Ir para o conteúdo
Logotipo do FFHC Menu mobile

/imagens/27/02/pdt_bnn_12702.jpg

Debates

Lições da pandemia: cuidar é tarefa de todos

/ Transmissão online - via Zoom


A pandemia do novo coronavírus provocou na maioria das pessoas a conscientização sobre a vulnerabilidade de cada um e de todos e da importância de cuidar de si, mas também dos outros, dos familiares mais próximos a pessoas com quem convivemos e até mesmo de desconhecidos. Esta foi a mensagem inicial deste webinar, que discutiu a importância de criarmos uma “sociedade do cuidado” mais equânime, realizado em parceria com o Quebrando o Tabu.

 

“Todos somos dependentes e interdependentes de cuidados ao longo de todo o ciclo da vida. Entretanto, uma antiga construção cultural identifica na condição feminina um suposto dom natural de cuidar e servir. Não é fácil mudar isso.”

Bila Sorj, socióloga, é professora titular da UFRJ, onde coordena o Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero (NESEG).

 

“Pais ativos e participativos na educação, na formação e no cuidado dos filhos e filhas resultam em crianças mais seguras, empáticas e mesmo autônomas, pois possuem concepções menos estereotipadas sobre os papéis de gênero na família e na sociedade.”

Mafoane Odara, mestre em psicologia pela USP, é especialista em questões relacionadas a direitos humanos e redução das desigualdades e gerente do Instituto Avon.

 

“Essas questões [do cuidado], que são colocadas como sendo responsabilidade principalmente das mulheres, precisam ser inseridas como temas de toda a sociedade. Daí a importância de  termos mais mulheres na política, de forma a impulsionar esse debate no Executivo e no Legislativo.”

Marina Helou, graduada em administração pública pela FGV, é deputada estadual em São Paulo (Rede Sustentabilidade).

 

Qual deve ser o papel do Estado, das empresas e da sociedade civil para induzir uma divisão mais igualitária do cuidado entre homens e mulheres? Como valorizar o cuidado como prática individual e coletiva? “As atividades do cuidado englobam práticas materiais e afetivas e podem assumir duas formas: trabalho remunerado ou não remunerado. Nos dois casos, são desvalorizadas e exercidas sobretudo por mulheres”, afirmou Bila Sorj.

Cuidar envolve as tarefas domésticas de zelar pelas pessoas (como idosos e crianças), limpar a casa e preparar alimentos (exercidas por membros da família ou pessoas contratadas, de acordo com a legislação trabalhista ou não) e profissões remuneradas dos mais diversos tipos como enfermagem, cuidadores, trabalhos de limpeza etc.

No âmbito doméstico, pesquisas comprovam a sobrecarga sobre as mulheres. Segundo o IBGE, em 2019 as mulheres dedicavam quase o dobro de horas aos afazeres domésticos e cuidados com familiares (21,4 versus 11 horas semanais gastas pelos homens). “Dados coletados durante a pandemia revelam que os homens aumentaram o tempo investido no domicílio, mas as mulheres fizeram isso em proporção ainda maior. Os homens investem esse tempo primordialmente em atividades como o entretenimento das crianças. Ou seja, não houve uma redistribuição equitativa dos afazeres domésticos”, disse a socióloga.

Segundo a pesquisadora bolsista do CNPq e da FAPERJ, quanto mais equitativa a distribuição dos cuidados, mais equilibrado o exercício da liberdade entre gêneros e grupos sociais distintos:“A sociedade moderna valoriza a autonomia e a independência individual, mas para que isso seja possível é preciso compartilhar ou remunerar bem as atividades cotidianas de manutenção da família e da casa.”

         Saiba mais:

         Discriminação contra a mulher: desafios a superar no mundo e no Brasil

 

         Dedicação às crianças

Uma das questões que se destacou na conversa foi o cuidado dedicado às crianças desde os primeiros meses de vida. Segundo Bila, o Brasil “é um dos países onde a disparidade entre as licenças maternidade e paternidade é maior. Para as mulheres contratadas segundo a CLT, o mais comum são 120 dias de licença, enquanto os homens têm direito a apenas 5 dias”.

Mafoane Odara, conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos, do Comitê de Diversidade da FGV Direito SP e do Instituto Vamos Juntas, iniciou sua participação contando que, quando ela e o marido decidiram ter filhos, ambos chegaram a um acordo de que o pai ficaria um ano cuidando do bebê após o término da licença maternidade dela, que durou cinco meses.

O arranjo do casal provocou estranheza no ambiente corporativo da executiva da Avon, empresa conhecida por boas práticas de responsabilidade social. “A ideia de um homem se afastar do trabalho por um ano para cuidar de uma criança é geralmente percebida como se ele estivesse de férias ou com a vida fácil. Era comum as pessoas perguntarem ‘mas você não achou ninguém para cuidar do seu filho?’. Minha vontade era de responder ‘então, achei meu marido’”, disse.

“Não basta mudar a lei para que a licença paternidade seja, por exemplo, de 40 dias. É necessária uma mudança cultural profunda”, disse Marina Helou. A deputada contou que, em diversas conversas que teve com homens funcionários de empresas, eles foram claros em dizer que não desejavam tirar esse período de licença por temer perder espaço profissional. “É muito difícil para o homem compreender a importância de dar apoio à mulher e fortalecer o vínculo com o filho nos primeiros dias de vida. Mas as mulheres também resistem, principalmente nas camadas mais pobres da população. Várias ex-gestantes me disseram ‘a última coisa que eu quero é um homem dentro de casa porque, além de cuidar do bebê, também vou ter que cuidar dele’”, relatou.

O cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC e mediador do encontro, observou que, mesmo no caso de maridos que admitem a importância de uma participação maior nas funções de cuidado, a adaptação não é tranquila: “O homem sai, ainda que provisoriamente, de um lugar onde ele se sente capaz para exercer seu trabalho e vai para casa sem ter desenvolvido, inclusive por razões culturais, as habilidades fundamentais para ser razoavelmente competente. Muitos associam as tarefas domésticas a um rebaixamento de sua masculinidade.”

“Nem sempre a mulher sabe, de antemão, como ser uma boa mãe e cuidar da casa. Como mulher advinda de uma família privilegiada (em termos econômicos), eu não sabia. Mas não tive opção. Aprendi na marra”, comentou Marina, cofundadora do movimento Vote Nelas e membra da RAPS e do Renova BR.

 

          Assista ao Diálogo na Web “Por que o feminismo (ainda) incomoda? E a quem?”.

 

          Terceirização do serviço doméstico

A sobrecarga no cuidado com a família e a casa faz com que muitas mulheres precisem ‘precarizar’ uma dessa atividades ou optar entre a família e o trabalho, no último caso terceirizando o cuidado com os filhos e o lar. “A gente não deveria ter que fazer a escolha entre ser mãe e ser profissional”, disse Mafoane, conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos, do Comitê de Diversidade da FGV Direito SP e do Instituto Vamos Juntas.

Segundo Bila, o Estado brasileiro é responsável por essa dramática escolha, devido a sua “histórica ausência na promoção de serviços essenciais de apoio, como creches de boa qualidade para todas as crianças que precisem”. As três palestrantes lembraram que, quando a mulher precisa trabalhar e contrata outra mulher, menos favorecida economicamente, para cuidar da casa e dos filhos, o ciclo de disparidade se acentua.

“Se outra mãe que já vive numa situação precária enfrenta duas horas para ir trabalhar em outra família, mais duas horas pra voltar e, ao chegar na sua casa, ainda tem trabalho doméstico para fazer, a injustiça se aprofunda”, disse Mafoane.

Marina ressaltou que no Brasil “precisamos adicionar uma camada de raça a essa reflexão porque a divisão desigual do cuidado entre classes sociais ainda reflete a longa existência do regime de escravidão (abolido em 1888) e o fato de até hoje existir racismo no País”. “Os filhos da elite brasileira crescem vendo mulheres negras realizando o trabalho doméstico e esse modelo mental é difícil de mudar”, lembrou.

 

          Leia também:

          A questão racial no Brasil: o que mudou, o que falta mudar e o papel do movimento negro

 

          Como mudar essa realidade?

As convidadas foram unânimes em afirmar que, para iniciar uma mudança de mentalidade, é essencial trazer o cuidado para fora do âmbito doméstico e para dentro dos espaços públicos como pauta de discussão e também como presença material e simbólica.

A presença das crianças no ambiente de trabalho foi apontada como um instrumento poderoso: “Tenho tentado trazer os meus filhos para mais perto do meu trabalho. (...) Quando participei do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, fazia questão de levar minha filha ao Palácio do Planalto. Na primeira vez que fiz isso, foi uma correria para instalar um trocador de fralda, que não existia anteriormente. Explicitar a necessidade de criar condições para uma criança ser bem-vinda no local-símbolo do poder em Brasília reforça a ideia de que as mulheres podem e devem ocupar qualquer lugar na sociedade brasileira”, disse Mafoane.

“No meu gabinete, há um espaço definido para as mulheres amamentarem e as crianças ficarem com segurança”, contou Marina, que teve bebê recentemente. Trazer o cuidado para a esfera pública envolve discutir os papéis do Estado e das empresas. Segundo a deputada, o poder público frequentemente reforça o patriarcalismo. “Quando o Ministério da Saúde afirma que a amamentação exclusiva tem que ocorrer até os seis meses de idade, mas o Ministério do Trabalho dá apenas quatro meses de licença maternidade, percebemos essa disparidade”, disse.

Marina relatou a dificuldade de compatibilizar a função de mãe com o exercício de seu mandato na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. “As votações começam às 19 horas e vão até às 23 horas. É impossível que uma pessoa que realmente tenha cuidado com os seus filhos e com a sua casa participe disso. Isso vale para as deputadas e também para os deputados. Essa prática simboliza a sociedade patriarcal em que vivemos”, afirmou.

“A baixa presença feminina na política é fruto de um modelo mental secular em que a política não é lugar para as mulheres. O prédio do Senado Federal tem 60 anos e há apenas cinco existe um banheiro feminino no plenário. As senadoras da República tinham que ir até o anexo para fazerem suas necessidades básicas. Pode haver sinal mais explícito de que mulher não deveria ocupar uma vaga no Senado?”, perguntou Mafoane.

A executiva da Avon salientou que “no mundo corporativo, é essencial haver políticas como horários reduzidos e flexíveis de trabalho, tanto para homens como mulheres poderem cuidar dos filhos, além de creches e outras facilidades”. Segundo Mafoane, as empresas que mais têm evoluído são as que têm conseguido promover o debate de forma integrada: “A discussão do cuidado não é apenas das mulheres, é refletir sobre os homens e o seu papel no cuidado, sobre a masculinidade. (...) Algumas empresas têm encarado esses desafios de frente, e os resultados aparecem”. 

        Evitar a polarização

Apesar de a pandemia de Covid-19 ter evidenciado o quanto o cuidado é uma tarefa essencial, falar sobre uma distribuição mais equânime continua a ser um grande desafio. “O conservadorismo ainda está muito presente dentro da família e, mesmo no Legislativo, quando falamos na palavra gênero, os ânimos se acirram. Se focamos na concepção de sociedade do cuidado e de que a vida pode ser melhorar para homens e mulheres, mais e menos favorecidos economicamente, existe um espaço mais fértil para construir um futuro melhor para todos”, defendeu Marina Helou.

“De fato, as conversas sobre o tema são rapidamente sequestradas por preconceitos e condicionamentos. A conversa do jeito que normalmente estávamos acostumadas a fazer ativa alguns gatilhos que não deixam a coisa evoluir como deveria. O exercício necessário é o de não cair nas armadilhas da polarização”, acrescentou Odara.

“Está na hora de refletirmos de maneira mais crítica sobre a forma como geramos e distribuímos riqueza. Pensar em uma sociedade em que o cuidado, o respeito e a reciprocidade na relação com o outro sejam centrais exige também construir uma sociedade menos voltada para a produção a qualquer custo, em que o dinheiro não seja colocado acima de tudo e o bem-estar social e a vida coletiva sejam mais valorizados”, concluiu Bila Sorj.

 

        Conheça o projeto Linhas do Tempo, recém-lançado pela Fundação FHC:

        Evolução dos Direitos das Mulheres no Brasil (1985-2018)

 

Beatriz Kipnis, bacharel e mestre em Administração Pública e Governo (FGV-SP), é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação Fernando Henrique Cardoso.

Mais sobre Debates