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22 de agosto de 2023

Religião e Estado: como deve ser o ensino religioso no Brasil democrático?

Este webinar marcou o lançamento do livro digital Corações e Mentes – Volume 2: Ensino Religioso e Valores Democráticos, disponível para download gratuito na internet.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, defendeu o ensino religioso não confessional – que busca tratar de forma igual todas as religiões, inclusive a não religião – como prioritário nas escolas públicas, mas admitiu a possibilidade de aulas dedicadas a uma só fé, com a marca do proselitismo, desde que respeitados o direito do aluno de comparecer ou não e a possibilidade de outras correntes religiosas também ofertarem aulas na mesma escola. 

“A política pública oficial é não confessional, à luz do conceito da laicidade, mas em 2017 o Supremo Tribunal Federal, ainda que por escassa maioria, decidiu pela admissão de cursos e eventos religiosos, baseados em dogmas de fé, nas escolas públicas, desde que nos horários e locais adequados e resguardada a facultatividade do comparecimento. Como ministro da Justiça, sou garantidor da autoridade do Supremo, que fixou uma diretriz jurídica que autoriza o ensino com proselitismo. É um fato”, afirmou Dino.

A declaração foi feita em webinar que marcou o lançamento do livro digital “Corações e Mentes – Volume 2: Ensino Religioso e Valores Democráticos”, de Bernardo Sorj e Alice Noujaim Teixeira, publicado pela Plataforma Democrática, uma iniciativa da Fundação Fernando Henrique Cardoso e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.

“O que o ensino religioso deve fazer é mostrar a diversidade de crenças, sem privilegiar ou questionar nenhuma delas”, disse o sociólogo Bernardo Sorj.

“Defendo que o ensino religioso não tenha orientação proselitista, muito pelo contrário. O que o ensino religioso deve fazer é mostrar a diversidade de crenças, sem privilegiar ou questionar nenhuma delas, de forma a aumentar o conhecimento das crianças sobre outras religiões e, assim, combater a ignorância e o preconceito”, disse o sociólogo Bernardo Sorj.

“Em uma democracia, o ensino religioso deve ter como base os princípios constitucionais da liberdade de consciência e do respeito pela liberdade de crença, assim como reforçar os valores democráticos e a cultura cívica”, continuou Sorj. “O que nos inspirou a escrever este livro não é um sentimento antirreligioso. Trata-se de proteger as religiões de uso indevido para atingir fins políticos. Prevenir que elas sejam utilizadas em espaços como a escola pública para avançar a intolerância, o fanatismo e a destruição da convivência pacífica, que é a base da vida democrática.”

A antropóloga Alice Noujaim Teixeira, coautora da obra, explicou que o livro é dividido em duas partes: a primeira traz reflexões sobre como tornar o ensino religioso parte integral de uma educação para a cidadania; a segunda apresenta uma proposta concreta de diretrizes curriculares para complementar o esforço dos professores de ensino religioso, respeitando os limites atuais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

“Ao estabelecer que o ensino religioso deve formar cidadãos comprometidos com os valores democráticos, a Constituição Federal de 1988 foi a nossa referência. A BNCC, que define os parâmetros gerais do ensino religioso no ensino fundamental, já orienta que ele deve promover o respeito à diversidade de crenças, e não ser instrumento de formação de fiéis. As diretrizes da BNCC são de grande valor, mas o detalhamento do ensino religioso é escasso em relação às outras disciplinas. Com este livro, buscamos contribuir nesse sentido”, disse Noujaim.

Supremo se dividiu sobre o caráter confessional do ensino religioso público

Embora a Constituição brasileira preveja a laicidade do Estado, o Supremo Tribunal Federal rejeitou em 2017, por 6 votos a 5, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, que pedia que o ensino religioso na escola pública se restringisse a uma apresentação geral das doutrinas existentes, com base em conceitos filosóficos e em uma visão histórica, e não admitisse aulas que tivessem como objetivo converter as crianças ou aprofundar e reforçar seus conhecimentos de uma religião específica.

O tema do ensino religioso chegou ao STF por iniciativa da Procuradoria Geral da União como resposta a uma decisão de Anthony Garotinho, que governou o Estado do Rio de Janeiro de 1999 a 2002, de inserir o ensino religioso confessional na grade de disciplinas da rede pública do Estado.

Flávio Dino lembrou que o ministro Alexandre de Moraes – que assumiu uma vaga no Supremo em março de 2017, cerca de seis meses antes do julgamento do tema – votou a favor de que o ensino religioso possa ser oferecido assentado nos dogmas de fé, desde que respeitada a facultatividade do comparecimento e que cada corrente religiosa tenha a oportunidade de ofertar esse serviço na grade curricular, em igualdade de condições, por meio de um chamamento público.

Já o ministro Celso de Mello – que se aposentou em 2020 após 31 anos na Suprema Corte – votou a favor de que o Estado atue com estrita neutralidade, com base no paradigma da não confessionalidade do ensino religioso público, e que, portanto, a escola pública não deve ser agente fomentador de nenhuma confissão religiosa e não pode atuar como um aparelho ideológico.

“Com a decisão do STF, temos duas propostas de ensino religioso que devem ser submetidas a uma vivência em nosso país. O Brasil é um Estado não teocrático, mas com forte tradição e presença religiosa. Numa conjuntura especialmente difícil – em que os extremismos se expressam na política e também em outros territórios, como na religião –, devemos construir caminhos para evitarmos atritos entre o mundo institucional e a força cultural que as religiões representam”, afirmou o ministro da Justiça, que é católico praticante.

“Como político, tenho o vício de ser um ‘resolvedor de problemas’. Não posso cumprir meu ofício se eu me aferrar muito a uma determinada posição, ainda que me identifique mais com ela. Creio que, se formos radicais no argumento da laicidade, isso não me parece suportável na atual conjuntura brasileira”, disse Dino.

Segundo o ex-governador do Maranhão, não há base jurídica para impedir, por exemplo, que uma instrutora de catequese prepare meninos e meninas para a Primeira Comunhão, se elas e eles desejarem e a escola definir um horário e um local para que isso aconteça: “Impedir isso com base na laicidade? Devemos buscar um balanço delicado em que as minorias religiosas sejam protegidas, mas que dê espaço para a maioria viver sua religião plenamente.”

Ensino confessional nas escolas prejudica as minorias religiosas, diz Sorj

Segundo Bernardo Sorj, a decisão do STF de autorizar o ensino religioso confessional nas escolas públicas coloca os grupos religiosos minoritários em situação de desvantagem em relação às religiões majoritárias do país, como o catolicismo e as religiões evangélicas, sobretudo as neopentecostais.

“Havendo alunos representantes de seis ou oito religiões, por exemplo, é inviável para uma escola pública oferecer aulas simultâneas de todas elas. Isso resultaria em uma crise orçamentária, em falta de espaço, de professores etc. A tendência é de os recursos públicos serem dirigidos às religiões majoritárias, em detrimento das demais”, disse o sociólogo.

“A separação entre o Estado e a religião permite que as diversas crenças, inclusive as não religiosas, sejam vividas com liberdade e em sua plenitude, sem a interferência do poder político. Sem essa ampla liberdade religiosa garantida por nossa Constituição, não teríamos tido as mudanças no quadro religioso que marcaram o país nas últimas décadas”, afirmou Sorj. Segundo projeções, o Brasil vive um período de transição religiosa em que o percentual de católicos está caindo, representando hoje pouco menos de 50% da população, e o de evangélicos continua subindo, já superando 30% e caminhando para 40% da população brasileira.

Para Alice Noujaim, a rede pública deve oferecer aos alunos informações sobre todas as religiões que compõem a sociedade brasileira, desde as religiões de matriz cristã, que são majoritárias, como também as religiões de matriz africana, as religiosidades indígenas, o judaísmo, o islamismo e o ateísmo.

“Acreditamos que o ensino religioso tem o potencial de ser um espaço valioso para combater a discriminação e a intolerância religiosa e de prevenir conflitos baseados no preconceito, fortalecendo a convivência democrática pelo respeito e pelo conhecimento das diversidades de crença, com base nos direitos humanos, na pluralidade, na liberdade religiosa e na prática democrática”, concluiu a antropóloga.

Assista aos vídeos da série Vale a Pena Perguntar: Estado e Religião

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.