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16 de agosto de 2024

Steven Levitsky: ‘Trump representa uma ameaça maior à democracia hoje do que em 2016, quando foi eleito pela primeira vez’

O cientista político norte-americano esteve na Fundação FHC para um debate que marcou o aniversário de 20 anos da instituição.

Se Donald Trump vencer as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 5 de novembro deste ano, ele estará mais preparado do que em 2016, quando conquistou a Casa Branca pela primeira vez, para usar instituições de Estado com o objetivo de perseguir rivais, amordaçar críticos, violar liberdades civis e encorajar a violência política, entre outras medidas autoritárias. Este foi o alerta feito pelo cientista político norte-americano Steven Levitsky na palestra “Por que a democracia atingiu o ponto de ruptura nos Estados Unidos?”, que marcou o aniversário de 20 anos da Fundação Fernando Henrique Cardoso, em nossa sede no centro de São Paulo.

“Diferentemente do Brasil, as instituições nos Estados Unidos fracassaram em responsabilizar o ex-presidente pelos ataques à democracia, então Trump está disputando a Casa Branca novamente, e com boas chances de vencer. Em 2016, ele não conhecia o funcionamento do Estado, não tinha um plano. Desta vez, o candidato republicano foi bem claro sobre o que fará se voltar à Presidência: ele disse que vai lotear a administração com pessoas absolutamente leais a ele, que utilizará o Departamento de Justiça para investigar e processar seus rivais, que usará o Estado para punir os críticos de seu governo na mídia, que colocará o Exército para reprimir protestos. Esta é uma das campanhas políticas mais abertamente autoritárias que eu já vi. Nem Chávez, nem Erdogan, nem Orban prometeram algo semelhante a isso”, disse Levitsky, co-autor do bestseller “Como as Democracias Morrem” (2018), em parceria com Daniel Ziblatt.

Segundo o professor da Harvard University, Trump não conseguirá transformar os Estados Unidos em uma ditadura, mas, se vencer, o país passará por um período muito perigoso e conflituoso: “Apesar de não terem agido para impedir uma nova candidatura de Trump, as instituições e o sistema de freios e contrapesos ainda têm força. E o fato de sermos uma federação, com governos estaduais com alto grau de independência, impedirá Trump de consolidar uma ditadura nos Estados Unidos. Mas ele violará liberdades civis básicas, reprimirá protestos e encorajará a violência política, inclusive por parte de grupos paramilitares, o que é muito perigoso.”

No plano internacional, uma eventual vitória de Trump afetaria o apoio à democracia no mundo, poderia ter impacto em países onde a democracia ainda não está consolidada e representaria uma inspiração para a extrema direita na Europa e em outras partes do mundo. “Se voltar à Casa Branca, Trump será um modelo de líder autocrata e, durante seu mandato, os Estados Unidos não levantarão um dedo para proteger a democracia mundo afora”, disse Levitsky.

Já se Trump perder a eleição para a candidata democrata Kamala Harris, e principalmente se a derrota for maior do que apontam as pesquisas atualmente, o Partido Republicano pode ser levado a repensar sua recente trajetória de apoio ao projeto autoritário do ex-presidente e voltar a ser um partido de centro-direita, que durante 150 anos teve papel fundamental na democracia americana. Levitsky, porém, não acredita que o Partido Republicano volte a ser o que foi na segunda metade do século 20: liberal na economia, conservador nos costumes e a favor de uma política externa ativa (ainda que os resultados estejam abertos à discussão). O nacionalismo de base étnica, o protecionismo e o isolacionismo, a seu ver, passaram a ser parte intrínseca do partido. Sua esperança é que o Partido Republicano volte a, pelo menos, jogar dentro das regras do jogo democrático.  

“Um dos maiores problemas dos Estados Unidos hoje é que um dos dois principais partidos não está mais comprometido com as regras do jogo democrático. Partidos e políticos comprometidos com a democracia devem sempre fazer três coisas: aceitar os resultados eleitorais quando perdem, rejeitar a violência política e romper completamente seus laços com forças extremistas e antidemocráticas. Desde 2020, quando Trump não aceitou sua derrota para John Biden e a maioria dos republicanos não tiveram a coragem de contestá-lo, o Partido Republicano dos Estados Unidos quebrou essas três regras básicas do comportamento democrático”, explicou Levitsky.

Baixe gratuitamente o artigo “A surpreendente resiliência da democracia”, de Steven Levitsky e Lucan A. Way (Journal of Democracy em Português, maio de 2024).

O cientista político Steven Levitsky em debate na Fundação FHC – Foto: Vinicius Doti

Trumpismo é reação à transição do país rumo a uma democracia multirracial

Segundo Levitsky — que veio ao Brasil para divulgar seu último livro, “Tyranny of the Minority: Why American Democracy Reached the Breaking Point”, publicado no Brasil com o título “Como Salvar a Democracia” (Companhia das Letras) —, os EUA vivem desde os anos 1960, e sobretudo a partir do final dos anos 1980, uma transição rumo a uma democracia multirracial, em que os negros, latinos e asiáticos estão se tornando mais numerosos e presentes na política, na economia e na sociedade, o que é visto como uma ameaça por parte da população cristã branca, acostumada a definir os rumos desde a independência do país (1776).

“Estamos testemunhando nos EUA uma mudança sem precedentes na hierarquia social. O percentual da população que se identifica como cristã e branca caiu de 80% no final dos anos 1960 para 43% em 2016. Por mais de duzentos anos, os cristãos brancos ocuparam todos os principais cargos na administração pública, no setor privado e na sociedade. Eles eram os políticos, os juízes, os CEOs, os diretores das universidades, os apresentadores de TV. Isso está mudando diante dos nossos olhos. O número de parlamentares afroamericanos e latinos quadruplicou desde o final dos anos 1980, passando de 28 em 1980 para 114 atualmente. Em 1969, todos os nove juízes da Suprema Corte eram brancos, hoje temos um juiz e uma juiz afroamericanos e uma juíza de origem latina. E essa transformação acontece também nas empresas, nas universidades, nas emissoras de TV, na publicidade, na cultura”, disse o palestrante.

“Perder o status social dominante pode trazer a sensação de uma ameaça existencial. Muitos dos eleitores de Trump sentem que o país ao qual eles estavam acostumados está sendo tirado deles. E isso faz com que muitos acabem sendo atraídos pelo extremismo. Segundo pesquisa patrocinada pelo American Enterprise Institute, 56% dos eleitores republicanos concordam com a frase de que o modo de vida americano tradicional está desaparecendo tão rápido que será necessário usar a força para impedir que isso aconteça”, continuou.

De acordo com o cientista político, o país viveu dois experimentos de construção de uma democracia multirracial. O primeiro logo após a Guerra Civil americana (1861-1865), sufocado sobretudo por ações do Partido Democrata nos estados sulistas, entre elas impedir a população negra de exercer livremente o direito ao voto. O segundo experimento começou nos anos 1960, com a revolução dos direitos civis, e vem se intensificando a partir do final dos anos 1980, com a rápida transformação demográfica do país, enfrentando desta vez forte resistência do Partido Republicano.

“Começando com Barry Goldwater (candidato republicano à Casa Branca em 1964) e depois com Richard Nixon e Ronald Reagan, os republicanos explicitamente tentaram atrair os eleitores brancos, cristãos e conservadores. E tiveram sucesso. O Partido Republicano passou a ser o partido dos cristãos brancos conservadores, com sua base eleitoral concentrada sobretudo em estados rurais menos populosos. Entre 1968 e 1988, quando o eleitorado norte-americano ainda tinha uma maioria branca cristã, o Partido Republicano venceu todas as disputas no voto popular nacionalmente, com exceção da eleição do democrata Jimmy Carter (1976), devido ao escândalo Watergate”, explicou.

A partir de 1992, o Partido Republicano obteve a maioria do voto popular apenas uma vez, em 2004. Só chegou à Casa Branca também em 2000 e 2016 devido ao sistema do Colégio Eleitoral, composto por 538 delegados que representam os estados. O candidato que obtiver 270 votos no Colégio Eleitoral, mesmo que tenha menos votos nacionalmente, é declarado vitorioso.

“Partidos e políticos comprometidos com a democracia devem sempre fazer três coisas: aceitar os resultados eleitorais quando perdem, rejeitar a violência política e romper completamente seus laços com forças extremistas e antidemocráticas”, disse Levitsky.

Em 2000, o democrata Al Gore obteve 500 mil votos a mais do que Bush no cômputo nacional, mas perdeu no Colégio Eleitoral porque o republicano venceu no Estado da Flórida e, mesmo tendo sido uma vitória por margem ínfima de votos, conquistou todos os delegados do Estado e atingiu os 270 votos necessários no Colégio Eleitoral. Em 2004, Bush, candidato à reeleição, obteve 3 milhões de votos a mais do que o democrata John Kerry. Em 2016, Hillary Clinton obteve mais de 3 milhões de votos a mais do que Trump nacionalmente, mas este conquistou um número maior de delegados no Colégio Eleitoral e conquistou a Casa Branca. As eleições de 1992, 1996, 2008, 2012 e 2022 foram vencidas pelo Partido Democrata tanto no voto popular como no Colégio Eleitoral.

Em face dessa dificuldade crescente de vencer no voto popular nacional, o Partido Republicano tem recorrido a diversas medidas para dificultar o direito ao voto de negros e latinos em estados politicamente dominados pelos republicanos. No Congresso, tem se valido de táticas de obstrução para impedir a votação de uma lei que assegure igualdade real no exercício do direito de voto. 

“A democracia norte-americana não teria atingido o ponto de ruptura que vivemos hoje se os EUA fossem como outras democracias em que a maioria eleitoral governa. Os estados menos populosos e mais rurais estão sobrerrepresentados no Colégio Eleitoral, no Senado e também na Suprema Corte. Em 2016, Trump perdeu o voto popular nacional e levou a Casa Branca. O Partido Republicano perdeu o voto popular para o Senado e obteve maioria na Casa. Esse presidente e esse Senado minoritários indicaram três juízes da Suprema Corte, garantindo uma maioria conservadora no tribunal. Se o voto popular tivesse prevalecido, a Suprema Corte teria hoje uma maioria liberal. Isso se chama governo de minoria”, afirmou Levitsky.

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O cientista político Steven Levitsky em debate na Fundação FHC – Foto: Vinicius Doti

Autores propõem 15 reformas para atualizar democracia americana

No livro “Como Salvar a Democracia”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt propõe 15 reformas para democratizar a democracia americana, entre elas rever o sistema do Colégio Eleitoral e a representação dos estados no Congresso, atualizar o modelo de votação e fixar um limite para os mandatos de juízes da Suprema Corte. 

“Mas essas são reformas de longo prazo e não terão efeito imediato para proteger a democracia nos Estados Unidos, ameaçada por um perigo iminente. O que fazer?”, perguntou. Segundo Levitsky, os EUA historicamente adotaram uma postura bastante liberal (ele usou a expressão francesa laissez faire) em que as eleições funcionam como um mercado, onde todas as ideias podem ser debatidas e as melhores vencerão. “A história mostra que, ao menos na política, essa ideia é ingênua. Os good guys nem sempre vencem em processos democráticos. Peguemos os exemplos de líderes autocráticos como Chávez, Orban, Bukele e outros que obtiveram maiorias em eleições legítimas e, depois que assumiram o poder, agiram contra o estado democrático de direito”, disse.

O cientista político detalhou algumas estratégias para proteger as democracias de ameaças internas: 

  • empoderar o Estado dando-lhe instrumentos para impedir que políticos e movimentos autoritários disputem eleições; 
  • diante de ameaças autoritárias, partidos comprometidos com a democracia devem deixar diferenças políticas e ideológicas de lado e formar amplas coalizões; 
  • quando as instituições e os partidos falharem, a sociedade deve se mobilizar para impedir retrocessos.

“Diversas democracias adotam a chamada democracia militante, em que candidatos ou partidos que ameaçam explicitamente o Estado Democrático de Direito são banidos da política. Isso foi adotado inicialmente na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial e se espalhou pelo mundo e pela América Latina, inclusive o Brasil. “Vejam o contraste entre o que aconteceu nos Brasil e nos Estados nos últimos seis anos. Tanto Bolsonaro como Trump são populistas de extrema direita, ambos fizeram péssimos governos, perderam nas urnas quando tentaram se reeleger e questionaram os resultados das eleições. Mas, enquanto Trump está liberado para disputar a Casa Branca novamente, com boas chances de vencer, Bolsonaro está banido da política por oito anos por ter atacado as urnas eletrônicas e ameaçado a democracia”, continuou.

Levitsky lembrou que a 14º emenda da Constituição dos Estados Unidos prevê que autoridades que participaram de insurreições devem ser impedidas de disputar novas eleições, mas a tentativa de recorrer a essa lei para impedir Trump de disputar a Casa Branca em 2024 foi barrada pela Corte Suprema. Ele também criticou o Senado por impedir a condenação de Trump em processo de impeachment após a invasão do Capitólio por centenas de apoiadores do ex-presidente, em 6 de janeiro de 2020, dias antes da posse de John Biden.

“O Judiciário e o Legislativo fracassaram em tornar Trump responsável por seus atos contra a democracia. Quando as instituições não nos protegem de uma ameaça autoritária, que outros instrumentos temos à disposição? A melhor alternativa são os partidos políticos. Partidos mainstream têm a responsabilidade de expulsar extremistas de suas fileiras e de condenar explicitamente a violência política”, afirmou.

Levitsky elogiou as lideranças políticas brasileiras de direita por reconhecerem rapidamente a vitória de Lula no segundo turno das eleições de 2022, impedindo que Bolsonaro fosse adiante com a sua tese de que teria havido fraude. Elogiou também a condenação pela grande maioria das forças políticas aos ataques às sedes dos três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2022. “Em contraste, a maioria dos líderes republicanos continuou a defender Trump, mesmo depois dos ataques de 6 de janeiro ao Capitólio. Mesmo hoje, com o ex-presidente indiciado, os republicanos continuam a apoiá-lo. Está claro que o Partido Republicano não nos protegerá de Trump”, disse.

Segundo Levitsky, partidos pró-democracia devem deixar de lado diferenças ideológicas e políticas para formar amplas coalizões, dificultar a chegada de forças autoritárias ao poder ou tirá-las de lá. “Vimos isso acontecer no ano passado na Polônia, quando diversos partidos de oposição se uniram para impedir que o partido Lei e Justiça obtivesse um novo mandato. Neste ano, na França, a centro-direita e a centro-esquerda se uniram para formar um cordão sanitário que impediu, mais uma vez, a chegada da Frente Nacional ao poder. Em 2018, parte da direita brasileira foi cúmplice da eleição de Bolsonaro, mas no segundo turno de 2022 ficou ao lado de Lula. São exemplos bem sucedidos de união das forças democráticas contra ameaças autoritárias”, disse.

Sociedade deve se mobilizar para impedir retrocesso democrático

Se nem o Estado nem os partidos são capazes de proteger a democracia, então cabe à sociedade se mobilizar. Empresários, trabalhadores, profissionais liberais, líderes religiosos, intelectuais e artistas devem desenhar uma linha vermelha em defesa do Estado Democrático de Direito. “Vimos isso acontecer em 2023 em Israel, quando milhares de pessoas foram às ruas todas as semanas durante vários meses para protestar contra uma reforma judicial que reduziria os poderes da Corte Suprema, proposta pelo governo Netanyahu. Recentemente milhares foram às ruas na Alemanha em repúdio à agenda anti-imigração do movimento de extrema direita AfD. Também no Brasil a sociedade civil se mobilizou durante o governo Bolsonaro em defesa do Estado Democrático de Direito e das urnas eletrônicas”, disse Levitsky.

“A sociedade civil parece estar mais propensa a reagir a ameaças antidemocráticas quando tem a experiência de perder a democracia e viver sob um regime autoritário. Alemanha e Brasil têm esta memória e experiência, os Estados Unidos não. Após 6 de janeiro de 2021, alguns dos principais líderes empresariais republicanos disseram que não doariam mais dinheiro a Trump por ele não aceitar o resultado das eleições, mas depois esqueceram a promessa e voltaram a apoiá-lo financeiramente. Lideranças religiosas não se posicionaram contra os planos radicais de Trump de deportação em massa. Mesmo as elites mais bem informadas do país não parecem conscientes da urgência de impedir seu retorno à Casa Branca”, continuou.

“O que acontece nos EUA hoje não deveria estar acontecendo. Nós, cientistas políticos, não sabemos muitas coisas, mas concordamos em relação a dois fatos sobre a democracia. Um deles é que democracias ricas nunca morrem. O segundo é que democracias antigas nunca morrem. Então a democracia americana deveria estar a salvo. Só que não. Se não reformar seu sistema político para responder aos desafios do século 21, os Estados Unidos correm risco de ver sua democracia naufragar”, concluiu Levitsky.

Assista à palestra de Levitsky na Fundação FHC em 10 de setembro de 2018

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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