Debates
17 de novembro de 2016

Japão: a política econômica de Shinzō Abe em questão

“Conforme a tradição samurai, as três flechas devem ser lançadas simultaneamente para ganhar força e acertar o alvo”, explicou o economista Heizō Takenaka.

Ao se tornar primeiro-ministro do Japão pela segunda vez, em dezembro de 2012, Shinzō Abe lançou um conjunto de medidas econômicas apelidado de “Abenomics”, com o objetivo de tirar a economia japonesa de uma estagnação que já dura mais de duas décadas. Conhecidas como “as três flechas”, elas consistem em forte aumento do dinheiro em circulação para reverter um processo deflacionário; expansão do gasto público no curto prazo, com posterior consolidação fiscal; e reformas estruturais para estimular o crescimento, incluindo desregulamentações e privatizações.

“Conforme a tradição samurai, as três flechas devem ser lançadas simultaneamente para ganhar força e acertar o alvo”.

“A chamada Abenomics trouxe alguns resultados positivos, mas não suficientes. Questionado por um repórter, o próprio premiê deu nota 67 sobre 100 para seu governo (relativamente baixa para os exigentes padrões japoneses). Na minha opinião, o que ele quis dizer é que a primeira seta (expansão da base monetária) atingiu seu objetivo, com 100% de sucesso. Mas as duas outras setas (política fiscal flexível e crescimento econômico) até agora só tiveram 50% de êxito”, disse Takenaka, economista, professor da Universidade Keio (Tóquio) e que ocupou três ministérios importantes da área econômica no Governo Junichiro Koizumi, outro período de reformas no país (2001 a 2006).

Após se tornar a segunda maior economia do mundo, nos anos 1970, o Japão experimentou  uma bolha de crédito imobiliário ao longo da década seguinte.  A bolha explodiu ao final dos anos 1980 e desde então a economia japonesa não retomou o crescimento. Passou a sofrer com uma tendência crônica à deflação, redução do consumo e dos investimentos.

Para tentar reverter esse processo, Abe propôs dobrar o dinheiro disponível na economia no prazo de dois anos e estabeleceu uma meta de inflação de 2% ao ano, que ainda não foi atingida. Por causa da expansão monetária, o valor das ações mais do que dobrou nos últimos três anos.

Pleno emprego, mas consumo fraco

“No mercado de trabalho, temos uma taxa de desemprego próxima de 3%, o que é considerado mundialmente como ‘full employment’ (pleno emprego). Mas isso não quer dizer que as pessoas estejam felizes porque os salários não têm aumentado”, disse Takenaka. Segundo o economista, o baixo desemprego também é reflexo da tendência de redução da população japonesa (atualmente são cerca de 126 milhões de habitantes, mas há quase 200 mil nascimentos a menos do que mortes por ano).

O aumento do consumo, um dos objetivos da Abenomics, não se concretizou, pois há cerca de dois anos houve um aumento no imposto sobre consumo (determinado pelo governo anterior para conter o crescente déficit público), que provocou uma queda no gasto das famílias. Após um crescimento do PIB de 1,4% em 2013 (primeiro ano do governo Abe), a economia teve 0% de crescimento em 2014 e apenas 0,4% em 2015. Em 2016, a expectativa é que o PIB japonês cresça no máximo 1%, mas nem isto está garantido.

Para tentar estimular os investimentos e o consumo, em fevereiro deste ano o Banco do Japão decidiu seguir os passos do Banco Central Europeu (responsável pela política monetária dos 19 países que utilizam o euro) e da Dinamarca, Suíça e Suécia e passou a adotar uma política de taxa de juros negativa. Na Europa, as taxas de juros negativas estão em vigor desde 2014, com resultados ainda insatisfatórios para o crescimento. “O Japão tem um nível de poupança elevado, o que é bom, mas precisa buscar um melhor equilíbrio entre poupança, consumo e investimento”, disse.

Maior dívida do mundo

Se, por um lado, a Abenomics ainda precisa provar sua eficácia, politicamente o premiê Shinzō Abe tem tido êxito. O Japão viveu um período de forte instabilidade política entre 2006 e 2012, quando o teve seis primeiros-ministros (inclusive o próprio Abe). Em 2012, Abe voltou ao poder e, nas eleições realizadas em julho de 2016, ele foi reeleito para mais um mandato e sua coalizão obteve maioria de dois terços no Parlamento. Ao declarar vitória, Abe afirmou que utilizaria o amplo apoio popular para aprofundar as reformas econômicas.

De acordo com Takenaka, apesar das medidas de estímulo ao crescimento ainda não terem dado o resultado pretendido, Abe tem outra tarefa urgente: iniciar um processo de consolidação (ajuste) fiscal para diminuir o déficit do governo e reduzir a dívida pública do país, equivalente a mais de 200% do PIB (Produto Interno Bruto), a mais alta do mundo. A explicação para uma dívida tão elevada está na política fiscal expansionista dos últimos anos, principalmente depois da crise financeira global de 2008/2009, além dos custos de reconstrução após o terremoto e o tsunami de março de 2011.

Para ter uma ideia do tamanho do problema, a Grécia, país considerado virtualmente insolvente, tem uma dívida equivalente a 170% de seu PIB. A diferença é que o déficit japonês até agora tem sido financiado internamente: pelo próprio Banco do Japão e outros bancos japoneses, o setor privado e a sociedade. Já a dívida grega está nas mãos de credores externos, principalmente de países mais ricos da União Europeia, como a Alemanha.

Mas, se nada for feito para reduzir o déficit governamental, a dívida japonesa pode se tornar um problema grave. “Será inevitável fazer uma ampla reforma no sistema de bem-estar social no país, incluindo as aposentadorias (previdência)”, afirmou Takenaka. A população japonesa é uma das mais longevas do mundo (a expectativa de vida média é de 81 anos para os homens e de 87 anos para as mulheres). “O atual sistema de pensões foi criado nos anos 1960, quando os japoneses viviam em média 66 anos. Ele é insustentável e terá de ser revisto”, disse o palestrante.

Entre outras reformas estruturais, o Japão também precisará melhorar a governança das empresas e flexibilizar o mercado de trabalho. “No Japão, o emprego ainda é para a vida toda, é raro alguém ser demitido e a legislação reforça isso”, explicou.

Para contornar a resistência a reformas que mexem com direitos e interesses, o governo criou zonas econômicas especiais onde a desregulamentação tem sido colocada em prática. Aos poucos, essas zonas têm sido estendidas a outras regiões. “Atualmente, já temos zonas econômicas especiais em Tóquio, Osaka, Sendai, Fukuoka e Nagoya”, disse.

‘Trabalhadores convidados’

Segundo Takenaka, o povo japonês, que durante séculos viveu isolado do resto do mundo em seu belo arquipélago montanhoso, também terá de enfrentar o que ele chamou de “alergia aos imigrantes”. Com uma população declinante e cada vez mais idosa, e um mercado de trabalho muito “apertado” (quase não há desemprego), o Japão precisará discutir seriamente uma maior abertura à imigração. “Para driblar a resistência, Abe disse que o Japão está pronto para receber ‘trabalhadores convidados’, processo que também está começando nas zonas econômicas especiais”, disse.

Embora o Japão seja um dos países tecnologicamente mais avançados do planeta, Takenaka alertou para a importância de o país incorporar novidades como a economia compartilhada. “No Japão, o Uber é proibido porque temos um sistema de táxis muito eficiente e regulamentado. Mas precisamos nos abrir para a economia compartilhada e buscarmos a liderança em áreas como inteligência artificial, ‘big data’ e internet das coisas”, disse. “Os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Tóquio em 2020 são um importante estímulo para avançarmos com as reformas e apresentarmos inovações. Não podemos perder essa oportunidade”, disse.

Efeitos China e Trump

Além das dificuldades internas, Takenaka citou fatores externos que devem ter impacto na realidade política e econômica japonesa. O primeiro deles é a redução do crescimento econômico da China. A potência asiática chegou a crescer mais de 10% nos anos 90 e 2000 e, em 2010, se tornou a segunda maior economia do mundo, ultrapassando justamente o Japão. Mas nos últimos anos houve uma desaceleração. Em 2015, a China cresceu pouco menos de 7%.

“Há previsões de que o crescimento econômico chinês cairá para algo em torno de 4% nos próximos dez anos, o que terá forte impacto negativo não apenas no Japão, como também na Coreia e em outros países da região, pois a China é hoje o segundo maior importador do mundo”, disse.

O segundo fator de instabilidade externo é o que ele chamou de “risco do hiperpopulismo”. “As sociedades de vários países, inclusive a japonesa, estão divididas. Existe muita instabilidade social e política e há grupos cada vez mais fortes que defendem  protecionismo e nacionalismo e tendem a apoiar políticos populistas. O Brexit (referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da UE) e a eleição de Donald Trump são recentes manifestações desse novo fenômeno”, disse Takenaka, que indicou a leitura do livro best-seller “Fault Lines: How Hidden Fractures Still Threaten the World Economy”, do economista indiano Raghuram G. Rajan, que foi economista-chefe do FMI e hoje é presidente do Banco Central da Índia.

“Ninguém sabe quais as consequências desses fatos recentes para a economia global e a comunidade internacional”, completou. O economista também mostrou preocupação em relação ao futuro do TPP (Parceria Transpacífico), um acordo de livre-comércio entre doze países banhados pelo Oceano Pacífico, entre eles o Japão e os EUA, fechado em 2015, mas pendente de aprovação pelos Congressos dos países participantes.  Em 21 de novembro, o presidente eleito Donald Trump anunciou que os EUA deixarão o TPP em seu primeiro dia de governo.

“O TPP é um instrumento importante para estimular as reformas tão necessárias para a economia japonesa. O Parlamento japonês está pronto para ratificar o acordo, mas, com a posse de Trump em janeiro, teremos de observar o que os EUA farão”, disse.

O economista japonês também falou da ameaça de uma nova “estagnação secular”, expressão criada após a Segunda Guerra Mundial, quando havia o temor de que a economia mundial ficaria estagnada por um longo tempo, o que acabou não acontecendo no pós-guerra. “Este conceito foi retomado há uns três ou quatro anos por Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro norte-americano, e é uma possibilidade que precisa ser considerada seriamente”, disse. Leia o artigo “The Age of Secular Stagnation: What It Is and What to Do About It”, publicado em fevereiro pela revista Foreign Affairs.

“Ao avaliar a Abenomics, o professor Koichi Hamada, da Universidade de Yale, deu nota A para a primeira flecha (expansão monetária), B para a segunda flecha (estímulos fiscais) e E para a terceira flecha (crescimento, reformas estruturais e desregulamentação), formando a palavra ABE. Ele está certo, mas é preciso lembrar que, para que a terceira flecha atinja o alvo, leva um tempo. Temos que ter um pouco de paciência”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.