Debates
14 de março de 2019

Acordo de paz na Colômbia: Política de Estado, não de um governo

A Fundação FHC e a Humanitas360 trouxeram ao Brasil o General Oscar Naranjo, um dos principais negociadores do acordo de paz com as FARC e vice-presidente da Colômbia no período final do segundo mandato de Juan Manuel Santos.

O acordo de paz com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) deve ser implementado como uma política de Estado, com visão de longo prazo, e não pode ser colocado em risco por interesses políticos e disputas entre o novo governo, que assumiu em 2018, e o anterior, responsável pela negociação que teve como objetivo encerrar o mais longo conflito da América Latina.

Esta foi a principal conclusão do seminário “Os desafios à paz na Colômbia”, realizado pela Fundação FHC e pela Humanitas 360, com participação do general Oscar Adolfo Naranjo, negociador indicado pelo ex-presidente Juan Manuel Santos (2010-2018), do ex-senador Juan Manuel Galán Pachón  e do especialista em crime organizado transnacional e segurança Eduardo Salcedo.

“Preocupa-me o fato de ainda não haver na Colômbia um consenso político de que o acordo com as FARC não representa o feito de um governo em particular, mas sim uma conquista de toda a sociedade.”
General Oscar Naranjo, ex-diretor geral da Polícia Nacional (2007-2012), negociou o acordo com as FARC por indicação do então presidente Juan Manuel Santos (2010-2018)

Em  2018, durante a campanha eleitoral, o então senador e candidato a presidente Ivan Duque – apoiado pelo ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010), ainda influente no país e um dos maiores críticos ao processo – disse que, se eleito, não faria “trizas” (pedacinhos), mas “modificações importantes” no pacto. Foi uma maneira de marcar posição política, pois o acordo é um divisor de águas da política colombiana hoje. Duque foi eleito em junho e, no início de março deste ano, o novo presidente apresentou seis objeções à lei estatutária que criou a Justiça Especial para a Paz, com o objetivo de tornar mais rígidas algumas das anistias e outros benefícios concedidos aos ex-guerrilheiros, como a possibilidade de substituir penas de prisão por tarefas comunitárias (leia reportagem da Folha).

“O presidente tem o direito de fazer objeções a pontos do acordo, mas é preciso estar consciente do risco de colapso da lei estatutária”, disse Naranjo. As objeções de Duque devem ser analisadas pelo Corte Constitucional da Colômbia, que já havia dado sinal verde para o estatuto, também aprovado pelo Congresso. Representantes das FARC, apoiadores do processo de paz ligados ao governo Santos e organizações de direitos humanos temem que as mudanças sugeridas criem incertezas que comprometam a pacificação da Colômbia, na medida que aumentem as resistências do ELN (Exército de Libertação Nacional, outro grupo guerrilheiro de esquerda) a negociar o fim de suas atividades e estimulem o retorno à luta armada de guerrilheiros das FARC desmobilizados ou resistentes ao acordo.

Justiça de transição

Já os opositores do pacto com as FARC argumentam que ele resultará em impunidade e vantagens indevidas aos ex-guerrilheiros. “Em todos os casos de estabelecimento de uma justiça transicional para encerrar um conflito armado, concedem-se benefícios em termos de redução de punições aos agentes de violações que se disponham efetivamente a colaborar para esclarecer a verdade histórica e evitar que o confronto se repita no futuro”, afirmou Eduardo Salcedo, diretor da Scientific Vortex Inc. empresa que aplica tecnologia para analisar e oferecer soluções na área da segurança.

“Espera-se que, com as informações que devem ser prestadas à Justiça pelos ex-guerrilheiros das FARC, corpos de milhares de vítimas do conflito, mortas ou desaparecidas até hoje, possam ser localizados e entregues às suas famílias”, disse o ex-senador Juan Galán, filho e herdeiro político de Luís Carlos Galán, candidato a presidente assassinado em 1989 durante a campanha eleitoral.

Em um guerra interna que durou mais de 50 anos, é complicado apurar as responsabilidades individuais de cada um dos envolvidos e estabelecer as penas correspondentes, pois não se trata de crimes cometidos por um punhado de pessoas, mas sim de violações em larga escala, praticadas por milhares de envolvidos em vários lados do conflito. Estima-se que a guerra interna na Colômbia tenha resultado em cerca de 260 mil mortos e mais de 80 mil desaparecidos desde a década de 1960.

Principal grupo guerrilheiro, as FARC dominavam parcelas significativas do território colombiano, praticavam atentados, assassinatos e sequestros e exigiam pagamentos dos narcotraficantes em troca de autorização para operar e proteção nas áreas sob seu controle. Com a entrada em vigor do pacto em 1º de dezembro de 2016, a guerrilha se comprometeu a encerrar suas atividades e, segundo Naranjo, 11.000 guerrilheiros já entregaram suas armas a representantes das Nações Unidas e iniciaram colaboração com a justiça transicional.

O general criticou o fato de ainda haver setores da sociedade colombiana que se recusam a reconhecer a singularidade do fato de o país ter vivido um longo conflito armado (ainda não completamente superado): “É essa negativa que sustenta a tese de que uma justiça de transição não seria necessária. Após mais de cinco décadas de conflito, seria impossível julgar todos os responsáveis na Justiça comum”, afirmou.

“Mas, apesar dos sinais negativos emitidos pelo atual governo, sou otimista de que não haverá marcha atrás, pois, ao visitar comunidades de todas as regiões do país, não encontro ninguém que deseje um retorno à guerra (interna)”, continuou o ex-diretor da Polícia Nacional.

Em outubro de 2016, a Colômbia realizou um referendo sobre o acordo de paz e pouco mais de 50% dos que foram às urnas responderam “não” à pergunta “Você apoia o acordo final para o fim do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura?”. O “sim” obteve pouco mais de 49%. Diante da rejeição do pacto por margem apertada, o governo Santos e as Farc iniciaram imediatamente uma nova negociação e fizeram cerca de 50 mudanças no acordo que, em novembro daquele ano, foi aprovado pelo Congresso.

Estado ausente

“A contestação de pontos do estatuto da Justiça Especial para a Paz, já avalizado pela Corte Constitucional, resultará em um clima de incerteza entre ex-combatentes e grupos dissidentes das FARC, que, embora minoritários, ainda resistem”.
Juan Manuel Galán, senador durante três mandatos (de 2006 a 2018), é filho e sucessor político de Luís Carlos Galán, candidato a presidente do país assassinato em 1989

Segundo Juan Galán, em vez de dar passos atrás, o novo governo deveria concentrar esforços em resolver uma das causas do conflito: a ausência do Estado em regiões controladas por décadas por guerrilhas de esquerda (as FARC eram a maior delas, mas há outras como o ELN), grupos paramilitares (de direita) e organizações do narcotráfico, com frequência vinculadas às guerrilhas e aos grupos paramilitares. Hoje já não mais existem os grandes cartéis da droga, muito ativos entre os anos 1970 e 90, mas a Colômbia continua a ser uma das principais zonas produtoras de cocaína do mundo.

“No momento, outros grupos ilegais disputam os territórios antes ocupados pelas FARC. O Estado deve agir rapidamente para ocupar esses espaços e evitar uma nova onda de violência e o assassinato de importantes lideranças sociais, que já vêm ocorrendo”, disse Galán. Nos últimos anos, o ex-senador do Partido Liberal passou a defender uma nova política em relação às drogas, mais focada na prevenção e no tratamento de usuários do que na repressão.

Algoritmos para a paz

“Paradoxalmente, esse mesmo grupo político que atualmente considera inconveniente o processo de justiça transicional, em 2005 (durante o governo Uribe) lançou mão de um processo semelhante que foi essencial para desmobilizar grupos narco paramilitares colombianos.”
Eduardo Salcedo, diretor do Global Observatory of Transnational Criminal Networks

Durante sua apresentação, Eduardo Salcedo, especialista em crime organizado transnacional, tráfico de drogas e corrupção, fez um relato detalhado do processo de acerto de contas com grupos paramilitares que se opunham às FARC, mas que, assim como elas, fizeram alianças com narcotraficantes para financiar suas atividades ilegais.

Segundo Salcedo, na primeira década dos anos 2000 o Estado colombiano, na época chefiado pelo presidente Álvaro Uribe, ofereceu a líderes paramilitares a possibilidade de obterem penas máximas de 8 anos de prisão em troca de informações sobre as atividades de suas organizações. O depoimento de apenas um dos comandantes militares, apelidado de “HH”, levou 16 meses e resultou em milhares de horas de gravações com dados sobre responsáveis por assassinatos, desaparecimentos e deslocamentos em massa, identificação das vítimas e localização de seus restos mortais, assim como dados sobre financiadores da atividade paramilitar, incluindo políticos, empresários e traficantes.

“A complexidade do material à disposição dos procuradores envolvidos naquele processo era tão grande que, em 2011, ainda não havia acusações concretas nem sentenças, o que poderia levar ao colapso de todo o processo. Foi então que os investigadores procuraram a Fundação Vortex e nos pediram ajuda para dar sentido àquele mar de informação”, contou o especialista.

Segundo Salcedo, a Vortex criou algoritmos, sistemas de visualização e desenhou plataformas que possibilitaram aos procuradores compreenderem como atuavam os paramilitares, seus apoios políticos e econômicos e a identificar os principais responsáveis, onde ocorreram as violações, quantas e quem foram as vítimas.

“Ao final desta tarefa titânica, conseguimos sentenciar não apenas os principais líderes narco paramilitares como também políticos, funcionários e autoridades públicas que os apoiaram de alguma maneira, estabelecendo precedentes jurídicos inéditos no mundo”, disse o investigador, descrito pela revista online norte-americana Ozy como “um Sherlock Holmes do século 21”.

“O sistema judicial da Colômbia, como na maioria dos países latino-americanos, está à beira do colapso, e a consequência disso é que grande parte dos delitos, mesmo aqueles normais, permanece impune. Imagine o que significaria aplicar a justiça tradicional no caso de macro violações que envolvem milhões de vítimas entre mortos, desaparecidos e deslocados, como é o caso colombiano? Seria algo impossível de ser feito”, afirmou o especialista, que também atua como consultor de segurança no México, na Guatemala e no Peru e é membro do Global Observatory of Transnational Criminal Networks. 

“Nesta semana, ao apresentar suas objeções à lei estatutária que criou a Justiça para a Paz, o presidente Duque colocou um freio à consolidação da paz na Colômbia. E fez isso de forma extemporânea e desarticulada em relação ao que deveria ser a postura do Estado colombiano neste momento tão crucial”, criticou Salcedo.

Racionalidade

“O grande desafio da Colômbia, assim como de outros países latino-americanos que enfrentam epidemias de violência, é substituir o medo que a população sente pela esperança de um futuro melhor.”
General Naranjo

Durante sua fala, o ex-diretor da Polícia Nacional colombiana lembrou que a América Latina responde por 36% das mortes violentas do mundo, apesar de ter aproximadamente 8% da população mundial. “Somos a região mais violenta do mundo, o que leva alguns políticos a proporem uma política de mão dura contra o crime, admitindo inclusive graves violações aos direitos humanos. Outra vertente do pensamento político diz que o crime é consequência da desigualdade social e da pobreza. Ambos estão equivocados. O desafio é combater a violência e a criminalidade com base na racionalidade, trilhando o caminho do meio”, disse o palestrante, que também exerceu o cargo de vice-presidente da Colômbia (2017-2018). 

“Por mais difícil que seja a implantação do processo de paz, trata-se de um ponto de inflexão para a sociedade colombiana e algo extremamente positivo para toda a América Latina. Sem a paz, milhares de pessoas continuariam a morrer no país a cada ano. É preferível uma paz imperfeita à continuação de uma guerra indefinida e sem fim. É inútil pretender eliminar a outra parte. Defender e manter a paz recém-conquistada é um direito, mas também um dever de todos os colombianos”, disse Naranjo.

Esquerda democrática

O ingresso dos ex-guerrilheiros no Congresso colombiano é outro ponto polêmico do acordo de paz. Candidatos da Força Alternativa Revolucionária do Comum (partido político que substituiu as FARC, mantendo a antiga sigla) receberam 85 mil votos nas eleições de 2018 (0,5% do total de votos), mas, de acordo com o pacto, terão direito a dez vagas no parlamento.

“Entre as forças políticas, a grande prejudicada pela guerra foi a esquerda democrática, pois, devido aos abusos e violações cometidas pelos guerrilheiros, nunca conseguiu chegar ao poder pelo voto. Cabe aos colombianos decidirem se, em algum momento, darão chance a uma esquerda que jogue de acordo com as regras do jogo”, concluiu Naranjo.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.