Os Estados por um fio: como sairão do fundo do poço?
Para responder a pergunta acima, conversamos com dois ex-governadores: Paulo Hartung, do Espírito Santo, e Antonio Anastasia, de Minas Gerais.
“A federação brasileira é uma quimera. Antes de fazer uma descentralização tributária, é preciso atacar a mentalidade centralizadora impregnada no Estado brasileiro, que sobrecarrega a União, abafa a relevância dos estados e municípios e dificulta a solução dos problemas vividos pela população.”
Antonio Anastasia, senador (PSDB-MG), foi governador de Minas Gerais de 2010 a 2014. É vice-presidente do Senado Federal
“Faz parte da cultura política brasileira achar que a solução para nossos problemas sempre virá de Brasília. Não veio e não virá. Governadores e prefeitos precisam fazer uma autocrítica e assumir sua parcela de responsabilidade para o equilíbrio das contas públicas e a modernização do Estado brasileiro.”
Paulo Cesar Hartung Gomes, economista, governou o Espírito Santo por três mandatos (2015-2018, 2003-2010)
O atual modelo federativo brasileiro está esgotado e precisa ser profundamente reformado para que o Estado, nos níveis federal, estadual e municipal, reorganize suas contas e ofereça serviços de melhor qualidade, principalmente nas áreas de educação, saúde e segurança pública. Só assim o país trilhará o rumo do crescimento econômico e da melhoria de vida da população. Esta foi a principal conclusão do seminário que reuniu os ex-governadores Antonio Anastasia (Minas Gerais, de 2010 a 2014) e Paulo Cesar Hartung Gomes (Espírito Santo, 2015-2018 e 2003-2010) na Fundação Fernando Henrique Cardoso.
Além da reforma da previdência, considerada essencial por ambos os palestrantes, é fundamental haver uma mudança de mentalidade tanto por parte dos políticos eleitos para cargos executivos (presidente, governadores e prefeitos) e legislativos (senadores, deputados federais e estaduais e vereadores), como por parte dos gestores (ministros, secretários etc.), funcionários públicos, juízes, procuradores e da sociedade de maneira geral.
‘Ninguém gosta de perder poder’
“Não há no atual governo federal nem em nenhum dos que tivemos anteriormente uma visão de descentralização. E o motivo é simples: ninguém gosta de perder poder. A sociedade brasileira é dependente da União, como antes era da corte portuguesa ou imperial”, disse Anastasia, que atualmente é senador e acaba de ser eleito vice-presidente do Senado Federal. “Mas essa excessiva centralização não passa de um poder efêmero, uma ilusão, cujo resultado é a ineficiência e a decadência dos serviços públicos. Está mais do que na hora de a sociedade se conscientizar disso”, continuou.
Como exemplo de casos e situações em que a excessiva centralização em Brasília e a falta de clareza na divisão de responsabilidades resultam em ineficiência e fracasso por parte do Estado, o político mineiro citou a precariedade da fiscalização na área ambiental (“de quem é a responsabilidade pelas tragédias em Mariana e Brumadinho?”), o abandono do patrimônio histórico e cultural (“um verdadeiro pesadelo, como vimos no incêndio do Museu Nacional, no Rio”), as deficiências do sistema educacional (“será que faz sentido termos um mesmo currículo escolar do Rio Grande do Sul ao Acre”) e as falhas do Sistema Único de Saúde (“este até funciona mais ou menos”).
“A fixação pela centralização atingiu até mesmo o Judiciário e o Ministério Público. Com frequência, o STF reverte decisões tomadas pelos estados, que não têm mais autonomia para definir quase nada. Não é à toa que as Câmaras municipais têm muito mais relevância do que as Assembleias estaduais”, afirmou.
Ajuste fiscal e programas sociais
Hartung defendeu a importância de governadores e prefeitos fazerem a sua parte no que diz respeito ao ajuste das contas públicas sem abrir mão da oferta de serviços públicos essenciais para a população. “No Espírito Santo, quebramos o maior tabu que existe no Brasil: a ideia equivocada de que, para garantir o equilíbrio fiscal, é preciso sacrificar os programas de cunho social”, disse.
“Fizemos um ajuste fiscal duríssimo, cortamos cargos comissionados, congelamos concursos públicos e salários do funcionalismo, renegociamos contratos e revimos incentivos fiscais, mas, em 2017, obtivemos o melhor resultado em português e matemática na Prova Brasil e, em 2016, o Espírito Santo teve a menor taxa de mortalidade infantil”, disse. “A médio e longo prazo, o ajuste fiscal nos três níveis de governo é condição essencial para a melhoria dos serviços públicos no país”, afirmou o ex-governador, que escreveu um texto detalhando as medidas tomadas durante seu governo.
As três dimensões da crise federativa
Para Anastasia, a atual crise federativa tem três dimensões. “Na político-institucional, precisamos rever o modelo da nossa Federação. Da década de 1930 para cá, com alguns poucos respiros, os estados só perderam poder, tanto do ponto de vista legislativo como tributário. A Federação, hoje, é uma quimera e, na prática, não passamos de províncias submetidas ao poder central. E isso traz consequências muito ruins para a população, pois quando se resolve o problema onde ele acontece, a solução é mais barata e efetiva”, disse.
Na dimensão econômica, o mineiro fez um relato da evolução das finanças dos estados desde o fim da inflação, com o Plano Real (lançado em 1994, durante o governo Itamar Franco). “A inflação facilitava que os estados maquiassem seus déficits, mas, com o fim dela, muitos quebraram. A renegociação das dívidas (no final da década de 1990, durante o governo FHC) deu um fôlego a eles, assim como o bom desempenho da economia mundial e brasileira no início do século 21. Mas, a partir do final de 2008, com a eclosão crise financeira mundial, o Brasil começa a entrar em uma grave crise. Em 2009, a receita de Minas diminuiu R$ 2 bilhões. Perdas semelhantes também ocorreram em outros estados”, lembrou.
A partir de 2013, segundo Anastasia, o governo federal adotou algumas medidas que prejudicaram ainda mais as finanças dos estados, entre elas o pacote que forçou a queda no preço da energia elétrica, resultando na redução do ICMS na conta de energia e em prejuízos para companhias elétricas como a CEMIG. “A partir do final de 2014 e em 2015, o país entra em recessão e aí foi um desastre de proporções tsunâmicas”, disse. Além disso, o déficit previdenciário começa a bater à porta também dos governos estaduais e municipais, tornando sua situação financeira ainda mais delicada.
Por fim, há a dimensão gerencial: “No Brasil, há uma total ausência de cultura de gestão e de instrumentos adequados no âmbito da administração pública. As pessoas sabem quem é o ministro da Fazenda, mas quem se lembra do nome do ministro do Planejamento ou da Administração? Enquanto a economia está na sala de estar, a gestão pública está escondida no porão”, ilustrou Anastasia, que propôs uma refundação da Federação, a partir de uma profunda análise dessas três dimensões.
Apesar de tudo, otimismo
Hartung também enfatizou a necessidade da melhoria da gestão pública, a qual requer, entre outras coisas, segundo ele, uma reforma da lei de licitações. “A lei exige que os gestores comprem produtos ou contratem serviços pelo preço mais baixo, mas muitas vezes a empresa não tem condição de entregar o que promete, principalmente no caso de obras grandes e complexas. O resultado são obras paradas em todo o país”, exemplificou. “A mesma lei que serve para comprar caneta é usada para licitar a construção de uma hidrelétrica”, concordou Anastasia.
“O Estado brasileiro é pré-histórico. Compra mal, contrata mal e remunera de maneira equivocada seus funcionários e prestadores de serviços, sem que haja nenhum estímulo aos resultados e à produtividade. União, estados e municípios consomem o dinheiro arrecadado da sociedade de forma descontrolada e irresponsável e não devolvem às pessoas qualidade na educação, na saúde, na segurança pública, na ciência e tecnologia”, continuou Hartung.
Mas, apesar do quadro extremamente preocupante, o ex-governador do Espírito Santo se disse otimista em relação à aprovação de reformas e adoção de novas práticas. “Não tem mais para onde correr. Antes (há alguns anos), ainda havia um pouco de gordura para queimar com maluquices, agora a conta chegou. O resultado é o que estamos vendo: um país com enorme potencial piorando a cada dia. Vamos ter de fazer o que for necessário para reverter esse processo. Pessoalmente, não tenho problema com a direita, nem com a esquerda, nem com o centro. Se for para modernizar o país, contem comigo”, afirmou.
Outro motivo de otimismo são as novas tecnologias digitais, que abrem a possibilidade de o Estado aprimorar seus processos e se tornar mais transparente e eficiente. “A máquina pública está desconectada da sociedade, mas as novas tecnologias possibilitam reconectá-la ao Brasil de carne e osso em um prazo muito mais curto do que seria necessário anteriormente”, defendeu.
Priorização e liderança
Segundo os dois palestrantes, o país precisa adotar uma agenda estratégica e evitar perder tempo e energia com questões que não são essenciais neste momento. “A agenda está congestionada e é impossível tocar simultaneamente todos os temas. Por isso, o governo federal, com apoio dos estaduais e municipais, e o Congresso Nacional precisam agir com sentido de prioridade, e a maior delas é a reforma da previdência. Sem ela, a situação vai continuar a degringolar muito rapidamente”, disse Hartung.
“Chegamos à beira do precipício. Agora é hora de dialogar, convencer, mobilizar e retomar as reformas para criar as condições para a retomada do crescimento e melhorar a oferta de empregos, de renda e de oportunidades para os jovens. Não é hora de brincar com temas comportamentais e morais, que podem atrapalhar a aprovação do que é essencial neste momento”, continuou.
“Não há dúvida de que a reforma da previdência é o primeiro passo. Num segundo momento, dentro de uma nova mentalidade baseada na ideia de descentralização, será necessário fazer uma reforma tributária para que os recursos disponíveis sejam melhor distribuídos entre os entes federativos, que, no entanto, terão de assumir plena responsabilidade por suas decisões e seus atos”, disse Anastasia.
“Assim como na época do Plano Real, acredito que existe hoje no país um diagnóstico maduro do que precisa ser feito para superarmos os graves problemas atuais. Mas há uma questão política. Para superar os temores e combater privilégios arraigados, é essencial que surja uma liderança capaz de motivar a sociedade, explicando de forma clara por que é necessário levar a cabo as reformas. Ainda não vi essa liderança surgir, espero que surja”, disse o ex-presidente Fernando Henrique, em sua breve fala de conclusão do evento.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.