Debates
04 de maio de 2016

Bolívia: a derrota no referendo marca o início do fim de Evo Morales?

“O que acontecer no Brasil nos próximos meses será muito importante, pois a paralisia e a incerteza no país afetam a Bolívia e as demais nações da região”, disse o ex-presidente boliviano Jorge Quiroga.

Quatro fatos políticos ocorridos nos últimos seis meses representam o princípio do fim do chamado ‘socialismo do século 21’, implementado em diversos países latino-americanos sob a inspiração e a liderança do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez (1999-2013) e a chancela do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) desde o início dos anos 2000.

Foi o que disse o ex-presidente boliviano Jorge Quiroga, que governou entre 2001 e 2002, em palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, em 4 de maio. Segundo ele, os quatro fatos políticos são:

22 de novembro de 2015 – O oposicionista Mauricio Macri, de tendência liberal, derrota o candidato peronista apoiado por Cristina Kirchner e põe fim a 12 anos de domínio kirchnerista na Argentina;

6 de dezembro de 2015 – A oposição vence a eleição parlamentar e obtém uma ampla maioria na Assembléia Nacional, derrotando o governo de Nicolás Maduro, sucessor de Chávez;

21 de fevereiro de 2016 – O presidente Evo Morales é derrotado em referendo que o autorizaria a se candidatar a um quarto mandato em 2019;

Abril/maio de 2016 – A Câmara dos Deputados e o Senado Federal autorizam a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff (PT), sucessora de Lula, afastando-a do cargo.

“Sou otimista em relação à democracia porque este último semestre será lembrado como aquele que mudou os últimos 13 anos da história recente da América Latina, em que Lula, Chávez e os Kirchner dominaram a região. Lamentavelmente, durante a melhor década econômica da história de nosso hemisfério, resultado de uma conjunção de fatores externos positivos, nossos países sofreram com políticas equivocadas e corrupção. Isso começa a mudar”, afirmou o engenheiro e líder da oposição boliviana desde 2006 até hoje.

“O que acontecer no Brasil nos próximos meses será muito importante, pois a paralisia e a incerteza no país afetam a Bolívia e as demais nações da região.”

Leia os principais trechos de sua palestra abaixo.

Socialismo do século 21

“Tenho escrito artigos no qual defendo que estamos vivendo o princípio do fim do ‘socialismo do século 21’, projeto liderado por Hugo Chávez e exportado para outros países com o dinheiro do petróleo venezuelano, sob amparo e proteção do mito de Luiz Inácio Lula da Silva, o escudo ideal.”

“O Foro de São Paulo era uma construção teórica sem maior significado, mas, somando a capacidade midiática de Chávez aos petrodólares venezuelanos e à blindagem emprestada por Lula, foi a semente desse projeto que dominou a América Latina a partir de 2003.”

Entenda: o Foro de São Paulo foi uma reunião de partidos de esquerda latino-americanos realizada na capital paulista em 1990 pelo Partido dos Trabalhadores com o suposto objetivo de discutir alternativas após a Queda do Muro de Berlim e dos regimes comunistas da Europa do Leste e às políticas neoliberais dominantes na América Latina naquele período. O encontro se repetiu em outras cidades, a cada dois anos.

O talento midiático de Chávez

“Como comunicador, Chávez foi o mais talentoso líder surgido recentemente na América Latina. Era a perfeita combinação de canal de notícias, música, história e comédia, tudo em uma só pessoa. Ao preço de cem mil barris de petróleo por dia entregues a Cuba, obteve o apoio de Fidel e Raúl Castro a seu regime e ao projeto de exportação do ‘socialismo do século 21’ para outros países da América Latina, entre eles o Equador e a Bolívia.”

O silêncio do Brasil

“Apesar dos recursos econômicos e do carisma de Chávez, o que aconteceu na América do Sul não teria sido possível se o Brasil, irmão maior da região, não tivesse se calado e olhado para o outro lado, permitindo o avanço de um projeto que tem várias vertentes, desde a ditatorial pura, que é a que se instalou na Venezuela, passando por uma autoritária e abusiva, como a existente no meu país, até uma democrática, que é, talvez, a que foi posta em prática no Brasil nos últimos 13 anos.”

O efeito Lula

“Quando perguntavam a um candidato ‘de esquerda’ em campanha no Equador, na Guatemala, em Honduras ou em El Salvador se ele era chavista, a resposta era ‘não, eu sou lulista’. Chávez era militar, a associação ideal era com Lula, o político que veio de baixo, de origem operária, um democrata que perdeu três eleições, foi eleito e reeleito e fez sua sucessora.”

Dois pesos, duas medidas

“Creio haver um padrão duplo na maneira como certas instituições multilaterais latino-americanas se posicionaram diante de violações aos direitos humanos e à democracia na região. O Mercosul se politizou e já não serve para nada. A Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), criadas por Chávez, Lula e Néstor Kirchner, nem se fala. Já a OEA (Organização dos Estados Americanos) apoiou o processo que levou à renúncia em 2015 do presidente da Guatemala Otto Perez Molina, acusado de corrupção, mas criticou o atual processo de impeachment contra a presidente do Brasil.”

A boa fase boliviana

“Na Bolívia, três fatores contendo as letras C e H ajudam a entender o bom desempenho da economia boliviana recentemente, em especial sob o governo de Evo Morales (desde 2006). O primeiro CH está relacionado justamente ao presidente FHC, aqui presente. O segundo fator, CHI, tem a ver com a bonança chinesa das últimas décadas. O terceiro elemento, CHA, remete à influência do presidente Chávez.”

O acordo energético com o Brasil

“Muitos pensam que a Bolívia já nasceu explorando e vendendo gás natural, mas a verdade é que nos anos 70 e 80 exportávamos quantidades pequenas para a Argentina e, depois, deixamos de vender. O que mudou tudo foi o acordo energético entre a Bolívia e o Brasil durante o governo Itamar Franco, quando Fernando Henrique Cardoso era ministro das Relações Exteriores (1992-93). O presidente Morales deveria erguer um gigantesco monumento ao ex-presidente FHC porque a Bolívia é um país antes e outro totalmente diferente depois desse acordo.”

“Em 92, Itamar e Fernando Henrique visitaram Cochabamba e convenceram o então governo boliviano a promover a integração energética entre o Brasil e a Bolívia, com a construção de um gasoduto ligando os dois países. Antes, vivíamos de costas um para o outro. Em 99, o gasoduto foi inaugurado e a Bolívia, que antes vendia (pouco) gás e a apenas US$ 1 por milhão de BTUs, começou a vender o produto para o Brasil em volume cada vez maior e por preços cada vez mais altos, superando a marca de US$ 10 por milhão de BTUs.”

A bonança chinesa

“Assim como o Brasil e outros países exportadores de matérias primas, a Bolívia também se beneficiou do impressionante crescimento econômico chinês nos anos 2000 e o consequente aumento dos preços das ‘commodities’ latino-americanas, entre elas o minério de ferro brasileiro, a soja argentina, o cobre chileno, os minerais bolivianos e o petróleo venezuelano, no mercado internacional.”

“As exportações de gás e minério resultaram na melhor década econômica de toda a história da Bolívia. Antes de 2004, a Bolívia exportava entre US$ 1,2 bilhão e US$ 1,3 bilhão por ano. Em 2014, foram US$ 13 bilhões. Os recursos de impostos saltaram de US$ 2,6 bilhões em 2003 para mais de US$ 20 bilhões em 2014.”

A colheita de Morales

“Paradoxalmente, os políticos que, a partir de 2006, integraram o governo Morales se opuseram anteriormente a todos os projetos dos quais mais tarde se beneficiariam, inclusive o acordo com o Brasil e a construção do gasoduto. São como aqueles que são contra um casamento, dinamitam a igreja no dia da cerimônia, bloqueiam o acesso ao hospital no dia do nascimento da criança e, quando ela nasce saudável, se autoproclamam padrinhos.”

Reeleição

“Morales aproveitou a boa situação econômica para obter o direito a uma reeleição. Mas, seguindo o modelo chavista, ele lançou mão de uma manobra judicial para se reeleger duas vezes. O argumento foi o de que, com a promulgação de uma nova Constituição em 2009, a Bolívia havia deixado de ser uma república para se tornar um Estado plurinacional e, com essa nova nomenclatura, o presidente teria direito a disputar mais dois mandatos.”

Entenda: Evo Morales foi eleito pela primeira vez em dezembro de 2005, assumindo em janeiro do ano seguinte. Em 2009, após uma consulta popular, o líder de origem indígena promulgou a nova Constituição, que transformou a Bolívia em um Estado no qual as diferentes etnias indígenas tiveram o direito à autodeterminação garantido e seus idiomas e tradições, reconhecidos. Em 2010, Evo assumiu um segundo mandato e, em 2015, um terceiro, que vai até 2020. Em princípio, Morales não pode se candidatar novamente, mas em 21 de fevereiro deste ano os bolivianos votaram em um referendo sobre uma nova reeleição. Devido a um acúmulo de problemas, incluindo denúncias de corrupção, a população disse não.”

Por que o referendo agora?

“Muitos perguntam por que um governo, no início do segundo ano de seu mandato, propôs um referendo para permitir uma nova reeleição só em 2019? A resposta é que a realidade econômica mundial mudou, em função da desaceleração da China e da redução dos preços das commodities, e Morales terá de governar sob um quadro econômico desfavorável nos próximos anos. Decidiu então realizar o referendo antes que os bolivianos sentissem o tombo.”

Justiça independente

“No paredão dos tempos modernos, os fuzis são procuradores comprados e as balas, juízes domesticados. Assim funciona o sistema de perseguição aos opositores do regime na Venezuela e em outros países da região. Por isso, valorizem os juízes independentes existentes no Brasil, vocês não imaginam o valor que eles têm.”

O Brasil e o futuro político latino-americano

“A democracia requer quatro elementos: eleições livres, instituições independentes, imprensa livre e oposição livre.”

Todos estes elementos estão presentes no Brasil. Por isso, é tão importante que o Brasil — o país com a maior população e economia da região — reencontre o rumo do desenvolvimento e lidere a região diante dos muitos desafios que temos atualmente. A Argentina que me desculpe, mas ela não tem condição de liderar esse processo.”

Vampiro norte-americano

“Os norte-americanos fecharam um acordo comercial com os países do Pacífico (o TPP, ou Parceria Transpacífica) e estão negociando um acordo com a União Europeia. Eles são hoje um importante produtor mundial de petróleo e gás e começam a exportar esses produtos para o resto do mundo a preços mais baixos do que os praticados por nossos países. Assim, o ‘vampiro norte-americano que roubou nosso gás, nosso petróleo e nossas riquezas naturais’ está começando a exportar sangue!”, disse Quiroga com ironia. “O que vamos fazer? O mundo está mudando aceleradamente, todos os paradigmas estão mudando e nós também precisamos mudar.”

Amanhecer

“La Paz está situada em um vale no meio do altiplano boliviano, entre duas cordilheiras. Para vermos o amanhecer, temos de subir uma das montanhas ao redor da cidade e olhar para o Oriente, na direção do Brasil. O sol do desenvolvimento para a Bolívia e a América Latina vem do Brasil. É preciso que ele volte a brilhar com rumo, certeza e liderança.”

Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.