Inovação e Saúde no Brasil: identificando desafios e buscando soluções
“Inovação em saúde exige estabilidade. Não dá para pesquisar e desenvolver novas tecnologias se a cada ano as regras do sistema mudam”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor da FAPESP.
A saúde é uma das áreas com maior potencial de inovação, mas velhos problemas brasileiros — como mudanças constantes na regulamentação de novos medicamentos e produtos, nas regras de incentivo à pesquisa, assim como a insegurança jurídica e a legislação trabalhista rígida — dificultam avanços tanto nos setores público quanto privado no país.
Além disso, o Ministério da Ciência e Tecnologia e, mais recentemente, o Ministério da Saúde têm sido ocupados por políticos em vez de profissionais respeitados e de indiscutível conhecimento técnico em duas áreas tão importantes e sensíveis.
Apesar das dificuldades, o Sistema Único de Saúde (SUS), que foi criado pela Constituição de 1988 para garantir acesso integral, universal e gratuito a toda a população, é considerado uma importante inovação brasileira, mesmo com problemas de sub-financiamento, gestão, demora no atendimento e qualidade.
Essas foram as principais conclusões do debate “Inovação e saúde no Brasil: identificando desafios e buscando soluções”, realizado em 20 de outubro pela Fundação FHC e a Coalizão Saúde, criada há pouco mais de um ano com o objetivo de unir toda a cadeia produtiva da área de saúde e buscar soluções inovadoras para o setor.
“Todos sabemos da necessidade de uma agenda com começo, meio e fim e que perdure. Também é importante que a sociedade se organize”, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na abertura do seminário. “O objetivo de um seminário como este é ver como é possível inovar em saúde no Brasil, quais são os problemas gerenciais, financeiros e como melhorar o relacionamento entre os gestores, os médicos e todos os envolvidos, assim como entre eles e a população.”
“Existe um descompasso entre o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) e dos custos da saúde com pesquisa, equipamentos e medicamentos. Como vamos conseguir equacionar uma atenção de qualidade a toda a população e não apenas a uma parte dela? Este é um desafio que só aumenta com o envelhecimento da população nos próximos 20 anos”, disse Giovanni Guido Cerri, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho Diretor do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas.
“Inovação em tecnologia é mais do que investir em novos equipamentos e medicamentos, é modernizar os processos, é capacitação humana, é todo um universo a ser explorado”, explicou Cláudio Lottenberg, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein e um dos organizadores da Coalizão Saúde. “Além de um direito social, como determina nossa Constituição, a saúde é um vetor econômico de grande representatividade na sociedade contemporânea, que gera empregos, inclusão social e capacidade produtiva.”
“A saúde é uma das áreas de maior índice de inovação no mundo, infelizmente o setor público, que deveria nortear essas ações, está acéfalo no Brasil. Tivemos recentemente dois ministérios que afetam diretamente nosso setor, o da Saúde e o da Ciência e Tecnologia, loteados por razões políticas”, criticou Ruy Salvari Baumer, presidente do SINAEMO (Sindicato da Indústria de Artigos Odontológicos, Médicos e Hospitalares).
“Inovação em saúde exige estabilidade. Não dá para pesquisar e desenvolver novas tecnologias se a cada ano as regras gerais do sistema mudam, se a Lei do Bem deixa de valer, se a maneira de financiar a pesquisa tem mudanças de prioridades”, observou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e professor titular do Instituto de Física da USP. “Insegurança jurídica e custos trabalhistas também impedem a inovação, principalmente por parte das empresas.”
Pontos positivos e negativos
Segundo os participantes do seminário, a saúde no Brasil tem vários aspectos positivos como excelentes médicos, enfermeiros e cuidadores em geral, alguns ótimos hospitais públicos e privados, universidades e centros de pesquisa, assim como entidades de fomento como CAPES, CNPQ e FAPESP e programas como FINEP e FINAME, e grande quantidade de eventos sempre muito procurados por profissionais da área.
“Também temos uma população empreendedora que está sempre em busca de novas ideias e negócios. Por que essas novas soluções não chegam ao SUS ou mesmo ao mercado privado? Por que as ‘startups’ que surgem diariamente no país não vingam? Por que ficam no meio do caminho? Por que raramente uma empresa brasileira desperta a atenção mundial?”, questionou Ruy Balmer, presidente da Baumer S.A e coordenador do Comitê de Bioindústria da FIESP (Federação das Indústrias de São Paulo).
Para o empresário do setor de saúde, o Estado brasileiro atrapalha. “Todos os programas de apoio ou incentivo anunciados nos últimos anos foram cancelados: Reintegra, Lei do Bem, desoneração da folha de pagamento, redução tributária para a Saúde. Faltam regras claras, programas anunciados ou requentados nunca entram em vigor, não são devidamente regulamentados, entram e saem de cena sem medir eficiência e resultado”, disse.
“Gastamos um absurdo para ir a Brasília aplaudir o anúncio de novos programas, que deveriam ser de Estado e não de um governo específico, ter consistência, utilidade e clareza”, afirmou Baumer. “(Precisamos de) menos regras, mas mais claras e constantes. As pessoas têm de aprender a utilizar os processos, o sistema. Um bom exemplo é o da FAPESP, que funciona há muito tempo, todos conhecem e ainda assim exige divulgação constante.”
Para Baumer, “a legislação deve facilitar parcerias, permitir a remuneração de colaboradores sem incorporação trabalhista e reduzir a tributação excessiva e os riscos legais, que travam e inviabilizam muitos projetos inovadores”. Segundo ele, países como Canadá, Israel, Holanda e Coreia do Sul têm se destacado mais na área de inovação e saúde por terem uma relação mais eficiente entre os setores público e privado.
Ainda de acordo com Baumer, embora o Brasil seja reconhecido como um dos dez maiores mercados mundiais de saúde, a participação brasileira em produtos para o setor é inferior a 0,5% do total mundial. “O mercado brasileiro de produtos de saúde é de R$ 25 bilhões por ano, 35% deles são produzidos aqui, o resto é importado. Por que países com mercados menores conseguem resultados melhores?”, disse.
Entre os problemas, estão o excesso de tributações e taxas e a burocracia para aprovar novos produtos, além das dificuldades em colocá-los mais rapidamente nos mercados interno e externo. Também falta apoio do governo a produtos “made in Brazil”.
Para Carlos Henrique de Brito Cruz, no que diz respeito à inovação há duas áreas em que o papel do Estado é insubstituível: na regulamentação de certas atividades, com destaque para a proteção da propriedade intelectual, e no financiamento da pesquisa. “O Estado precisa ter um sistema que garanta que aquele que tem uma ideia e a coloque em prática esteja devidamente protegido. Também deve financiar atividades de pesquisa em áreas em que o risco é tão alto que o setor privado dificilmente o fará. Do contrário nunca se descobrem coisas novas”, afirmou Brito, que é membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Mundial de Ciências (TWAS).
As áreas mais promissoras
Durante sua exposição, o diretor científico da Associação Médica Brasileira, Giovanni Guido Cerri, citou quatro grandes áreas bastante promissoras em que os pesquisadores brasileiros devem buscar parcerias com empresas nacionais e multinacionais para desenvolver soluções locais eficientes e baratas. São elas: biotecnologia, telemedicina/medicina a distância, digitalização da saúde e medicina personalizada.
“Os tratamentos personalizados representarão a grande transformação da saúde nas próximas décadas, com medicamentos desenhados para cada pessoa de forma individual, pois cada uma é diferente, tem seus próprios antecedentes genéticos, histórico de vida e doenças com características específicas”, explicou.
“Outra área em que há inúmeras opções de inovação é a da telemedicina e das consultas a distância, pela internet. Este sempre foi um tabu, mas hoje sabemos que em quase 90% dos casos o paciente resolve dúvidas e obtêm respostas às suas necessidades ao conversar com o médico sem um exame físico”, disse Giovanni Cerri. “O paciente é o maior interessado em sua cura ou tratamento.”
Ele também destacou o papel dos recursos digitais na gestão da saúde, em especial no agendamento eletrônico de consultas e exames e no prontuário eletrônico, que reúne todas as informações sobre o paciente de forma rápida, eficiente e acessível, evitando que elas se percam quando há troca de médico, hospital ou mesmo do setor público para o privado e vice-versa.
“Com frequência a pessoa é atendida pela prefeitura e, quando passa para o Estado, que atende a casos mais complexos, os mesmos exames e procedimentos são repetidos. O paciente não carrega suas informações consigo, elas se perdem simplesmente porque não há um prontuário eletrônico com o histórico do paciente”, explicou Cerri, que foi secretário da Saúde do Estado de São Paulo e é membro do Conselho de Administracão do Hospital Sírio Libanês.
“Nossos pesquisadores também têm conhecimento para desenvolver um sistema de rastreabilidade de medicamentos e próteses, cuja falta de controle custa centenas de milhões de reais ao setor público”, disse.
Carlos Henrique de Brito Cruz salientou a importância de se analisar a grande quantidade de informações gerada pelo sistema de saúde. “Refiro-me a um sistema que permita comparar metadados, pois 99% das estatísticas geradas pelo sistema jamais foram analisadas. Com automatização, digitalizacão e uso adequado da medicina personalizada e da genética, talvez seja possível encontrarmos uma solução para o problema do sub-financiamento da saúde, que do contrário nunca terá fim”, disse o diretor da FAPESP, formado em engenharia eletrônica pelo ITA.
Giovanni Cerri também chamou atenção para os chamados “wearable devices” (novos equipamentos médicos que se adaptam ao corpo do paciente e abrem novas opções de tratamento), um mercado que, segundo análise feita pela Forbes, deve saltar de menos de US$ 5 bilhões atualmente para US$ 50 bilhões nos próximos anos.
“Diz-se em nosso meio que, para ser ministro da Saúde, só mesmo sendo mágico. Já tentamos economistas, médicos e realmente esse é um grande desafio diante das restrições orçamentárias e de todos os problemas de gestão que existem. Para tornar o acesso à saúde de qualidade mais universal, não basta incorporar tecnologia do mundo desenvolvido. É preciso criar técnicas, equipamentos e soluções mais baratas e adequadas ao Brasil. E, depois, reexportá-las para outros países em desenvolvimento ou mesmo para o Primeiro Mundo”, concluiu.
Melhorar o SUS
Brito, diretor científico da FAPESP, destacou que em São Paulo 60% do gasto anual de pesquisa e desenvolvimento é feito por empresas, por meio de seus próprios laboratórios de pesquisa, engenheiros e pesquisadores. Fora do Estado, esse percentual cai para 25%. “Isso leva a uma conclusão óbvia: não é possível ter uma política pública uniforme de apoio à pesquisa em todo o país.”
Além disso, ele descreveu como “razoavelmente intensa” a relação entre universidades e empresas no Estado de São Paulo. Segundo ele, entre 5% e 7% dos orçamentos de pesquisa das universidades públicas paulistas (USP, UNESP e UNICAMP) vêm de parcerias com empresas, comparável à média de todas as universidades norte-americanas (5,5% em 2013). “Há um mito de que nos EUA quem financia a pesquisa são as empresas, mas os principais financiadores são o governo federal, os governos estaduais e as próprias universidades”, afirmou.
“Se quisermos aumentar essa interação, o ponto de partida da conversa é como fazer mais de algo que já sabemos fazer. É uma questão de criar incentivos, superar barreiras, mas já temos uma boa base em São Paulo”, relatou.
De acordo com Brito, quando o assunto é saúde a comunidade acadêmica não deve se ater a parceria com empresas, mas também contribuir para a construção do SUS. “Não tem país da categoria do Brasil que tenha um sistema de saúde como o SUS. Foram pesquisadores brasileiros, das universidades e de órgãos do governo, que idealizaram esse sistema. Precisamos estudá-lo, ver onde tem furos e onde pode melhorar”, defendeu.
Brito também defendeu a realização de mais pesquisas dentro dos hospitais, tendo como base procedimentos e práticas do dia a dia. Como exemplo, ele citou o caso de uma médica do Hospital Sírio Libanês que desenvolveu um método precoce para descobrir se um tumor que entrou em remissão voltará, algo que um exame de imagem só consegue captar um ano ou mais após o tratamento. “É uma inovação muito significativa ocorrida dentro de um hospital com financiamento da FAPESP. Há centenas de projetos como este em SP”, contou.
Por fim, ele destacou parcerias de universidades e institutos paulistas com grandes empresas farmacêuticas do mundo. A Glaxosmithkline financiará dois centros de pesquisa durante dez anos para estudar “green chemistries” (produtos químicos sustentáveis) e as chamadas “moléculas relevantes”.
Já a Unicamp e as Universidades de Oxford (Reino Unido) e Toronto (Canadá) se juntaram a dez empresas farmacêuticas dentre as maiores do mundo, como Bayer e Johnson, para pesquisar quinasses (um tipo de enzima importante no processo de montagem e desmontagem de complexos proteicos). “Tudo o que for descoberto será colocado à disposição de todos os interessados no mundo. Não haverá propriedade intelectual. As empresas patrocinadoras vão se beneficiar ao participar do processo de pesquisa”, contou.
“Apesar dos muitos obstáculos à inovação e, especificamente, na área de saúde, o importante é juntar o Estado, a empresa e a universidade numa combinação virtuosa”, disse Brito.
Para Ruy Baumer, as universidades deveriam desenvolver critérios para avaliar os resultados de negócios desenvolvidos por estudantes e pesquisadores, estimulando assim a criação de startups. “No currículo de estudantes e pesquisadores, deve contar a participação na criação de empresas e em seus resultados. Quando existem metas e métricas bem definidas, o pessoal corre atrás”, afirmou o empresário, que também é conselheiro do SENAI.
Brito lembrou que apenas na UNICAMP 280 empresas foram fundadas por alunos e professores nos últimos 25 anos, com faturamento de R$ 3 bilhões por ano — 50% a mais do que o orçamento anual da universidade — e 20 mil empregos criados. Segundo ele, a FAPESP tem financiamentos de R$ R$ 200 mil a R$ 1,2 milhão a fundo perdido destinados a startups. “Também há muitos fundos privados que investem em empresas inovadoras, mas eles preferem investir em empresas de software. Na área de saúde, é natural que haja mais regulamentação, mas também é preciso haver um certo grau de previsibilidade”, disse.
Finalmente, os palestrantes destacaram a importância do médico liderar o processo de inovação na saúde. “O Brasil forma médicos extremamente competentes do ponto de vista técnico, mas eles precisam compreender melhor as vertentes econômica e de inclusão social, o financiamento da saúde e da pesquisa e as oportunidades que o setor oferece para se tornarem verdadeiros líderes desse processo”, defendeu Brito.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do portal do Estadão e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.