Trinta anos da Constituição e os desafios para o Brasil sair da crise
“Qualquer tentativa de escrever uma nova Constituição neste momento de incerteza vai terminar mal. O que ainda resta de segurança jurídica vai para o espaço”, afirmou o professor José Eduardo Faria.
“Não existe cidadania orçamentária no Brasil, pois a rigidez dos gastos previstos na Constituição praticamente impede que o governo (eleito) faça escolhas. É urgente enfrentarmos a realidade de que o Estado brasileiro está exaurido e disseminar a cultura do equilíbrio das contas públicas.”
Ana Paula Vescovi, economista e servidora federal, é secretária do Tesouro Nacional
“A Constituição de 1988 é constituída de normas com texto fechado, quando houve consenso entre os constituintes, ou de princípios mais vagos, quando não foi possível chegar a um acordo. Esta é uma de suas falhas e, paradoxalmente, sua virtude.”
José Eduardo Faria, professor de filosofia e teoria geral do direito da Universidade de São Paulo
“A carga democrática está no DNA de nossa carta e, se não houver um descarrilamento democrático, ela continuará a nos dar a linha e o lastro político para a implementação das políticas públicas.”
Maria Paula Dallari Bucci, professora da Faculdade de Direito da USP e ex-secretária de Educação Superior do MEC
“A maior qualidade da Carta de 1988 tem sido sua resiliência e capacidade de adaptação. A Constituição tem dois andares, com um núcleo rígido que não pode ser alterado enquanto o resto é flexível. Para emendá-la, são necessários ⅗ dos votos no Congresso. Não é fácil, mas já aconteceu uma centena de vezes.”
Oscar Vilhena Vieira, professor de direito constitucional e diretor da FGV Direito SP
“Em países democráticos, não é viável reformar tudo ao mesmo tempo. É preciso escolher as reformas, que devem ser incrementais. E quem faz as escolhas é quem vence a eleição.”
Fernando Abrucio, cientista político e professor do Departamento de Gestão Pública da FGV
“A solução da crise fiscal, razão principal da crise econômica, passa por desconstitucionalizar um pouco, retirando da Carta alguns temas para termos mais liberdade para fazer ajustes no presente e no futuro. Ou não seremos capazes de garantir serviços públicos de qualidade a esta e às próximas gerações.”
Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos
Reformar, sim. Com urgência, espírito democrático e respeito às regras do jogo. Mas convocar uma nova assembleia constituinte para fazer uma nova carta, no momento que o país atravessa, com a sociedade polarizada e o sistema político-partidário em crise, seria arriscado. Esta foi a conclusão deste seminário que reuniu três professores de direito, duas economistas e um cientista político, às vésperas do aniversário de 30 anos da promulgação da Constituição de 1988, em 5 de outubro, dois dias antes do 1º turno das eleições que definirão o rumo do país nos próximos 4 anos.
“Qualquer tentativa de escrever uma nova Constituição neste momento de incerteza vai terminar mal. O que ainda resta de segurança jurídica e institucional no país vai para o espaço”, alertou o professor José Eduardo Faria (USP e FGV), autor dos livros “O Brasil Pós-Constituinte” (Editora Graal) e “Estado e o Direito Depois da Crise” (Editora Saraiva FGV Direito SP).
“Três caminhos me assustam: uma ampla reforma constitucional realizada por um grupo de não-eleitos (como sugerido por um candidato a vice-presidente), pois não há salvação fora do debate político; a convocação de uma assembleia constituinte, que apenas aumentaria a incerteza e não garantiria uma carta melhor do que a atual; e apostar que cabe ao Supremo Tribunal Federal fazer as mudanças no lugar dos eleitos pelo povo, pois o recente protagonismo judicial não tem feito bem ao país”, disse Fernando Abrucio, professor da FGV.
Diálogo com a sociedade
“A sociedade brasileira está insatisfeita com o Estado que nós mesmos construímos (desde a volta da democracia, com base na Carta de 1988). Precisamos urgentemente de lideranças em todas as esferas do poder com capacidade de arbitrar conflitos e encontrar soluções para os graves problemas do país. Só o diálogo sincero com a sociedade trará confiança. Isso é democracia”, afirmou a secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, mestre em administração pública (FGV) e especialista em Políticas Públicas e Gestão governamental (ENAP-DF).
“A Carta de 1988 é frequentemente criticada por ser irrealista, mas foi com base nela que o projeto social-democrata se consolidou no país durante os governos FHC (1995-2002), Lula (2003-2010) e, em parte, Dilma (2011-2016). Nos últimos 30 anos, houve importantes avanços na educação, na saúde e na assistência social, com significativos resultados na redução da desigualdade social. Ainda há muito trabalho pela frente, mas a agenda de políticas públicas estabelecida pela Constituição foi bem-sucedida e será muito difícil revertê-la”, disse Maria Paula Dallari Bucci (USP).
Menos nem sempre é mais
Oscar Vilhena rejeitou a ideia de que uma Constituição mais enxuta como a norte-americana, com apenas sete artigos, seja necessariamente melhor do que uma Carta mais robusta como a brasileira, com 250 artigos (originalmente eram 245). Leia reportagem do jornal “O Estado de S.Paulo” sobre as reformas feita nas Constituição nos últimos 30 anos.
Segundo o diretor da Escola de Direito de São Paulo, o que define a qualidade de uma Constituição é sua capacidade de contribuir para que o jogo político se dê com base no exercício da democracia. “A Constituição dos EUA, em vigor desde 1789, foi elaborada por um grupo de cerca de 60 fazendeiros brancos pouco mais de uma década após a declaração de independência. Sofreu poucas alterações desde então (27) e é elogiada por ter contribuído ao grande desenvolvimento daquele país. Mas é uma exceção no mundo. Toda carta feita por meio de um processo mais democrático e participativo, como foi o caso da Assembleia Constituinte de 1987-1988, resultou em um documento mais robusto”, disse o professor da FGV.
Vilhena citou estudo comparativo sobre a longevidade das Constituições ao redor do mundo, realizado pela Universidade de Chicago. Citando Tom Ginsburg, coautor da pesquisa “The Endurance of National Constitutions”, afirmou: “descobrimos algo surpreendente: as constituições mais detalhadas são aquelas que duram mais” . A longevidade média de 900 Constituições comparadas é de apenas 19 anos. “Por um quarto de século, a Constituição brasileira serviu razoavelmente bem como um instrumento por meio do qual pessoas e grupos políticos com visões de mundo e de país distintas competiram pelo poder e o exerceram de forma democrática”, afirmou Vilhena.
“O que raios então aconteceu nos últimos anos (que parece ter colocado em risco esse convívio relativamente funcional entre as forças políticas)? Ao derrubar em 2006 a cláusula de barreira para os partidos políticos que havia sido aprovada pelo Congresso, o STF tomou sua pior decisão dos últimos 30 anos. A proliferação de partidos (25 com representantes no Congresso) tornou o modelo de presidencialismo de coalizão, presente nas principais democracias europeias, um jogo impossível de ser jogado por aqui, resultando, por exemplo, no mensalão”, disse.
Vilhena também criticou o fato de os distritos eleitorais brasileiros serem muito grandes (o colégio eleitoral do Estado de São Paulo, por exemplo, tem 33 milhões de eleitores), o que levou a uma elevação constante e acentuada dos gastos com campanhas políticas para deputado federal e outros cargos nas últimas décadas, terreno propício para caixa 2, corrupção etc.
Por fim, o constitucionalista lembrou que o confronto entre a obrigação constitucional do Estado de investir em políticas sociais universalizantes (educação, saúde etc.) e a disputa de grupos organizados por nacos do orçamento federal gerou um tensionamento que desembocou na atual crise fiscal. “O futuro da Carta de 1988 depende de nos mostrarmos capazes de preservar as ferramentas de habilitação da democracia, que incluem políticas que beneficiam a toda a população, e remover instrumentos extrativistas ou regressivos que privilegiam grupos específicos”, concluiu.
Estratégia do legislador
José Eduardo Faria lembrou que a Constituição de 1988 foi escrita em um país que acabava de sair de um longo período de ditadura e em um contexto de desorganização econômica, com baixo crescimento e inflação elevada. Além disso, havia uma permanente queda-de-braço entre partidos fundados após o retorno da democracia, em especial o PT, de um lado, e os partidos que se juntaram no chamado centrão, de outro. “Esse desconfiança entre os dois lados fez com que os legisladores adotassem a estratégia de elaborar normas bem definidas, sempre que foi possível chegar a um consenso e, quando não foi, incluir apenas princípios deliberadamente vagos”, explicou.
“Nunca tivemos uma Constituição tão repleta de princípios, que depois tiveram de ser interpretados pelos operadores do direito, incluindo as diversas instâncias do Judiciário”, disse o professor da USP, o que gerou conflitos e insegurança jurídica, mas ao mesmo tempo possibilitou uma evolução gradual da Carta. Segundo Faria, esse processo de interpretação contínua possibilitou a entrada no Brasil de novas maneiras de pensar o direito, com maior influência de institutos jurídicos da tradição anglo-saxônica, em contraposição à nossa tradição franco-românica.
“Essa tendência apareceu com muita clareza durante a Ação Penal 470, mais conhecida como mensalão, quando prevaleceram pareceres e votos de ministros mais inclinados ao direito anglo-saxônico, com destaque para o ministro Joaquim Barbosa”, afirmou. Esse fenômeno, segundo o professor, se acentuou mais recentemente com a Operação Lava Jato.
Institucionalização das políticas públicas
Segundo Maria Paula Dallari Bucci, a Constituição de 1988 institucionalizou políticas públicas em áreas consideradas essenciais como educação, saúde e assistência social, entre outras. “Os constituintes definiram metas, responsabilidades federativas e dotação orçamentária. Essa dimensão jurídica e multidimensional fez diferença na estruturação de algumas políticas sociais e na solidez institucional que assumiram desde então. Foi uma amarração importante e peculiar, um lastro que dificilmente será revertido”, disse.
Como exemplo, ela citou os Planos Nacional de Educação I e II e o SUS (Sistema Único de Saúde). Segundo Paula, a segurança pública não foi colocada no mesmo patamar, ao receber apenas uma menção superficial na Constituição, o que, em parte, explicaria a inexistência de uma política nacional na área da segurança. “Apenas recentemente, as autoridades têm feito esforços mais significativos para criar um Sistema Único de Segurança Pública”, disse.
Federalismo mais sustentável
Fernando Abrucio (FGV) defendeu que as reformas a serem realizadas nos próximos meses e anos devem se sustentar em uma revisão do pacto federativo e um ajuste fiscal associado a um melhor desempenho por parte do Estado. “Ajuste sem desempenho não dá, pois a população quer saúde, educação e outros serviços de qualidade. Por outro lado, sem uma melhor colaboração entre os entes federativos, não conseguiremos desenvolver as políticas que a sociedade exige. É fundamental dar mais sustentabilidade ao federalismo brasileiro, pois a maioria dos Estados e municípios estão quebrados”, disse.
“A reforma do Estado deve ter duas dimensões: por um lado, um cuidadoso ajuste fiscal que garanta saúde financeira a médio e longo prazo; por outro desempenho com democracia”, afirmou. Abrucio também citou a segurança pública como exemplo de política que precisa melhorar. “O que temos hoje é um sistema de segurança pública acéfalo e descoordenado. O PCC invadiu o Nordeste do país, que vive uma epidemia de violência. Falta um desenho correto para essa área tão importante para a vida das pessoas”, disse.
Meritocracia
Zeina Latif, com larga experiência no setor financeiro, disse ser fundamental desenvolver na sociedade a noção de restrição orçamentária, pois só assim será possível entregar serviços públicos essenciais. “O que vemos hoje, com o desequilíbrio dos gastos, é uma falta de compromisso com as futuras gerações. Do jeito que a coisa vai, os jovens não terão perspectivas”, afirmou.
Segundo a economista, é preciso introduzir urgentemente a meritocracia na máquina pública. “Por que não estabelecemos uma regra meritocrática para os repasses constitucionais da União aos Estados e municípios? Aqueles que apresentarem maior avanço na educação, por exemplo, devem ser premiados com mais verbas”, propôs.
‘Sociedade não aceita volta da inflação’
Última a falar, Ana Paula Vescovi alertou que, se o déficit fiscal brasileiro não for revertido a médio prazo (“é irrealista pretender fazer isso em um ou dois anos”), a consequência será explosão da dívida pública, aumento dos juros e retorno da inflação, com baixo crescimento econômico e alto desemprego.
“A sociedade não admite mais inflação alta e suas consequências extremamente prejudiciais. Se isso acontecer, haverá uma convulsão social”, disse. Em 2018, o governo federal prevê um déficit primário (antes do pagamento dos juros da dívida) da ordem de R$ 150 bilhões. Em 2019, a meta é reduzir para R$ 140 bilhões, o que dependerá da atuação das próximas administrações federal e estaduais.
Vescovi, que trabalhou por dez anos na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, defendeu algumas medidas para o país entrar em um rumo mais sustentável, o que exigiria um ajuste fiscal equivalente a aproximadamente 4,5% do PIB:
- 1. Reforma da Previdência
“Deve ser feita com base em critérios de sustentabilidade e equidade”; - Consolidação do teto de gastos (incluído na Constituição em 2016)
“É uma medida que tem sido atacada injustamente, pois já está forçando dentro do governo uma discussão essencial sobre onde e como alocar os recursos disponíveis”; - Priorização correta
Como os recursos são limitados, é preciso priorizar, estabelecer metas e verificar resultados. Como exemplo de “priorização às avessas”, Vescovi citou o grande aumento das verbas destinadas à educação de nível superior nos últimos anos enquanto o ensino básico e médio ainda tem muito a melhorar. “Entre 2004 e 2014, o MEC investiu mais de R$ 120 bilhões no ensino superior. Muitas universidades federais foram criadas e cerca de 100 mil professores universitários foram contratados, e isso não tem volta. Enquanto isso, a transformação das escolas em tempo integral, que custaria cerca de R$ 7 bilhões, não foi adiante. É um claro exemplo de tentar construir a casa pelo telhado.”
A secretária do Tesouro defendeu a manutenção de alguns avanços econômicos do governo Temer, do qual faz parte: “Ainda há muito a fazer, mas a inflação (que ficou acima de 10% em 2015) está sob controle (em torno de 4%) e a taxa de juros caiu bastante (de 14,25% em 2016 para 6,5% agora). Dois fatores que, se mantidos nos próximos anos, beneficiará a todos. A responsabilidade com as contas públicas é algo que rende efeitos para toda a sociedade”, afirmou.
Falta de liderança
Segundo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, cabe ao presidente (no caso, aquele que vier a ser eleito em outubro) convencer a população da gravidade da situação do país e dos esforços que precisam ser feitos para superá-la. “Falar é fácil, fazer é difícil. Exigirá muita liderança, pois as reformas que são necessárias não terão resultado imediato. É importante, no entanto, que a população sinta algum alívio em seu dia a dia, pois do contrário o apoio político ao governo que sairá das urnas não se sustentará”, disse.
“A agenda do país é dada pelo Executivo e só passa no Congresso se o presidente encarnar as mudanças e conquistar o apoio da sociedade, incluindo a maioria da população, o empresariado, os sindicatos, as igrejas e outros setores. Se não souber se comunicar com clareza e de forma convincente, o presidente está perdido”, disse FHC, que foi constituinte e liderou o Plano Real (que estabilizou a economia do país nos anos 90).
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.