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Debates

O desafio da regulação das mídias sociais na democracia

/ auditório da Fundação FHC


Os políticos e a sociedade brasileira precisam enfrentar o “dever geracional” de criar um conjunto de leis para lidar com os problemas da era digital, como a disseminação maciça de fake news nas redes sociais, os riscos decorrentes do uso da Inteligência Artificial e a necessidade de encontrar novas formas de remunerar o jornalismo profissional, cujo modelo de negócio foi prejudicado pela internet e enfrenta nova ameaça com a IA generativa. 

No entanto, o debate no Congresso Nacional, onde ele deve ocorrer, tem sido dificultado pela extrema direita bolsonarista e por representantes das big techs no país. Para superar esse bloqueio, o governo e sua base parlamentar precisam priorizar essa complexa agenda e melhorar sua articulação política para aprovar as leis necessárias, sem pressa, mas de forma persistente e consistente. 

Esta foi a mensagem transmitida pelo secretário de Políticas Digitais do governo federal neste debate realizado pela Fundação FHC e pelo Pacto pela Democracia, que contou também com a participação da jornalista Patrícia Campos Mello e do advogado Francisco Brito Cruz, especialista em direito digital.

“Não é qualquer regulação que vai resolver as diversas questões que surgiram com a internet, as redes sociais e, mais recentemente, a IA. Tem armadilhas, tem o risco de autoritarismo no meio do caminho, mas é preciso fazer o debate. E o debate, neste momento, está interditado”, disse João Brant, que tem mestrado em Regulação e políticas de comunicação pela London School of Economics, foi secretário executivo do Ministério da Cultura e trabalhou por dez anos em organizações da sociedade civil, em temas como liberdade de expressão, infraestrutura de telecomunicações e direitos da internet. 

“Sem regulação, só as big techs ganham. Com regulação, todos ganham”, afirmou o secretário, que trouxe uma apresentação sobre o contexto histórico do advento da era digital, os principais desafios que ela suscita e as prioridades da Secretaria de Políticas Digitais, ligada à Secretaria de Comunicação da Presidência da República.

“Como repórter, toda vez que vou cobrir este assunto tenho a sensação de viver o ‘dia da marmota’. Quando os políticos se dispõem a aprovar alguma regulação, vem alguém dizer que precisa de mais discussão. Aí tem mais discussão, mas uma combinação de lobby das big techs e da indústria às objeções da extrema direita acaba bloqueando o processo. E continua tudo como está”, disse Patrícia Campos Mello, repórter especial da Folha de S.Paulo. A expressão dia da marmota, usada nos Estados Unidos, descreve o sentimento de algo já visto ao reviver uma situação repetidas vezes.

“O que me preocupa é que, mais uma vez, teremos neste ano uma eleição sem que haja uma regulação específica para lidar com a divulgação de informações falsas pelas redes sociais ou a utilização indevida da Inteligência Artificial em campanhas eleitorais. Se ocorrerem abusos, quem vai ter que decidir é o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), cujos membros não foram eleitos pela população. O Congresso Nacional é o local adequado para definir essa regulação, mas o contexto político não é favorável”, afirmou a jornalista.

“De fato, temos hoje um curto circuito que impede a realização de um debate construtivo sobre o tema da regulação das tecnologias e dos serviços digitais. Os interesses das big techs e da extrema direita, entre outros, estão nos impedindo de enfrentar esse dever geracional. O passivo é grande demais e está cobrando juros”, alertou Francisco Brito Cruz, fundador e diretor do InternetLab. 

Segundo o professor da pós-graduação em Direito Digital da FGV Direito SP, o governo federal precisa fazer uma autocrítica: “É uma vergonha que a base do governo Lula no Congresso não consiga impulsionar uma discussão qualificada sobre questões tão relevantes e atuais para os direitos individuais e coletivos e a própria democracia. Temos que avançar mais rapidamente, e o governo tem papel fundamental nesse processo.”

Garantir a integridade da informação como política pública

“Se a sociedade precisa estar bem informada para tomar decisões, não pode haver um cenário em que a desinformação seja maciça sem que o Estado atue para mudar esse quadro”, disse Brant. “Do meu ponto de vista, combater a desinformação não é algo que se oponha à liberdade de expressão, mas sim algo que reforça a liberdade de expressão”, continuou o secretário, contrapondo-se ao discurso da extrema direita de que regular as redes sociais com o intuito de combater as fake news esconde o verdadeiro objetivo de limitar a liberdade de expressão.

“Como garantir a integridade da informação como política pública?”, perguntou o secretário, segundo o qual o governo pretende atuar em várias frentes:

- regulação de mercados e serviços digitais;

- educação midiática;

- fortalecimento e sustentabilidade do jornalismo de interesse público; 

- estímulo ao pluralismo e à diversidade na comunicação;

- apoio à pesquisa, desenvolvimento e inovação na área digital;

- atuação direta sobre notícias falsas contra políticas públicas;

- definição de novas estruturas regulatórias e de governança do universo digital.

“Vamos implementar uma agenda de promoção e proteção da integridade da informação que enfrente o problema em sua raiz, com o cuidado de não reforçar a polarização política”, afirmou. Embora tenha evitado se comprometer com um cronograma de aprovação de novas leis, Brant disse acreditar que ainda este ano a Câmara dos Deputados deve votar o Projeto de Lei 2370/2019 e o Senado Federal deve aprovar o PL 2338/2023.

O PL 2370 prevê o pagamento de direitos autorais por conteúdos audiovisuais publicados nas plataformas digitais e uma remuneração a ser paga pelas empresas de tecnologia, inclusive e sobretudo as big techs, a veículos da imprensa pelo aproveitamento de conteúdo jornalístico nas redes sociais, em sistemas de busca e de IA generativa.

Já o PL 2338 dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial no país e é uma iniciativa do presidente da casa, senador Rodrigo Pacheco, após a consolidação de pelo menos três propostas que haviam sido apresentadas anteriormente, processo que teve a colaboração de uma comissão de 18 juristas, a realização de um seminário internacional, diversas audiências e consultas a representantes de setores que devem ser impactados pela IA.

“No caso deste projeto, temos hoje um texto pronto para ser votado em que o governo federal apresentou colaborações e tem ajudado na articulação para sua aprovação. O fato do relator ser uma importante liderança do Partido Liberal é um avanço no sentido de mostrar que o diálogo entre governo e oposição é possível”, disse Brant, referindo-se ao senador Eduardo Gomes, do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

Já o Projeto de Lei 2360/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, mais conhecido como PL das Fake News, está paralisado na Câmara dos Deputados. 

“Arthur Lira, presidente da Câmara, criou em junho um grupo de trabalho para analisar o PL das Fake News, mas passaram-se quase dois meses e a comissão nunca se reuniu. Está muito difícil aprovar no Congresso, de forma democrática, uma regulação que combata as notícias falsas e outras irregularidades na internet. O resultado é que enfrentaremos mais uma campanha eleitoral sem regulação. A definição de como lidar com eventuais problemas vai acabar ficando com o TSE ou o STF, o que não é a melhor opção”, disse Patrícia Campos Mello.

Inteligência Artificial é nova ameaça ao jornalismo profissional

A repórter alertou para uma nova ameaça ao jornalismo profissional que surge com o uso cada vez mais intensivo de Inteligência Artificial nos sistemas de busca. “Vamos imaginar que alguém pergunte qual é um bom vinho do Rio Grande do Sul. O sistema vai minerar informações em revistas especializadas, fazer um resumo e lá no final colocar os links para quem quiser saber mais. Mas a grande maioria das pessoas vai ficar satisfeita com aquela informação resumida e não vai clicar nos links, o que não gera tráfego para o site especializado, prejudicando ainda mais um modelo de negócio que já estava capenga”, disse. 

“Não sou otimista, não vejo muitos caminhos para onde ir em relação à sustentabilidade do jornalismo no mundo digital. Até a CNI (Confederação Nacional da Indústria) se posicionou contra a cobrança de direitos autorais para a mineração de dados em modelos de IA generativa, aliando-se às big techs. Para as grandes plataformas digitais, o cenário ideal é protelar o debate. Assim elas ganham tempo e vão tocando o negócio do jeito que é mais lucrativo para elas”, concluiu a jornalista.

Parlamento deve estabelecer uma agenda legislativa e avançar passo a passo

Para Francisco Brito Cruz, advogado especializado no tema, as questões da era digital são muito complexas e devem ser enfrentadas passo a passo. “Não dá para juntar tudo na mesma lei, é complexo demais. A União Europeia, que está mais avançada na regulação, tentou empacotar tudo, mas viu que era impossível e acabou estabelecendo uma agenda legislativa que já vem sendo trabalhada há alguns anos”, explicou. 

Cruz listou os principais desafios que os parlamentares têm pela frente:

1. Regulação das redes sociais para limitar a disseminação de notícias falsas e discursos de ódio;

2. Remuneração de conteúdos jornalísticos pelas plataformas digitais para garantir a sustentabilidade do jornalismo; 

3. Remuneração dos direitos autorais de artistas em sistemas de Inteligência Artificial;

4. Classificação dos riscos inerentes à IA e como lidar com eles;

5. Garantir a concorrência no mundo digital e equacionar o poder cada vez maior das bit techs.

“Qual a prioridade? O que vem primeiro, o que vem depois? É preciso entender o que está mais maduro e o que ainda não está, e avançar passo a passo, de maneira persistente e consistente”, disse. 

Brito alertou não existir uma relação de causalidade, no curto prazo, entre a regulação dos serviços digitais e a proteção da democracia: “A Europa criou várias leis e olha o que aconteceu nas recentes eleições na França, no Reino Unido, em Portugal e no Parlamento Europeu. Em todas elas, a extrema direita continuou avançando.”

“Não devemos ter a ilusão de que uma regulação dos serviços digitais possa resolver no curto prazo problemas como a polarização política e o fortalecimento de movimentos radicais. Nosso objetivo deve ser proteger os direitos humanos e a democracia no médio e no longo prazo”, concluiu.

 

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.
 

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