Covid-19 e a Recessão Geopolítica – por Ian Bremmer
Fundador e presidente do Eurasia Group, Bremmer deu nota baixa para a resposta norte-americana ao novo coronavírus (‘merece de C para D’) e alertou que o país mais rico do mundo está fracassando no aspecto social.
Em webinar realizado após uma semana de protestos antirracismo nos Estados Unidos, o cientista político norte-americano Ian Bremmer, um dos mais respeitados especialistas em macropolítica global e risco político, deu nota baixa para a resposta norte-americana ao novo coronavírus (‘merece de C para D’) e alertou que o país mais rico do mundo está fracassando no aspecto social, tendência que se agravou com a pandemia do novo coronavírus.
“Mais negros do que brancos estão morrendo de Covid-19, mais negros do que brancos estão ficando desempregados, mais negros do que brancos sofrem violência por parte da polícia, mais negros do que brancos lotam o sistema penitenciário”, disse o fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria empresarial com escritórios em várias cidades do planeta, inclusive São Paulo. A conversa, que teve a participação de Christopher Garman, diretor executivo para as Américas do grupo, foi mediada por Luiz Augusto de Castro Neves, ex-embaixador do Brasil em Pequim.
“Aqui em NY, nos últimos três meses só ouvíamos sirenes de ambulância dia e noite. Agora, escutamos sirenes de polícia e helicópteros sobrevoando uma Manhattan lotada de protestos. O mesmo acontece em outras cidades importantes como Los Angeles e Chicago. Quando os afro-americanos veem a violência sofrida por George Floyd em Minneapolis, e nada acontece com o agente responsável, o que podem fazer se não sair às ruas, mesmo no meio de uma grave pandemia? Os Estados Unidos estão profundamente rachados e Trump não atua para unir o país, pelo contrário aprofunda a divisão”, disse Bremmer no início deste webinar.
Apesar das críticas feitas às autoridades americanas — “Trump agiu como um cheerleader ao repetir ‘não se preocupem, vamos vencer esse vírus’, mas governadores e prefeitos também foram responsáveis pela lentidão em reagir à pandemia” —, o analista elogiou a resposta econômica à Covid-19. “O presidente do Federal Reserve (Banco Central americano), Jerome H. Powell (indicado por Trump, mas com mandato independente), tem feito um trabalho fantástico. No Congresso, os partidos Republicano e Democrata colaboraram para aprovar medidas importantes. O mercado de ações está reagindo bem e o dólar sairá desta crise mais forte comparado a outras moedas internacionais”, disse.
‘As Big Techs são as únicas vencedoras, e elas são todas americanas’
Embora o governo Trump adote uma postura isolacionista em relação ao resto do mundo, Bremmer acredita que os EUA continuarão dando as cartas no cenário global, principalmente devido à força das grandes empresas de tecnologia americanas. “Não existem países vitoriosos diante do coronavírus. As únicas vencedoras são as Big Techs, que possibilitaram que a economia mundial continuasse a funcionar minimamente e nos permitem conversar agora, com mais de mil pessoas nos assistindo. E elas são todas americanas”, afirmou.
“No futuro, teremos mais big data, mais deep learning, mais vigilância eletrônica e também monopólios mais fortes por parte das companhias americanas. Elas terão papel importante na preservação do poder econômico e geopolítico norte-americano nos próximos anos e décadas”, continuou. Ainda de acordo com o palestrante, “as únicas empresas de tecnologia com capacidade de desafiar esse monopólio são chinesas, mas elas serão impedidas de atuar nos EUA e em outras economias ocidentais industrializadas devido à guerra fria tecnológica existente entre Pequim e Washington.”
‘G Zero: um mundo sem liderança global’
Para Bremmer, viveremos um período de “recessão geopolítica” como resultado da falta de apetite dos Estados Unidos em continuar a liderar o mundo, papel que exerceu com êxito desde o final da Segunda Guerra Mundial (1945) até recentemente. Com a eleição de Trump em 2016, os EUA adotaram o slogan America First e estão progressivamente abandonando o multilateralismo em prol do isolacionismo. “É o que chamo de G Zero, em vez de G7 ou G20, como no passado. A consequência de uma ausência de liderança global será um mundo mais volátil”, disse.
Essa recessão geopolítica traz, no entanto, uma notícia positiva: “Seremos forçados a refletir sobre o desgaste do sistema de governança global que vigorou até recentemente, o que inclui a ONU, a OMC, a OMS e outras instituições multilaterais como a Otan. Elas terão de ser profundamente reformadas ou novas instituições serão construídas do zero”, disse.
Pequim prefere Trump a Biden
Segundo o analista, o afastamento de Washington de seus aliados tradicionais (em Berlim, Paris, Londres, Tóquio etc.) abre espaço para Pequim ampliar sua zona de influência não somente na Ásia, mas também em outros continentes. “Se os EUA pretendem entrar em uma disputa pra valer com Pequim, a segunda maior economia do mundo e a única outra potência com empresas de tecnologia com potencial para desafiar as americanas, seria melhor lutar com nossos aliados tradicionais do nosso lado”, alertou.
Bremmer relatou que fontes chinesas com quem conversou recentemente preferem a reeleição de Trump a uma vitória do democrata Joe Biden nas eleições norte-americanas de novembro deste ano. O motivo seria justamente o crescente isolamento norte-americano sob a liderança do republicano. “Tanto um governo republicano como um democrata adotarão políticas duras em relação à China. Mas, segundo os chineses, Trump continuará a retirar os EUA dos principais acordos e instituições multilaterais e a danificar a rede de alianças do país pelo mundo. Já Biden, se eleito, provavelmente determinará o retorno dos EUA ao Acordo de Paris e à Parceria Transpacífica e priorizará a formação de uma forte aliança internacional para conter Pequim”, disse.
‘Um narcisista que não assume responsabilidades’
Segundo Ian Bremmer, que disse preferir focar suas análises em instituições e não em pessoas, Trump é comumente associado a três características: “Ele certamente tem uma inclinação ao autoritarismo, mas as instituições têm agido para contê-lo. Não há dúvida de que, como empresário e também como político, agiu de forma antiética em diversas oportunidades, mas não há indícios de corrupção sistêmica em seu governo. É a incompetência presidencial que tem maior potencial de prejudicar seriamente os Estados Unidos. Trump é um narcisista, não ouve ninguém e não está interessado em assumir responsabilidades. Isso é ainda mais grave no momento em que os EUA e o mundo vivem uma crise de grandes proporções”, disse.
Entusiasta do “excepcionalismo norte-americano” – a ideia de que os EUA são uma nação qualitativamente diferente das outras e, por este motivo, lideram o mundo pelo exemplo (e não só pelas armas) – Bremmer afirmou já não saber se esse soft power segue em vigor. “Por muitas décadas, cidadãos de todo o mundo admiraram nossa democracia e mídia independente, nossas empresas e universidades. Os EUA eram a terra das oportunidades e o capitalismo de mercado, um modelo de desenvolvimento. Com o declínio da classe média, o aumento do desemprego (tanto o estrutural como o resultante da pandemia), a violência racial e as políticas contrárias à imigração, será que o sonho americano ainda faz sentido? Como pedir que outros povos nos sigam?”, concluiu.
Garman: ‘Líderes antissistema estão se saindo pior na pandemia’
“Quais líderes mundiais estão se dando melhor ou pior na resposta ao coronavírus, segundo a opinião pública?”, perguntou Christopher Garman. “Já podemos ver emergir um padrão tanto nos países industrializados como nos emergentes. A popularidade de alguns chefes de Estado ou de governo aumentou de 5 a 10 pontos percentuais ou até mais após os governos que lideram adotarem medidas rígidas de isolamento social, testagem em massa e monitoramento eficaz da evolução da pandemia. Aconteceu na Alemanha e na Coreia do Sul, por exemplo. Outros presidentes, como Trump, López Obrador (México) e Jair Bolsonaro, não viram sua aprovação aumentar, mas até diminuir. Em comum, eles têm fortes credenciais antissistema. O instinto deles, diante de uma ameaça grave, é atacar para tentar sair das cordas em vez de adotar políticas baseadas na racionalidade e na ciência”, afirmou.
Garman, diretor-executivo para as Américas do Eurasia Group, disse acreditar que não haverá impeachment nem ruptura democrática no Brasil, mas Bolsonaro sairá enfraquecido, com redução do peso do Executivo nacional no equilíbrio entre os Poderes da República. O consultor demonstrou preocupação com a situação fiscal e o crescimento econômico brasileiro nos próximos anos, mas afirmou acreditar “na capacidade do Congresso de reduzir o impacto do choque”.
“As atuais lideranças parlamentares têm bem frescas as lições do descontrole fiscal gestado durante o governo do PT, uma das razões para o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Creio que o Congresso terá um papel construtivo e, ao mesmo tempo que aprova verbas emergenciais para o combate à Covid-19, cuidará para que os mecanismos de controle fiscais não sejam comprometidos de forma permanente”, disse.
“Quando olho à distância o que está acontecendo no Brasil, não tenho dúvida de que o sistema político brasileiro não está indo bem. Se isso serve de consolo, nós, americanos e brasileiros, podemos ser parceiros e experimentar essa profunda disfunção juntos. Em vez de America First (slogan preferido de Trump), por que não adotamos o America & Brazil together?”, brincou Bremmer, em um raro momento em que se referiu diretamente à situação no Brasil.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.