Caminhos e descaminhos da política: da crise nascerá uma democracia melhor?
“As eleições deste ano representaram um terremoto político, que teve aspectos ruins, mas tinha de acontecer, pois o sistema estava esclerosado”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
“A composição do futuro Congresso indica que Bolsonaro poderá ter maioria para aprovar propostas de interesse do governo. Curiosamente, o presidente eleito disse que não pretende formar um governo de coalizão. Isso é possível? Teoricamente sim, mas será preciso ver como funcionará na prática.”
Simone Diniz, cientista social, é professora da UFSCar
“O Brasil é recordista mundial em fragmentação legislativa. Em 2018, 30 partidos elegeram pelo menos 1 deputado federal. Com o rearranjo partidário, em 2019 haverá cerca de 22 partidos representados na Câmara, o que fará do próximo governo o mais imprevisível e incerto desde Collor. O que acontecerá se o Congresso bloquear parte da agenda econômica ou moral de Bolsonaro?”
Pedro Floriano Ribeiro, cientista político, é professor da UFSCar
“Reformas políticas recentes como a cláusula de desempenho, que entrará em vigor na próxima legislatura (com base nos resultados de outubro), e o fim das coligações a partir de 2020 vão gerar uma reorganização e uma depuração do sistema político-partidário em 2019 e nos anos seguintes. Para avançarmos, será importante reformar o sistema eleitoral e pensar em formas de financiamento.”
Bruno Carazza, economista, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras, 2018)
Em uma primeira avaliação, a renovação no Congresso Nacional em outubro último chegou a 47% na Câmara dos Deputados e a 87% no Senado. Mas a cientista social Simone Diniz disse, neste seminário na Fundação FHC em parceria com a RAPS, ter dúvidas de que “a tão comentada e festejada mudança de nomes resultará em um ‘novo modus operandi’ no Legislativo e em sua relação com o Executivo”.
De acordo com levantamento feito pela professora da UFScar, 52% dos eleitos para a Câmara em 2018 são ex-deputados federais, 12,7% foram deputados estaduais e 7,4%, vereadores. Outros já foram governadores ou prefeitos. “São pessoas que já atuaram na política, de uma maneira ou de outra. E ainda há diversos casos de filhos, filhas ou esposas de políticos tradicionais, agora alçados(as) a cargos políticos de relevância nacional”, disse a palestrante.
“Efetivamente, na Câmara haverá apenas 16% de reais ingressantes nesse universo. No Senado eles serão 18,5% do total, outros 20% já foram senadores e a maior parte será composta de atuais e ex-deputados”, afirmou Diniz durante o primeiro painel do evento. “Em 2016 (eleições municipais) e 2018, alguns setores da sociedade apostaram no ‘não-político’, com a ideia de que alguém não familiarizado com a política geraria outra forma de representação e de relação (do governo) com o Congresso. Não concordo que o fato de alguém ser neófito nesta área leve a uma automática melhoria no sentido de práticas mais republicanas. (Independentemente disso), a análise dos resultados sob esse outro prisma mostra que os recém eleitos são, na verdade, novos apenas entre aspas”, completou.
Maioria tranquila ou embate com o Legislativo?
Simone também calculou quantos parlamentares potencialmente integrariam a base de apoio do Governo Bolsonaro. “Somei 343 deputados de partidos de centro e direita, sem incluir PSDB e PPS, pois não sei como esses partidos se posicionarão. No Senado, a base deve ter 49 senadores”, disse. A maioria qualificada (3/5 ) exigida para aprovar mudanças constitucionais são 308 votos na Câmara e 49 no Senado.
“Se a negociação com os partidos mais conservadores for bem sucedida, o cenário é de uma maioria bastante tranquila na Câmara e mais justa no Senado. Curiosamente, Jair Bolsonaro disse, quando candidato, que não pretendia formar um governo de coalizão, devido ao desgaste público desse modelo, mas governar com o apoio das bancadas temáticas (como a do agronegócio, evangélica ou a chamada bancada da bala). Existe uma boa dose de risco nessa estratégia”, alertou.
“Ao argumentar ter recebido mais de 50 milhões de votos com o compromisso de não jogar a velha política, o futuro presidente pode despertar a ira dos parlamentares. Outra possibilidade é ele voltar atrás e compor com os partidos. Qual será então a reação da sociedade?”, continuou a cientista social, que coordena o projeto de pesquisa “Promessas de Campanha Eleitoral e Agenda de Governo – Análise da Gestão dos ex-Presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva”.
Ao encerrar sua fala, a cientista social fez uma referência ao conceito de poliarquia descrito pelo politólogo argentino Guillermo O’Donnell, que seria a síntese de três tradições: “A democracia grega, baseada no direito de participação nas decisões da polis; a tradição republicana do império da lei; e o preceito liberal anglo-saxão de respeito aos direitos civis. Espero que o futuro governo se lembre da importância dessa tríade.”
‘Onde foi que erramos?’
“Como bom economista, errei a previsão ao dizer que não haveria renovação política nas últimas eleições. O resultado foi uma surpresa em vários sentidos”, brincou o servidor público do Ministério da Fazenda Bruno Carazza, que nos últimos anos direcionou suas pesquisas a questões relacionadas ao custo das campanhas políticas e financiamento eleitoral.
“Onde foi que erramos? Imaginamos que o sistema político continuaria a funcionar com a mesma lógica de sempre, mas a decisão de 2015 do Supremo Tribunal Federal de proibir doação de empresas e o escândalo da Lava Jato diminuíram brutalmente os recursos para campanhas. Com o impulso adicional das redes sociais, o resultado foi uma significativa renovação do Parlamento”, disse o palestrante, que, no entanto, se surpreendeu com o levantamento feito por Simone (acima) e publicou um artigo sobre o assunto posteriormente.
“Como os cerca de R$ 2,5 bilhões de recursos públicos distribuídos aos partidos para a campanha em 2018 cobriram apenas metade do que anteriormente vinha de doações das empresas, eles criaram outras estratégias como recorrer a religiosos, militares (no embalo do fenômeno Bolsonaro), celebridades como radialistas ou milionários capazes de bancar sua própria campanha”, explicou.
Onda antissistema
Carazza discordou da tese de que os resultados da eleição para o Parlamento representaram sobretudo um movimento de direita ou anti-PT. “O descrédito da população em relação aos políticos tradicionais, expresso na hashtag #naoreelejaninguem, provocou uma onda antissistema, com queda expressiva da votação dos partidos que dominaram a cena política nos últimos 20 ou 30 anos. O eleitor mais identificado com a esquerda migrou do PT, que perdeu 3 milhões de votos, para o PDT ou o PSOL. Já o eleitor mais inclinado à direita abandonou o PSDB e outros partidos de centro e centro direita rumo ao PSL (de Bolsonaro) e o Partido Novo”, disse o palestrante (veja sua apresentação completa em Conteúdos Relacionados).
Especializado em políticas públicas e gestão governamental, Bruno também vê riscos à governabilidade no curto prazo. “Se já é difícil obter o apoio majoritário de partidos à reforma da Previdência, por exemplo, é ainda mais complicado negociar com cada parlamentar ou com as chamadas bancadas temáticas. Essa estratégia, se colocada em prática, pode levar ao fracasso desta e de outras reformas essenciais ao país e comprometer o ajuste fiscal de forma mais ampla”, disse.
Carazza afirmou ver um cenário propício para avançar em novas reformas relativas ao financiamento de campanha e ao sistema eleitoral: “É necessário impor limites às doações de pessoas físicas e modificar as regras de governança dos partidos para que seus caciques não possam decidir sozinhos o que fazer com os fundos públicos distribuídos a eles. Também devemos analisar diferentes modelos eleitorais utilizados por outros países, como o voto distrital puro ou misto e distritos menores, para eventual adoção no Brasil.”
Economia será principal campo de batalha
Para o cientista político Pedro Floriano Ribeiro (UFScar), a economia será a grande fonte de disputa dentro do novo governo. “Vai prevalecer a visão ultraliberal de Paulo Guedes (futuro superministro da área econômica) ou a visão mais nacionalista dos militares e ligada às corporações? Quem serão os vencedores e os perdedores da inevitável reforma da Previdência? Em um cenário de crise fiscal aguda, a lua de mel entre Executivo e Legislativo deve ser breve”, disse. Editor associado da Brazilian Political Science Review, o palestrante disse já existir no Congresso uma posição majoritária em relação a projetos que envolvam questões morais e de costumes ou na área de segurança pública.
Segundo ele, o futuro presidente deverá ser o principal fiador de acordos com os demais poderes, organizações da sociedade e a população em geral. “Bolsonaro mostrará habilidade política ou apostará no improviso e no excesso de voluntarismo? Em caso de impasse, tentará passar por cima do Congresso e recorrer a plebiscitos (que na legislação brasileira são prerrogativa do Legislativo)?”, perguntou.
Candidatos falam sobre suas campanhas
No segundo painel, quatro candidatos ao Legislativo de diferentes estados e partidos resumiram os principais desafios enfrentados durante suas respectivas campanhas. “O que vocês estão vendo aqui são os cacos do Murilo Flores, pois a campanha em Santa Catarina não deixou pedra sobre pedra”, disse o candidato derrotado a deputado federal pelo PSB.
“Sou servidor público federal e me iludi ao imaginar que conseguiria me eleger com base em propostas técnicas de quem conhece por dentro o funcionamento da máquina pública. Se tivesse repetido à exaustão o fato de ser filho do Almirante Mário César Flores (ex-ministro da Marinha), talvez tivesse saído vitorioso”, brincou. Santa Catarina foi um dos estados em que Bolsonaro teve o maior percentual de votos do país, impulsionando candidatos associados a ele, incluindo diversos militares e policiais da ativa e da reserva.
Já no Rio Grande do Norte, onde o PT teve mais votos do que Bolsonaro, como em toda a Região Nordeste, a polarização PT-Bolsonaro deu o tom, explica Kelps Lima, que conseguiu se reeleger deputado estadual pelo Solidariedade: “Elegeram-se, de um lado, os que defenderam a ideia de ‘Lula Livre’ e, de outro, aqueles que buscaram uma associação com o discurso linha-dura de Bolsonaro.” “O centro político não teve sucesso em propor um caminho para o Brasil com mais serenidade”, disse.
A professora universitária Giowana Cambrone foi uma das 53 candidatas transgêneras em todo o país. Três foram eleitas. Giowana (Rede Sustentabilidade-RJ) não chegou lá, mas pretende continuar na política. “Nós, transgêneros, fazemos política desde que levantamos da cama, pois a todo momento lutamos contra o preconceito e a exclusão. Na campanha, aprendi que candidato trans não deve se limitar a falar de assuntos relacionados a comportamento e sexualidade. Também devemos nos posicionar em relação a segurança pública, educação, saúde, ciência e tudo o mais que importa para a sociedade e o país”, disse.
Para a professora de escola pública Adriana Vasconcelos, candidata derrotada a deputada federal pelo PSOL em São Paulo, o maior desafio foi driblar a falta de estrutura de campanha. “Daí a importância de ter capilaridade, ir até os lugares e estar perto da população, circular ao máximo mesmo sem nenhuma estrutura partidária”, disse.
“As eleições deste ano representaram um terremoto político, que teve aspectos ruins, mas tinha de acontecer, pois o sistema estava esclerosado. Estamos agora no meio dos escombros, caberá às novas gerações construir algo diferente”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao final do evento.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.