Perspectivas do governo Milei após as eleições legislativas argentinas – Com Carlos Pagni
Neste webinar, o jornalista e historiador argentino fez um balanço do pleito e analisou os desafios políticos e econômicos da segunda metade do governo Milei.
O presidente argentino, Javier Milei, venceu as eleições legislativas de 27 de outubro último, mas enfrentará um paradoxo na segunda metade de seu mandato. Para avançar no processo de controle da inflação e de estabilização da economia, com retomada do crescimento puxado pelo investimento privado, precisará realizar reformas estruturais e, para isso, terá de dialogar com o Congresso, os governadores das províncias e setores organizados da sociedade, como os sindicatos.
Milei, no entanto, tem um estilo de fazer política e de governar baseado na ideia de reformas radicais e no confronto. E as primeiras mudanças realizadas dentro do governo após a vitória eleitoral indicam que ele não está interessado em mudar esse método. Foi o que disse o jornalista e historiador argentino Carlos Pagni, um dos analistas políticos mais conhecidos da Argentina, neste webinar realizado pela Fundação FHC poucos dias depois da realização das eleições legislativas argentinas, na qual o partido La Libertad Avanza obteve cerca de 40% dos votos, derrotando a oposição peronista.
O evento teve a participação da jornalista Sylvia Colombo, ex-correspondente da Folha em Buenos Aires, e do cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação FHC, que fizeram perguntas ao convidado.
“Lembro-me de que o presidente Fernando Henrique Cardoso costumava dizer que não havia reforma válida que não fosse sedimentar, ou seja, que não fosse se assentando com o passar do tempo até se tornar consensual. Esta certamente não é a filosofia de Milei. Existe um descompasso entre o que ele acredita e o método que precisará empregar daqui em diante. Vamos ver como ele resolverá essa contradição”, disse Pagni, que em sua fala inicial de cerca de 30 minutos apresentou uma análise da Argentina atual baseada em aspectos políticos, econômicos, comportamentais e psicológicos.
Milei será capaz de mudar e fazer alianças?
“Em geral, quem vota em um líder político deseja que ele continue o mesmo. Mas muitas pessoas que votaram em Milei em 27 de outubro, já no dia seguinte às eleições começaram a se perguntar se ele seria capaz de mudar. O governo conseguirá formar uma coalizão no Congresso para aprovar reformas, conseguirá chegar a um acordo com os governadores? Ou Milei continuará a agir com a mesma agressividade de antes, algo que o impossibilitava de fazer alianças com quem quer que seja?”, perguntou Pagni.
“Pessoalmente, não acredito que as pessoas mudem, sobretudo em seus métodos. O modo como fazemos as coisas está muito ligado aos nossos medos. O método de fazer política de Milei, sua forma de exercer o poder, é baseado no confronto, no choque, e isso é incompatível com a necessidade de negociar reformas essenciais para a estabilização da economia”, continuou o apresentador do programa de TV e do podcast Odisea Argentina, um dos mais assistidos e comentados do país.
Por outro lado, os governadores das províncias temem que um eventual fracasso do governo Milei gere uma onda de protestos sociais, um tremendo problema para quem tem responsabilidade pela ordem pública. “Não há nada mais conservador do que um governador, eles têm horror ao caos. Por isso, tendem a apoiar Milei, mas em troca vão exigir dinheiro para obras públicas. Até agora o governo se negou a enviar recursos para as províncias para conseguir realizar o superávit fiscal necessário para controlar a inflação. Isso também vai ter que mudar”, explicou.
Pagni ressaltou que Milei se firmou como o líder inconteste da direita argentina, reduzindo a importância do ex-presidente Mauricio Macri. Com isso, poderá contar com o apoio de parlamentares do PRO (partido de Macri), mas terá que negociar. “As recentes eleições mostraram que existe um líder, o próprio Milei, mas ainda não há um oficialismo com capacidade de garantir um apoio majoritário a seu governo no Congresso. Macri e o PRO estão do lado de Milei ou não estão? O radicalismo (União Cívica Radical, partido do ex-presidente Raúl Alfonsín) apoia ou não apoia o presidente? São questões que terão de ser respondidas nos próximos meses”, disse o jornalista.
Leia o artigo Estilos argentinos de fazer política, escrito pelo cientista político Vicente Palermo especialmente para a série Conexão América Latina
O método de fazer política de Milei, sua forma de exercer o poder, é baseado no confronto, no choque, e isso é incompatível com a necessidade de negociar reformas essenciais para a estabilização da economia.
Carlos Pagni, jornalista e historiador argentino
Milei venceu por ter controlado a inflação e porque não havia alternativas
De acordo com Carlos Pagni, mesmo setores da população que não gostam de Milei temiam que uma derrota em 27 de outubro poderia resultar no retorno da hiperinflação: “A inflação argentina é um problema arcaico, anacrônico. O mundo já superou a inflação, mas a Argentina ainda não. É como ter tuberculose nos dias de hoje. Cristina Kirchner não conseguiu resolver, Maurício Macri também não, nem Alberto Fernández. Milei está conseguindo, embora tenha muitos desafios pela frente para consolidar essa conquista.”
Apenas três semanas antes das eleições legislativas, o país estava sem reservas internacionais suficientes para fazer frente ao pagamento de dívidas que vencem no curto prazo. Nesta situação-limite, o socorro do Tesouro norte-americano, determinado pelo presidente Donald Trump, foi decisivo. Milei colheu o benefício de ter se colocado ao lado de Trump ainda na época da campanha do republicano à Casa Branca.
“Milei foi à Casa Branca pedir ajuda e Trump ofereceu uma linha de empréstimo de US$ 40 bilhões de dólares, mas deixou claro que os recursos só seriam liberados se os partidários de Milei vencessem as eleições legislativas. Essa ‘condicionalidade’ levou muitos eleitores a votarem em candidatos do La Libertad Avanza com medo de um iminente caos econômico, caso os peronistas vencessem as eleições e o país mergulhasse na crise”, disse Pagni.
Entenda a relação entre Javier Milei e sua irmã Karina
Pagni falou sobre a relação entre Javier Milei e sua irmã, Karina, figura fundamental de sua campanha vitoriosa à Casa Rosada em 2023: “Quem é Karina Milei? É quem cuida de Javier desde que ele nasceu. O pai dele era muito agressivo, e Karina sabe que o presidente tem problemas em se relacionar com os seres humanos. Ele se relaciona melhor com os cachorros. Javier também sabe disso e delega à irmã a relação com as pessoas.”
Pagni lembrou que Milei costuma dizer que seu governo tem como base um triângulo de ferro formado por ele próprio, sua irmã e Santiago Caputo, seu jovem consultor político. “Desde 2023, havia uma divisão de trabalho em que Karina cuidava da estratégia eleitoral, de campanha, enquanto Caputo cuidava da administração. Isso acaba de mudar. Existe, no momento, muita tensão entre Karina e Caputo. Ela está buscando limitar o poder de Caputo. Creio que Milei utiliza a irmã como desculpa para não parecer que quem está tentando colocar limites a Caputo é ele mesmo”, explicou.
Segundo o colunista do jornal La Nación, existe uma tentativa de estigmatizar e diminuir a irmã de Milei, “por ela ser mulher e ter se dedicado ao tarô e à confeitaria”, mas os resultados das eleições a fortaleceram. “Foi Karina quem definiu as listas de candidatos do Liberta Avanza em todo o país. E, contra os conselhos de Caputo, ela optou por nomes desconhecidos. Karina defendeu que Milei teria a capacidade de projetar seu encanto em prol de candidatos desconhecidos e deu certo. O Congresso argentino vai estar cheio de pessoas que nunca fizeram política. Esta é mais uma novidade desta eleição. Vamos ver como vai funcionar.”
Um governo ainda mais identificado com Milei ou um governo aberto ao diálogo?
Ainda segundo Pagni, as mudanças no governo anunciadas por Milei após a vitória eleitoral apontam para um governo “ainda mais parecido consigo mesmo, menos aberto a coalizões e ao diálogo”.
“A concepção original de Milei é a de que, para mudar a Argentina, seria necessário uma reforma radical. Ele buscou fazer isso na primeira metade do seu mandato com relativo sucesso. Conseguiu controlar a inflação com um ajuste fiscal drástico e uma política cambial que valorizou o peso frente ao dólar. Quem conhece a história argentina sabe que essa política cambial é insustentável. O dilema agora é como deixar o peso se desvalorizar frente ao dólar, para favorecer as exportações e o investimento privado, sem trazer de volta a inflação herdada do governo anterior.”
Para superar esse dilema, o governo precisa manter a expectativa de que o programa de reformas de Milei continuará avançando, o que, agora mais do que na primeira metade do mandato, vai exigir apoio político para a aprovação de reformas no Congresso. Daí o paradoxo destacado por Pagni.
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Milei quer agradar os EUA, mas não pode romper com a China
Ao falar sobre como Milei deve se posicionar diante da crescente rivalidade entre os Estados Unidos e a China, Pagni destacou que, por razões ideológicas, mas também pragmáticas, o presidente fará o que for possível para atender às preocupações dos americanos com a presença chinesa na América do Sul e reforçar a presença dos EUA na logística e nas telecomunicações da Argentina.
Mas ele sabe que não pode romper com os chineses, que são o destino de grande parte das exportações da Argentina, têm uma estação de satélites instalada em Neuquén (centro-oeste do país) e estenderam uma linha de swap cambial que é um dos pilares das reservas internacionais da Argentina.
Em relação ao Brasil, Pagni destacou que, apesar de Milei já ter atacado o presidente Lula em diversas ocasiões, mais recentemente, em especial depois que Lula e Trump iniciaram um processo de aproximação, o argentino já começou a mudar de atitude. “Mal voltou de Washington, após ter se encontrado com Trump, Milei enviou uma carta para Lula com um tom muito mais amistoso do que utilizava anteriormente. Isso quer dizer que as relações da Argentina com o Brasil dependerão de Trump? Não creio. A integração energética com o Brasil no setor de gás significa uma revolução para a Argentina. Nossos países estão entrelaçados”, concluiu.
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.