Investimentos da China na América Latina e no Brasil: ‘panda ou dragão?’
“Temos um novo elefante na sala, a China, enquanto os velhos elefantes, que moldaram a ordem mundial após a Segunda Guerra, estão em crise”, afirmou o sociólogo Bernardo Sorj.
“Os latino-americanos veem a China como panda ou dragão? Um animal adorável e gentil, que oferece oportunidades de desenvolvimento, ou um ser belo e poderoso, mas que pode engolir a região? Creio que aos poucos a ideia de ameaça evolui para uma visão mais equilibrada.”
Evan Ellis, cientista político norte-americano, dá aulas na Escola de Guerra do Exército dos EUA
“Temos um novo elefante na sala, a China, enquanto os velhos elefantes, que moldaram a ordem mundial após a Segunda Guerra, estão em crise.”
Bernardo Sorj, sociólogo e diretor do Centro Edelstein de Políticas Sociais
“O Brasil é um país-chave para os investimentos chineses na América Latina e ambas as nações podem desenvolver muitos projetos em conjunto. Mas é importante que o Brasil, que se encontra num momento vulnerável, se fortaleça, pois essa parceria exige instituições e empresas fortes dos dois lados. Só assim o Brasil poderá aproveitar ao máximo as oportunidades que a China tem a oferecer”, disse o cientista político norte-americano Evan Ellis, professor-pesquisador de Estudos Latino-Americanos no Instituto de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra do Exército dos EUA, em palestra na Fundação FHC.
Segundo números apresentados pelo professor e pesquisador especializado na relação da América Latina com a China e em questões relacionadas à segurança na região, o Brasil é destino atualmente de 48,2% do total de recursos investidos no continente, seguido por Argentina (12,3%) e Peru (10,5%). Dos cerca de US$ 55 bilhões já investidos, US$ 21 bilhões ocorreram desde 2017 e há mais US$ 71 bilhões já anunciados para os próximos anos. Ao todo, a China investiu na América Latina US$ 113 bilhões desde 2001.
Além da crescente importância do Brasil como foco dos investimentos chineses, outra tendência estratégica na relação sino/latino-americana é a intensificação da cooperação tecnológica nas áreas de telecomunicações, nuclear, espaço e satélites, vigilância e controle.
No caso do Brasil, os investimentos se espalham por vários setores, entre eles construção, logística, eletricidade, energia renovável (eólica, solar e hidrelétricas), agricultura, recursos hídricos, mineração, petróleo, telecomunicações e até mesmo medicina. Veja um inventário atualizado dos investimentos chineses no país e na América Latina na seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página.
Transparência e objetividade
De acordo com o autor do livro “China on the Ground in Latin America” (Edit. Palgrave Macmillan US, 2014), nos últimos anos Pequim tem sido objetivo e transparente em relação aos seus objetivos na América Latina, que, além da intensificação do comércio (importação e exportação), incluem vultosos investimentos e empréstimos e estão explicitados em documento (‘white paper’) divulgado em novembro de 2016.
A política de investimentos visa garantir que a nova potência asiática obtenha matérias-primas e alimentos (‘commodities’) em quantidade suficiente para seus mais de 1,4 bilhão de habitantes, acesso a novos mercados (produtos e serviços) e desenvolvimento tecnológico. “Para se transformar em um país realmente moderno, a China sabe que necessita ter uma economia diversificada e com acentuado conteúdo tecnológico”, afirmou.
‘Multilateralismo chinês’
Em um momento em que os Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump, se tornam mais protecionistas em relação ao resto do mundo — e também a Europa enfrenta um fortalecimento de movimentos nacionalistas (leia mais sobre essas tendências abaixo) –, Pequim investe na criação de novas instituições financeiras internacionais, que incluem os novos bancos de desenvolvimento AIIB (Asian Infrastructure Investment Bank) e NED (New Development Bank), também conhecido como banco dos BRICs, ambos com significativos volumes de capital chinês.
Desenvolve iniciativas como o megaprojeto de infraestrutura ‘One Belt & One Road’ e tenta impulsionar a Área de Livre Comércio da Ásia-Pacífico (FTAAP, na sigla em inglês), liderada pela China, em oposição à Parceria Transpacífico (TPP), acordo comercial anunciado em 2015 durante o Governo Obama, mas que sofreu um duro golpe após Trump anunciar a retirada dos EUA.
Como parte de sua estratégia de “moldar o mundo de forma mais apropriada à ascensão e ao crescimento contínuo da China”, Pequim também busca transformar sua moeda, o RMB, em uma divisa internacional cada vez mais aceita em transações comerciais, operações cambiais e parte integrante das reservas internacionais mantidas por países ao redor do globo.
Panda ou dragão?
Ellis lançou mão de dois símbolos chineses, o panda e o dragão, para falar sobre a percepção latino-americana em relação às oportunidades e aos riscos da crescente presença da China na região: “Seria (a China) um animal adorável e gentil que oferece oportunidades de desenvolvimento, ou um ser belo e poderoso que pode engolir a região?”, perguntou.
De acordo com o palestrante, a China é um “parceiro diferente dos países ocidentais (como os EUA e as nações europeias, presentes na AL há várias décadas ou mesmo séculos), por vezes mais dura, mas que está empenhada em desenvolver melhores relações interpessoais com seus parceiros latino-americanos”.
Como parte do que ele chamou de “soft power chinês”, Pequim destinou mais de 6.000 bolsas de estudo a jovens latino-americanos em universidades chinesas e abriu 39 Institutos Confúcio, de ensino do mandarim, no continente, dez deles no Brasil, em parceria com universidades como Unicamp e Unesp, entre outras.
Segundo o norte-americano, a China não tem a intenção de interferir politicamente em nenhum país latino-americano, mas se preocupa em proteger investimentos feitos pelas empresas chinesas, assim como funcionários expatriados que vivem e trabalham em locais sujeitos a conflitos.
“As empresas chinesas têm buscado avaliar melhor os riscos envolvidos em operações em certos países latino-americanos e já perceberam que alguns projetos, principalmente aqueles que têm importante participação estatal, nem sempre dão os resultados esperados”, disse.
A consequência é que, ao mesmo tempo que “evitam dizer a quem quer que seja como tocar o governo, as empresas chinesas têm enviado equipes técnicas para aprimorar o planejamento e a coordenação dos projetos nos quais estão envolvidas”.
“Como resultado dessa forma mais sofisticada de agir, creio que, pouco a pouco, a ideia de que a China representaria uma ameaça para a América Latina evolui para uma visão mais equilibrada sobre as oportunidades oferecidas pelo país asiático”, concluiu.
Novo ‘elefante na sala’
A visão ocidental de mundo, que prevaleceu durante os últimos 500 anos, entrou em crise a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos e o fortalecimento do islamismo radical nos anos subsequentes. A crise financeira global iniciada em 2008, que expôs os limites do capitalismo liberal, a resiliência do desemprego principalmente em alguns países europeus, elemento catalisador de novos populismos, e a crise dos partidos tradicionais tanto de centro-esquerda como de centro-direita, que resultou no surgimento de novos movimentos nacionalistas e xenófobos, também contribuíram para essa “crise de identidade” do Ocidente.
Nesse contexto de profundo questionamento da ordem internacional do pós-guerra (a partir de 1945) e de bloqueio do sistema internacional, que culminou com a eleição de Donald Trump para a Casa Branca, em novembro de 2016, surge o que o sociólogo brasileiro Bernardo Sorj chamou de “o novo elefante na sala”: a China como nova potência mundial.
“Estaremos no princípio de uma nova ordem internacional com rosto chinês? Como vamos conviver com essa nova realidade econômica, política e cultural que se desenha a partir da Ásia, num momento em que EUA e Europa, em crise de identidade, estão nos abandonando?”, perguntou o diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, ao comentar a fala de Evan Ellis.
Segundo Sorj, a vitória de Trump não deve ser vista como um acontecimento pontual, mas como uma tendência de médio e longo prazo. “A mudança que Trump representa não pode ser reduzida à sua personalidade, e tem reflexos do outro lado do Atlântico. As sociedades desenvolvidas que impulsionaram a globalização já não se sentem capazes de liderar esse processo. Abre-se então espaço para a China atuar como um player central no mundo”, afirmou.
Apesar de a China ser governada por um regime de partido único (o Comunista), de cunho autoritário, e a América Latina trilhar os caminhos da democracia, ainda que com muitas dificuldades, existem, de acordo com o diretor do projeto Plataforma Democrática, afinidades eletivas entre o discurso chinês e a tradição política latino-americana.
“Na América Latina, tanto partidos de direita como de esquerda e os políticos em geral põem ênfase na soberania nacional, em uma visão estatizante e planejadora, e os chamados direitos sociais estão sempre à frente de uma concepção mais liberal do Estado e da sociedade”, disse Sorj. “Nesse sentido, elementos do discurso chinês se mostram mais próximos de nós, latino-americanos, do que a tradição norte-americana e europeia”, concluiu.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.