Brasil, brasileiros: Por que somos assim? – Um diálogo entre Cristovam Buarque e FHC
“A ira contaminou a nossa sociedade. E ira não combina com urna. O resultado das urnas em outubro, se for consequência da ira, nos levará ao desastre”, disse Cristovam Buarque, senador pelo Distrito Federal, ex-ministro da Educação.
“Historicamente, no Brasil sempre balançamos entre o ufanismo e o pessimismo sem limites. No momento estamos pessimistas, mas é importante lembrar que conquistamos muito desde a redemocratização. Não devemos perder a esperança.”
Fernando Henrique Cardoso
Em 2018, ano de eleições gerais, inclusive para presidente da República, os brasileiros precisarão redescobrir objetivos comuns e definir um novo rumo para o país, duas coisas que se perderam nos últimos anos tanto por razões internas, em consequência das crises econômica, ética e política e da intensa disputa ideológica resultante delas, como por motivos mais globais, como a crescente radicalização de opiniões nas redes sociais e o descrédito em relação à política mais tradicional, entre outros fenômenos da atualidade.
Esta foi a principal mensagem da conversa entre o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), professor universitário com formação em engenharia e economia, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, último evento realizado pela Fundação FHC em 2017, que marcou o lançamento do livro ‘Brasil, brasileiros. Por que somos assim?’ (Editora Verbena, 338 páginas), organizado por Cristovam Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro.
“É possível divergir sem perder de vista que fazemos todos parte de um conjunto de seres humanos chamado Brasil. E é preciso pensar 20, 30 anos à frente, investindo primordialmente em educação básica de qualidade para todos. Só seremos um país mais produtivo, desenvolvido, ético e justo quando nossas escolas públicas forem comparáveis às melhores do mundo. Fala-se muito da Coreia do Sul (país que se tornou desenvolvido após décadas investindo pesadamente em educação), mas estamos atrás e comendo poeira em relação a países bem mais próximos, como Chile e Colômbia”, disse Buarque, que foi ministro da Educação (2003-2004), governador do Distrito Federal (1995-1998) e reitor da Universidade de Brasília – UnB (1985-1989).
O livro reúne 16 ensaios sobre identidade social, nacionalidade e cultura, escritos por 16 intelectuais brasileiros, entre sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e economistas. “A ideia partiu do senador Cristovam Buarque, diante da sensação generalizada de inquietação e mal-estar existente no Brasil de hoje. Não vemos luz no fim do túnel. O que está acontecendo? Por que somos assim?”, perguntou o sociólogo e pesquisador Zander Navarro, convidado por Buarque a auxiliar na organização da obra.
Leia abaixo os melhores trechos do diálogo entre Buarque, um dos pioneiros dos programas de distribuição de renda no Brasil, ao criar a Bolsa Escola quando governador do DF, e o ex-presidente FHC, ocorrida no dia 14 de dezembro.
Cristovam Buarque – “Em meu artigo para este livro, escrevi o que realmente penso sobre o Brasil e os brasileiros. E a verdade às vezes não é o que o povo quer ouvir. Por isso, não foi fácil. Foi um sofrimento. Afinal, o que querem os brasileiros? Às vezes parece difícil saber o que a população brasileira deseja, mas com certeza todos queremos paz para podermos estudar, trabalhar, viver. E queremos uma renda melhor para nossas famílias terem mais conforto e oportunidades. Estes são, portanto, objetivos comuns a todos nós.”
Fernando Henrique – “A segurança pública é hoje uma das questões mais urgentes do país, pois, como disse o senador, toca a vida cotidiana das pessoas, que querem coisas simples, como direito a trabalho, salário, moradia, transporte, segurança. A violência e a criminalidade preocupam a todos, mas atingem principalmente os mais pobres. Quem tem mais medo de morrer é quem vive nas áreas onde o crime é mais atuante. Se o discurso (da segurança) for apropriado pelos políticos autoritários, eles ganham. O governo federal, com apoio e ajuda do Congresso, precisa assumir de vez sua parcela de responsabilidade na manutenção da paz e redução da violência. Cada vez mais, o combate ao crime organizado, o que inclui a questão das drogas e do narcotráfico, não depende somente da atuação dos governos estaduais e municipais. Esse será um tema central nas próximas eleições.”
CB – “A redução da desigualdade, que permeia todo o tecido social brasileiro, é sem dúvidas um objetivo nacional, mas ela só se tornará realidade quando a eficiência econômica for aplicada à transformação social. A economia brasileira precisa se tornar mais produtiva, competitiva e inovadora. E, claro, ética na política. Tudo isso, no entanto, depende primordialmente de uma coisa: um sistema educacional público igual para todos, nos mais altos padrões mundiais. Isso leva 25 anos, não é de uma hora para outra.”
FHC – “Não há dúvida de que a educação é central para que o Brasil se torne um país mais produtivo e competitivo, a economia cresça e gere mais empregos de qualidade e oportunidades para todos. O nível educacional (do ensino público) não é bom, mas nas últimas décadas houve um grande esforço de incorporação. Há relativamente pouco tempo, 25% dos jovens negros estavam fora da escola. Hoje, 97%, 98% das crianças estão na escola. É preciso melhorar muito, mas houve importantes avanços não apenas na educação, mas também na saúde, na questão agrária etc. Historicamente, no Brasil sempre balançamos entre o ufanismo e o pessimismo sem limites. No momento estamos pessimistas, mas é importante lembrar que conquistamos muito desde a redemocratização. Não devemos perder a esperança.”
CB – “De que precisamos (para atingir o objetivo de uma sociedade mais desenvolvida e justa)? De coesão e rumo. Já tivemos coesão em períodos como o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e durante o Plano Real (governos Itamar Franco e FHC). Também havia coesão nos anos Lula (2003-2010), principalmente durante o primeiro mandato. Mas (nos últimos anos) a frustração e a raiva tomaram conta da sociedade. O Brasil hoje está dividido em seitas. Só com interesses pessoais e corporativos não se constrói um país. A ira contaminou a sociedade brasileira. E ira não combina com urna. O resultado das urnas em outubro, se for consequência da ira, nos levará inevitavelmente ao desastre.”
FHC – “Grande parte da responsabilidade pelas dificuldades que estamos passando é nossa, mas o momento é delicado não só no Brasil, como também na França, nos Estados Unidos, no México, na Argentina, em toda parte. A crise da democracia representativa, liberal, tem a ver com as mudanças do mundo. Os partidos políticos se constituíram no Século 19, nasceram com a aspiração de representar as classes trabalhadora, média etc., numa época em que as classes sociais tinham certa coesão. Mas esse mundo está acabando, as velhas formas de produção e de sociabilidade mudaram. A tecnologia hoje possibilita o controle dos meios de produção em escala planetária, houve uma revolução na comunicação, nos transportes. As classes e as profissões se fragmentaram. A coesão antiga, tal como a conhecíamos até há poucas décadas, já não vigora . As comunidades são virtuais, as pessoas se juntam com base no que pensam, em torno de mensagens, mesmo estando longe umas das outras. Além disso, aqui a corrupção corroeu todo o sistema político. O mundo está de pernas pro ar. É um momento de grandes mudanças, criativo, mas também muito perigoso. Isso explica fenômenos como Trump, nos EUA, e Macron, na França. Ambos destruíram os partidos do establishment, embora tenham vencido com discursos muitos diferentes.”
CB – “O que mais nos impede (de avançar)? A falta de rumo. No Brasil, não estamos pensando a médio e longo prazo. Queremos soluções imediatistas e não sabemos o que queremos no futuro. O egoísmo, a ira e o imediatismo são nossos maiores inimigos. As eleições de 2018 serão o momento de retomar a coesão e definir um novo rumo. É possível divergir sem perder de vista que fazemos todos parte de um conjunto de seres humanos chamado Brasil. E é preciso pensar 20, 30 anos à frente, investindo primordialmente em educação básica de qualidade para todos. Só seremos um país mais produtivo, desenvolvido, ético e justo quando nossas escolas públicas forem comparáveis às melhores do mundo. Fala-se muito da Coreia do Sul (país que se tornou desenvolvido após décadas investindo pesadamente em educação), mas estamos atrás, comendo poeira, em relação a países bem mais próximos, como Chile e Colômbia.”
FHC – “Quando eu era presidente, sempre dizia que as dificuldades e os problemas existiam e sempre existirão, mas que era importante ter rumo. E o país precisa sentir que esse rumo existe. Eu não sou economista, não sou especialista no assunto, mas, quando o grupo de economistas que me assessorava criou o Plano Real para acabar com a inflação, meu papel foi o de explicar para a população o que estávamos fazendo e conquistar seu apoio. Em momentos de mudança e incerteza, como o que estamos vivendo, é importante ter um líder que seja sincero e mostre claramente qual é o rumo. E o que ele diz tem de ser compatível com o que faz. Tem de reencantar, reacender a confiança, sem a qual não se faz nada.”
CB – “Só sairemos dessa situação com mais democracia. Autoritarismo, descrença na política e a busca por alguém de fora do sistema político não levarão a lugar nenhum. O problema é que o povo não quer ouvir os políticos, e os políticos temem dizer o que o povo necessita ouvir. Como fazer com que um candidato que fale na construção de uma nação se destaque de outro que promete um paraíso particular para este ou aquele grupo? Que, em vez de desfiar promessas a curto prazo, proponha uma nação para todos no futuro? As próximas eleições deveriam ser um plebiscito sobre a sinceridade dos candidatos, tanto para cargos no Poder Executivo como no Legislativo. Aquele que conseguir se eleger falando a verdade, ainda que não seja o que o povo quer ouvir, terá aval da população e capacidade de fazer (ou contribuir para) um bom governo. Mas chega de colcha de retalhos para obter apoio político (no Congresso). Somos um povo alegre, mas não estamos felizes. Como transformar a alegria do brasileiro em algo positivo, consistente e duradouro?”
FHC – O Cristovam está fazendo um chamado a sermos reais democratas. A construirmos uma nova coesão e definirmos um novo rumo, sob novas bases. Mas isso não pode ser feito de forma autoritária, e sim voltando à ideia do coletivo. O que nos junta? As nações podem ou não dar certo. O Brasil é grande, forte, mas está correndo um sério risco de não dar certo como nação. O futuro não está garantido. Para chegarmos lá, necessitamos de liderança.”
Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.