aquecimento global, as chuvas intensas tendem a se agravar e colocam ainda mais urgência em lidarmos com esse excesso de vazão. Que estratégias temos?”, perguntou.
“Dar continuidade aos projetos”
“As experiências de Londres, aqui relatada, e de Paris, Seul, Tóquio e Lisboa mostram que é possível limpar os rios que atravessam grandes cidades. Para isso, é preciso dar continuidade aos projetos e ir até o fim”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao final do debate.
Segundo FHC, é positiva a ideia de transformar o Pinheiros em um símbolo de São Paulo no Século 21: “Os governantes devem mobilizar recursos e fazer tudo o que estiver ao seu alcance para entusiasmar os cidadãos, que quando veem resultados, apoiam e se engajam.”
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.