Moradia e espaço público: uma discussão sobre o Minha Casa Minha Vida
“O Brasil não pode focar apenas em construção de moradias, precisa investir também em requalificação habitacional, urbanização de favelas e saneamento”, disse Rosana Denaldi, arquiteta e urbanista.
“Feito (em 2016) o dever de casa de não ter mais cobrador batendo na porta do ministério, em 2017 passamos a ter autoridade para retomar as contratações do Minha Casa Minha Vida e exigir melhorias qualitativas no programa.”
Bruno Araújo, ministro das Cidades
“Um país diverso como o Brasil não pode focar apenas em construção de moradias, precisa investir também em requalificação habitacional, urbanização de favelas, melhoria da infraestrutura e saneamento.”
Rosana Denaldi, arquiteta e urbanista, leciona na Universidade Federal do ABC (UFABC)
“O governo federal não deve dar dinheiro para Estados e municípios que não planejam direito.”
Elisabete França, diretora de Planejamento da CDHU (Companhia de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Estado de São Paulo)
“Queremos capacitar os municípios para que produzam mapas de suas necessidades habitacionais, articulados às condições do transporte público e do sistema viário e à oferta de escolas, creches e outros equipamentos.”
Maria Henriqueta Arantes Alves, secretária Nacional de Habitação
As frases acima resumem alguns dos principais desafios do Minha Casa Minha Vida (MCMV), criado pelo governo federal em 2009 com o objetivo de reduzir o déficit habitacional no país, estimado em 5,3 milhões de moradias em áreas urbanas e 750 mil no meio rural. O programa, que inicia agora sua terceira fase, foi objeto do debate “Moradia e espaço público: uma discussão sobre o Minha Casa Minha Vida”, realizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso em 20 de fevereiro.
De acordo com o ministro das Cidades, Bruno Araújo, a prioridade no ano passado, após a troca de governo ocorrida em maio, foi zerar a inadimplência com as empresas de construção parceiras do programa e pagar todas as faturas atrasadas de obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) nas áreas de mobilidade e saneamento nos Estados e municípios.
“Sou bom pagador. Assumimos o Ministério das Cidades com uma situação de inadimplência e sei o que posso fazer sem dever R$ 1,00 para ninguém”, afirmou Araújo.
Desde meados de 2014, o Brasil está em recessão e apresenta sucessivos déficits orçamentários. Como consequência, o orçamento do Ministério das Cidades foi reduzido de cerca de R$ 33,6 bilhões em 2015 para cerca de R$ 9,6 bilhões em 2016. Em 2017, deve aumentar para cerca de R$ 13,1 bilhões. Veja estes e outros números apresentados pelo ministro na seção Conteúdos Relacionados (à direita).
Melhor governança, planejamento e integração à cidade
A partir de agora, Bruno Araújo quer melhorar a governança do MCMV e atacar problemas conhecidos como baixa qualidade de parte das moradias construídas, ausência de árvores e áreas verdes comuns, distância e isolamento em relação às áreas urbanas e oferta inadequada de serviços públicos essenciais como segurança e transporte público. “Quando inauguramos um conjunto do MCMV, é comum o identificarmos de longe pelo tamanho do empreendimento, a inexistência de um projeto urbanístico e a marginalização em relação ao restante do município. Esses são importantes desafios que temos de enfrentar”, afirmou.
“O Minha Casa Minha Vida tem um histórico positivo ao reconhecer a responsabilidade do Estado no sentido de reduzir, ou pelo menos conter, o déficit habitacional no país. Mas enfrenta problemas como degradação, vandalismo e ocupação dos conjuntos por milícias”, disse. Segundo o ministro, grupos criminosos visam principalmente os empreendimentos maiores, com mais de 1.500 ou 2.000 unidades, motivo pelo qual o governo pretende limitar o tamanho dos novos conjuntos habitacionais subsidiados pelo MCMV.
Outra crítica foi em relação aos aspectos urbanísticos e paisagísticos, assim como com questões de ocupação territorial. “Há empreendimentos no Nordeste de 4.000, 5.000 unidades sem uma única árvore plantada. As crianças precisam caminhar longas distâncias para a escola sob sol forte”, disse.
“De modo geral, há uma satisfação dos moradores da porta para dentro e quanto às condições básicas de infraestrutura, e dificuldades da porta para fora, no que diz respeito ao acesso ao trabalho, comércio, equipamentos e serviços públicos”, afirmou. De acordo com o ministro, 64% dos moradores preferem a nova moradia, apesar das reclamações relacionadas a falhas de construção, mas 70% deles reclamam da falta de área de lazer e segurança.
Segundo o ministro, a falta de um sistema moderno de governança, com foco em soluções de TI, resulta em casos como o de municípios no Maranhão onde o déficit habitacional é de cerca de 1.000 unidades, mas foram construídas mais de 10 mil casas ou apartamentos. “Nas inaugurações, tenho visto moradores beneficiados com carro zero quilômetro na garagem. Seguramente foram entregues dezenas de milhares de unidades a brasileiros que não necessitavam tanto em detrimento de outros”, disse.
Em fevereiro deste ano, o governo federal anunciou as novas faixas de renda para financiamentos do MCMV: Faixa 1 (famílias com renda mensal até R$ 1.800),
Faixa 1,5 (até R$ 2.600), Faixa 2 (até R$ 4.000), Faixa 3 (até R$ 9.000). Os juros do financiamento são mais baixos quanto menor a faixa de renda. Na Faixa 1, o subsídio concedido pelo Estado chega a 90% do valor do imóvel.
Por fim, segundo Araújo, milhares de unidades entregues entre 2011 e 2014 continuam desocupadas, por diversas razões. “Em 2017, quero evitar que prefeitos e vereadores busquem arregimentar a esmo possíveis beneficiados e condicionar a contratação de novas unidades à certeza de que elas contribuirão para resolver problemas reais da comunidade”, disse.
Nem a lógica do mercado nem a participação popular são um mar de rosas
Para Rosana Denaldi, ex-secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Santo André (no ABC paulista), um dos problemas do MCMV é que o programa destina vultosos recursos para a construção de moradias por empresas de construção privadas, cuja lógica e interesses nem sempre coincidem com os da população e os do próprio Estado em seus diferentes níveis.
“O tempo e os interesses do setor privado são diferentes. E eles têm sido privilegiados pela lógica do Minha Casa Minha Vida, que recentemente se tornou praticamente a única política de habitação popular. A consequência é que muitas vezes, em vez de realizar um projeto dentro de uma favela, constrói-se fora dela. Ter a iniciativa privada como parceira é algo positivo, mas o MCMV também deveria permitir maior envolvimento do município, assim como financiar projetos de movimentos de moradia e cooperativas habitacionais. É importante que se canalize uma quantidade maior de recursos para o Minha Casa Minha Vida Entidades”, disse a arquiteta e urbanista.
“As empreiteiras gostam mais de fazer Minha Casa Minha Vida porque ganham mais. Já para os políticos, é mais fácil entregar a chave de uma moradia nova do que, por exemplo, urbanizar uma favela, que é uma coisa mais complicada mas que, quando bem feita, também dá voto”, afirmou.
“Para desenhar esses programas, é necessário ouvir os diversos atores e segmentos da sociedade. A participação popular não é um mar de rosas, mas sem ela é pior. Captar os diversos olhares contribui para acertar”, afirmou.
Responsabilidade federal com o espaço urbano
Denaldi também criticou a produção de novas moradias de forma desarticulada em relação ao Estatuto da Cidade, instituído em 2001, penúltimo ano do Governo FHC, para regulamentar o capítulo sobre Política Urbana da Constituição de 1988. “Da primeira fase do MCMV para a segunda, houve melhorias, assim como agora na terceira fase. Cabe aos municípios aplicarem o Estatuto da Cidade para garantir cidades mais justas e ambientalmente mais sustentáveis, mas o governo federal pode contribuir, condicionando o fomento. A relação entre o Estado e o espaço urbano ainda é dominada pelos interesses do mercado e não devemos deixar esse conflito ser tratado apenas na esfera municipal”, disse.
Rosana Denaldi também defendeu um maior diversidade nas políticas habitacionais do país. “É preciso diversificar as modalidades de intervenção para dar conta da diversidade que temos neste país. Priorizou-se o Minha Casa Minha Vida em detrimento de outros programas como financiamento de unidades sanitárias e cisternas. Há regiões do semiárido baiano onde esta é a prioridade”, explicou.
Elisabete França, diretora de Planejamento da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) concordou que a questão do déficit habitacional requer uma “cesta de soluções em consonância com a realidade de cada local”. Assim como a palestrante anterior, Elisabete chamou atenção para o subdimensionamento das favelas e a falta de saneamento no país: “Não temos até hoje um censo de favelas realmente confiável no Brasil. E mais de 100 milhões de pessoas vivem em locais com condições precárias de saneamento e acúmulo de lixo.”
Elisabete defendeu a revitalização de cortiços e prédios deteriorados em regiões centrais das cidades, por meio de PPPs (Parcerias Público Privadas), mas alertou para entraves na lei que dificultam a reforma desses imóveis, alguns deles antigos. Sugeriu também “maior criatividade” para conseguir financiamento para projetos na área habitacional, que, segundo ela, poderiam receber recursos de fundos internacionais e do BNDES.
Exemplos positivos
Como exemplos de projetos de urbanização com bons resultados no Estado de São Paulo, a diretora da CDHU citou o Programa de Recuperação Socioambiental da Serra do Mar, uma parceria entre as Secretarias da Habitação e do Meio Ambiente para combater a ocupação irregular de áreas de Mata Atlântica em Cubatão, e a urbanização da Favela do Areião, situada em área de proteção aos mananciais em São Bernardo do Campo, esta última com recursos do PAC.
No caso do projeto na Serra do Mar, cerca de 5.000 famílias que vivem em situação irregular nas encostas das montanhas foram ou serão removidas para áreas próximas, enquanto outras 2.500 famílias que moram em locais onde é possível fazer a urbanização terão suas moradias consolidadas no próprio local.
Também a Operação Urbana Consorciada Água Espraiada, em andamento na região próxima à Marginal Pinheiros e às avenidas Jornalista Roberto Marinho e Chucri Zaidan, na zona sul da capital paulista, foi elogiada pela palestrante. “São exemplos de lições aprendidas com bons resultados”, disse.
Capacitação dos municípios
A secretária nacional de Habitação, Maria Henriqueta Alves, salientou que o Ministério das Cidades tem de respeitar as competências dos municípios previstas na Constituição e não pode interferir diretamente no planejamento urbano das cidades. “Estamos tentando capacitar os municípios, inclusive em parceria com a Universidade Federal do ABC”, disse.
A secretária de Habitação apresentou uma consolidação dos números do Minha Casa Minha Vida desde seu início em 2009 até 2016. Após um pico de 900 mil unidades habitacionais (UH) contratadas em 2013, nos anos seguintes houve uma redução progressiva: cerca de 600 mil UH contratadas em 2014, menos de 400 mil UH em 2015 e cerca de 300 mil UH em 2016. Na Faixa 1, as contratações caíram de 400 mil em 2013 para 132 mil em 2014 e apenas 1.100 em 2015.
Segundo os dados apresentados, em 2014 foram entregues quase 600 mil UH, esse número baixou para cerca de 400 mil UH no ano seguinte e, em 2016, voltou a ultrapassar a casa dos 600 mil UH. Em 2017, o governo federal pretende entregar 610 mil unidades habitacionais. Veja os números consolidados na seção Conteúdos Relacionados (à direita).
Cartão Reforma
Outra iniciativa do Ministério das Cidades é o Cartão Reforma, cujo objetivo é auxiliar famílias com renda até R$ 1.800 a realizarem pequenas reformas ou melhorias em suas casas. O valor médio do benefício para compra de materiais de construção será de R$ 5.000 por meio de um cartão da Caixa Econômica Federal, recebido na casa do beneficiado. O governo destinou R$ 500 milhões ao programa.
“O Cartão Reforma já nasce com melhor nível de governança e controle em tempo real dos processos pelo Ministério Público Federal, Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União e Ministério das Cidades ”, disse Bruno Araújo. De 10% a 15% dos recursos disponíveis serão destinados aos municípios, que, de acordo com as regras do programa, serão responsáveis por selecionar os beneficiários, fornecer assistência técnica e fiscalizar as obras e as lojas de venda de material. Além disso, deverão ser disponibilizados engenheiros, arquitetos e outros especialistas para orientar os projetos.
MP da Regularização Fundiária
O ministro das Cidades também falou sobre a Medida Provisória 759/2016, que estabelece novas regras para a regularização fundiária rural e urbana, publicada pela Presidência da República em 22 de dezembro do ano passado. “Estima-se que cerca de 100 milhões de brasileiros vivam em imóveis sem registro. Precisamos dar dignidade a essas famílias, reconhecendo a posse de suas casas e tornando-as legítimas proprietárias”, disse Araújo.
Para a arquiteta e urbanista Rosana Denaldi, a iniciativa de destravar os processos de regularização fundiária é louvável, mas não deveria ser feito por meio uma MP e, sim, de um projeto de lei. As medidas provisórias, de autoria do presidente da República, começam a vigorar imediatamente após sua publicação e passam por um processo legislativo mais rápido.
“A regularização fundiária é um marco regulatório muito importante para ser instituído por meio de uma MP, sem amplo debate com toda a sociedade, os Estados e os municípios. Diversas cidades, inclusive algumas governadas por prefeitos da base governista, estão descontentes porque não foram ouvidas na elaboração da MP. O debate deveria envolver o Conselho Nacional das Cidades”, disse a ex-secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Santo André.
Bruno Araújo defendeu a urgência da proposta: “Sabemos que matérias como a regularização fundiária nem sempre atraem a atenção necessária por parte dos congressistas e podem levar até 12 anos para serem votadas. Este governo tem pressa em entregar ao país um novo modelo de regularização de imóveis. Queremos a aprovação de uma nova lei em no máximo 6 ou 7 meses”, disse.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.