Debates
20 de março de 2019

Combate à corrupção e mudanças no direito penal: uma visão sistêmica

“Só evitaremos uma nova Lava Jato se trouxermos ao palco um personagem que sempre teve sucesso em passar ao largo dessa discussão: os partidos políticos”, lembrou Silvana Batini, procuradora Regional da República do Ministério Público Federal (RJ).

Nas últimas décadas, o Brasil tem adotado uma atitude reativa diante dos sucessivos escândalos de corrupção, seja por meio da proposição e criação de novas leis pelos Poderes Executivo e Legislativo ou por meio de novas interpretações e aplicações da legislação já existente pelo Judiciário, mas falta uma visão sistêmica de como enfrentar a corrupção, que inclua não somente a criminalização dos atos, mas principalmente sua prevenção.

Esta foi a principal conclusão do debate “Combate à corrupção e mudanças no direito penal: um novo paradigma?”, com participações de um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, uma procuradora regional da República, um advogado criminal e dois acadêmicos brasileiros especialistas em direito penal radicados na Alemanha. O evento teve apoio do site jurídico JOTA.

“Incomoda-me que, neste momento, tenha se adotado uma postura de conflito. Praticamente todos os envolvidos no processo penal, sejam eles procuradores, advogados ou até mesmo juízes, falam a partir de sua perspectiva, quando seria importante identificar os problemas com maior isenção e buscar um entendimento comum. A doutrina precisa fazer um esforço para desmistificar os charlatanismos à solta e construir soluções viáveis”, afirmou Luís Greco, professor catedrático de Direito Penal da Universidade Humboldt (Berlim).

“Quero aqui defender a tese de que, no Brasil, criou-se recentemente um fetiche em torno do tema. Desde 1940 (quando foi publicado o decreto que criou o atual Código Penal Brasileiro), não há um esforço de tratar a corrupção de forma mais sistêmica e o que temos visto, nas últimas décadas, é um caudal regulatório, que tem resultado em caos legislativo e jurídico”, disse Alaor Leite, doutor em direito pela Universidade Ludwig-Maximilian (Munique) e assistente científico junto à cátedra de Direito Penal da Universidade Humboldt.

Luis Greco e Alaor Leite, destaques da nova geração de estudiosos do direito penal sediados há vários anos na Alemanha, são co-autores da “Proposta Alternativa para a Parte Geral do Código Penal Brasileiro”, apresentada em 2017.

Segundo o advogado criminal Theo Dias, que auxiliou a Fundação FHC na concepção do seminário, reformas legislativas voltadas ao aprimoramento do direito penal e do direito processual penal devem ser implementadas, mas a impunidade no Brasil é essencialmente um problema de gestão: “A lei penal deixa de ser aplicada porque as instituições do sistema penal são lentas, ineficientes, burocráticas, corporativas ou, em muitos casos, corruptas. É preciso aprofundar o debate sobre as reformas do Judiciário,do Ministério Público e das polícias.”

“Só evitaremos uma nova Lava Jato daqui a dez anos se trouxermos ao palco um personagem que sempre teve sucesso em passar ao largo dessa discussão: os partidos políticos. Em nome de uma autonomia de estruturação e funcionamento interno prevista na Constituição, eles são opacos, sem obrigação de democracia interna, transparência e accountability”, disse Silvana Batini Cesar Góes, procuradora Regional da República do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro.

“A intensificação do combate à corrupção merece aplausos, mas tem lados perversos, como uma tendência do Judiciário de responder à crescente demanda social por punição. O juiz deve examinar os casos unicamente a partir das provas existentes e com frequência adotar posições contramajoritárias, sem se preocupar com seu prestígio junto à opinião pública”, afirmou o ministro aposentado do STF Antonio Cezar Peluso, que presidiu o tribunal entre 2010 e 2012.

Especificidades da corrupção política

“A tendência mundial é de setorizar a corrupção, olhando para as especificidades dessa prática em áreas como saúde, esportes e política, mas o artigo 317 (do Código Penal) define um tipo de corrupção muito amplo, que pretende atingir tanto o guarda que não lavra um auto de infração como o político que vende seu voto ou apoio ao governo. Esse modelo está ultrapassado e deve ser revisto.”
Alaor Leite, co-editor do livro “Crime e Política” (FGV-SP, 2017), cursa a livre-docência na Universidade Humboldt, sob orientação do professor Luís Greco

O aprimoramento do combate à corrupção política exige não apenas a criação de novos tipos penais, mais específicos e definidos, como também uma melhor separação entre diferentes momentos como o financiamento de campanha, o caixa 2 eleitoral e a corrupção propriamente dita (em geral na forma de contrapartidas por parte dos eleitos). “Esses três momentos estão amalgamados no Brasil, mas é possível distingui-los por meio de uma legislação mais precisa”, disse Leite.

Segundo o penalista, ao interpretar um tipo de delito tão amplo, o Poder Judiciário se vê diante da necessidade de equilibrar uma “balança difícil de ser equilibrada”. “De um lado, corre-se o risco de afirmar que só há corrupção quando o sujeito mercadeja um ato de ofício concreto, ou seja, um ato específico que compõe o feixe de atribuições do funcionário público, como a lavratura de um auto de infração específico ou a venda de uma determinada sentença. Mas isso poderia resultar na criminalização apenas de funcionários mais baixos da administração pública, quando a lei também deve servir para os políticos, inclusive aqueles no topo da hierarquia”, disse.

Na corrupção política, prosseguiu o palestrante, o que se mercadeja nem sempre assume a concretude de um ato de ofício concreto, sobretudo porque o feixe de atribuições de um político não é tão determinado como o dos demais funcionários públicos: “Seriam atos de ofício a ‘aproximação entre pessoas’ (nem sempre com fins republicanos) ou a adesão a uma determinada ‘bancada temática’?”, indagou.

De outro lado, ao tornar qualquer relacionamento entre agentes políticos e interesses privados passível de enquadramento como crime de corrupção, “corre-se o risco de aniquilar determinadas atividades públicas e resultar na criminalização da política”.

Da mesma forma, segundo Alaor, não se deve tipificar como crime de abuso de autoridade decisões judiciais consideradas ostensivamente equivocadas em face da lei, conforme adendo incluído ao Projeto de Lei (PL) “10 Medidas contra a Corrupção”, proposto pelo Ministério Público Federal e apresentado ao Congresso por iniciativa popular em 2015 (cuja aprovação terminou por não se concretizar). “Os juízes reagiram dizendo que a atividade interpretativa é essencial a seu trabalho e o tipo de abuso de autoridade não pode aniquilar uma função pública”, disse o palestrante.

Em sua fala de abertura do evento, Leite propôs um debate sobre outras alternativas de tratamento da corrupção política: “As tentativas de reagir pontualmente aos escândalos das últimas décadas (como os casos Collor, Mensalão e Petrolão) não nos deram a oportunidade de uma discussão que resulte em soluções mais eficazes e sistêmicas”, concluiu.

Pacote anticorrupção de Sergio Moro

“A corrupção tem natureza colusiva. Em outros crimes, a maneira pela qual o Estado toma conhecimento de um delito é, em geral, por meio de denúncia da vítima. Mas, no caso da corrupção, todos os envolvidos estão de acordo com o fato delituoso. É de se pensar que a persecução penal tradicional, que começa com a chamada notícia crime, deva ser modificada para dar conta desses delitos de natureza colusiva.”
Luís Greco, professor catedrático de Direito Penal, Processual Penal, Direito Penal Estrangeiro e Teoria Geral do Direito Penal na Universidade Humboldt de Berlim

Em sua apresentação, Luís Greco, mestre e doutor pela Universidade Ludwig-Maximilian (Munique), comentou algumas das inovações no processo penal previstas no Projeto de Lei Anticrime e Anticorrupção enviado ao Congresso pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro. São basicamente duas: o fim do princípio de obrigatoriedade da persecução penal, substituída pela possibilidade de acordo entre as partes, e a possibilidade de aplicação imediata da pena de prisão, sem o desenrolar de todo o processo de instrução penal.

O professor da Universidade Humboldt (Berlim) explicou que, no Brasil, as instâncias envolvidas no processo penal não estão autorizadas a decidir por conta própria, com base em critérios de avaliação do interesse público ou por conveniência, em que casos devem ou não realizar a persecução penal. “O principal argumento (para permitir a decisão de não efetuar a persecução penal) baseia-se no fato de que não há recursos humanos e materiais para perseguir todos os delitos de que se têm notícia. Nem que quiséssemos. Este é de fato um problema universal, conhecido como cifra negra do delito”, disse.

Um dos artigos do projeto do ministro Moro (que ainda será analisado pelos deputados e senadores) prevê a possibilidade do acordo de não persecução: o Ministério Público poderia relativizar a regra da obrigatoriedade da ação penal em troca de um acordo com o imputado, tornando mais rápida a conclusão do processo em casos menos graves (crimes com pena máxima de 4 anos, sem violência ou grave ameaça à pessoa, entre outros).

A segunda medida, que incluiria a possibilidade de aplicação imediata da pena, é considerada pelo penalista como mais polêmica: “Alguns sustentam que ela representaria a efetiva introdução do ‘plea bargain’ (justiça penal negociada, muito aplicada nos EUA) no direito penal brasileiro”, disse Greco.

Nesse caso, por consenso entre os envolvidos, salta-se a etapa que sempre foi considerada essencial da produção de provas perante o juiz, quando ele tem a oportunidade de decidir por sua validade ou não. “O PL apresentado pelo ministro Moro não contém uma exposição dos motivos que justificam essas inovações, mas o argumento parece ser o da eficiência da ação penal, principalmente no caso de crimes colusivos como o de corrupção. Ou se modifica a lei ou a impunidade continuará”, disse.

Mas, segundo Greco, a pena não se legitima apenas pela eficiência. “Ninguém deseja um direito penal ineficiente, mas para uma pessoa receber uma pena ela tem de ser de fato ‘culpável’. Alguns autores estrangeiros dizem que, se o afetado (réu) concordou em dispensar a instrução, ele não pode reclamar, pois quem consente não sofre uma injustiça. Mas não estou de todo convencido desse argumento, pois nessa situação o réu não consente de maneira voluntária, embora eu reconheça que voluntariedade perfeita existe em poucas situações na vida”, afirmou.

Para o professor, porém, o mais problemático é o efeito que a redução da pena para quem faz o acordo produz sobre quem não admite abrir mão do direito de se defender, pois este último tende a receber uma pena ainda mais dura (uma vez que endurecer a pena ao máximo permitido em lei, em caso de não aceitação do acordo proposto pela promotoria, faz parte da lógica negocial do “plea bargain”) Segundo Greco, o que legitima a pena não é o réu concordar com ela, mas sim o fato de ela ser proporcional à gravidade do delito efetivamente cometido: “Quando se impõe uma pena por algo que a pessoa não fez, configura-se uma mentira e o Estado não pode mentir.”

O palestrante também fez ressalvas à possibilidade de acordo para a privação antecipada de liberdade. “A privação de liberdade é uma pena de verdade, pra valer. Não se pode prender alguém sem apresentar uma verdade inequívoca que legitime a prisão”, explicou.

Apesar de mais de 90% dos processos nos EUA serem resolvidos por meio do ‘plea bargain’, Greco é reticente em relação a sua aplicação no Brasil. “Há muitas diferenças entre o processo penal norte-americano e o brasileiro e não me parece que o processo americano funcione bem em termos garantir a justiça e a punição apenas dos culpados. Tomar emprestado algo que soa bem em língua estrangeira não contribui para melhorar nosso sistema”, disse.

Diante da questão do que então deve ser feito para tornar o processo penal mais eficiente no Brasil, Greco propôs mais diálogo entre os diversos operadores do direito. ‘É preciso começar a conversar com a intenção de entender e se aproximar da posição do outro. O MP tem de admitir que é um órgão que necessita de mais controle, o advogado deve aceitar que processo que não chega a lugar nenhum também não é bom. Não devemos cair nem no excesso de garantismo nem no direito penal mínimo”, concluiu.

Decisão de enviar Caixa 2 para Justiça Eleitoral foi ‘pesada demais’

“Tenho 26 anos de Ministério Público e nunca me senti descontrolada. Como procuradora, peço busca e apreensão, peço prisão e peço condenação, mas a decisão final cabe ao juiz. Portanto, o MP é uma instituição que sofre restrições desse desenho institucional.”
Silvana Batini Cesar Góes, procuradora Regional da República do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro

Silvana Góes, que integra a equipe da Lava Jato no Rio, concordou com a tese de que o Brasil tem adotado uma pauta sobretudo reativa no direito penal, mas salientou que essa postura não se restringe ao combate à corrupção. “Um exemplo é a falta de planejamento em termos de política criminal. Estamos sempre reagindo a escândalos e crises. E isso resulta em sacrifícios ao sistema como um todo”, disse.

A procuradora comentou recente decisão do STF de enviar à Justiça Eleitoral casos de corrupção que envolvam caixa 2 e financiamento irregular de campanhas. “Há quanto tempo estamos patinando sem uma legislação adequada que tipifique adequadamente o crime de corrupção, mas também pense a legislação eleitoral e partidária no Brasil, o financiamento irregular de campanhas e o crime de caixa 2, que na verdade se trata de falsidade ideológica?”, perguntou.

Silvana lembrou que, desde a ação penal contra o ex-presidente Collor (1992), a estratégia da defesa foi dizer que os recursos então sob suspeita eram sobra de campanha. Mais de uma década depois, políticos envolvidos no Mensalão também argumentaram que os recursos ilegais que haviam recebido eram destinados a pagar despesas de campanha.

“Não há dúvida de que desde o início dos anos 90 a estratégia dos atores políticos é passar a borracha na corrupção colocando-a sob o manto do financiamento irregular de campanha, como se esta fosse uma conduta socialmente e politicamente aceita. O próprio presidente Lula tentou justificar condutas de seu partido com o argumento ‘o que nós fizemos todo mundo faz’”, disse.

Segundo a professora da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, a Justiça Eleitoral não é melhor nem pior do que a comum, mas não é adequada para atuar na área jurisdicional: “Sua atribuição primordial é organizar e fiscalizar os processos eleitorais para que sejam limpos, justos, transparentes e eficazes. E tem feito isso muito bem. Mas, ao julgar processos de cassação de mandatos, por exemplo, enfrenta a mesma lentidão característica de outros processos.”

Silvana reagiu à fala de Luís Greco, que disse que o Conselho Nacional do Ministério Público tentou legislar ao definir regras para a não-persecução penal. Segundo ele, o órgão máximo do MP pretendeu “dar efeitos externos a uma decisão interna corporis”.

“O que o CNMP buscou foi trazer um mínimo de homogeneidade e racionalidade à atuação de procuradores e promotores neste Brasil enorme e tão diverso. Creio que as instituições devem ter uma política que oriente seus membros e o que acontecia antes era que cada membro do MP decidia sozinho em seu gabinete que ação tocar adiante e que ação não tocar”, explicou.

“Quando um promotor decide propor uma ação penal, ainda que equivocadamente, ele traz à tona as denúncias em questão e aciona os mecanismos de controles existentes. Mas, quando opta por não agir, aí sim o efeito pode ser mais negativo, pois nada acontece. Daí a importância da resolução do CNMP em 2017”, disse.

A palestrante defendeu a revisão do sistema de recursos judiciais em vigor no país: “Hoje temos uma trama complexa de vias recursais entrelaçadas em várias instâncias e só reconhecemos uma sentença como verdade jurídica quando ela é confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. Não seria o caso de construírmos essa verdade de uma maneira mais consistente e menos utópica no decorrer do processo?”

“O Supremo precisa ser desonerado das diversas outras funções que acumula e se concentrar na garantia do cumprimento da Constituição”, afirmou Silvana, que também criticou recente decisão do STF de abrir inquérito para investigar ataques à corte. “Quer dizer que agora o Supremo vai investigar e produzir provas? Invoco aqui meu direito à liberdade de expressão para que não me torne alvo de um inquérito secreto em função dessa minha última fala”, concluiu.

‘Inflação penal’

“As investigações da Lava Jato revelam as fronteiras porosas entre caixa dois e corrupção. Quando uma doação eleitoral corresponde a uma propina? A Lava Jato trouxe exemplos tanto de atos de corrupção por meio de doações eleitorais oficiais como de doações não oficiais sem evidência de contrapartida.”
Theo Dias, advogado criminal, é doutor em direito pela Universidade do Sarre (Alemanha)

O professor da Escola de Direito de São Paulo da FGV Theo Dias lembrou que a pressão popular por maior rigor penal não é exclusividade brasileira: “Nas diversas democracias ocidentais, o sistema de justiça criminal vive um processo de expansão regulatória e de recrudescimento punitivo com aumento de penas  e diversificação dos meios investigatórios. O Direito Penal converteu-se no grande curinga da política contemporânea. É mais fácil aumentar a pena do crime de corrupção do que rever o sistema de financiamento eleitoral ou o sistema tributário. Cabe discutir a racionalidade dessa irrestrita confiança social na pena como tábua de salvação para todos os males.”

Dias propôs reformas legais e institucionais, de natureza não penal, voltadas a assegurar um ambiente de negócios menos favorável à corrupção, como medidas voltadas a garantir maior transparência em procedimentos licitatórios, combate ao excesso de regulamentação e aos entraves burocráticos, fortalecimento de uma cultura de governança e compliance nas empresas públicas e privadas e responsabilização mais efetiva de empresas e seus dirigentes.

O advogado se declarou favorável ao instituto da colaboração premiada. “A experiência internacional ensina que esse instrumento, se bem utilizado, pode revelar e prevenir crimes, propiciar ressarcimento econômico ao Estado, assegurar punições e pavimentar o caminho para recuperação econômica e transformação ética de empresas. É, além de tudo, um instrumento de defesa do réu, que decide pela confissão e revelação de co-autores”, disse.

Alertou, contudo, para o risco da “trivialização” desse método de investigação: “O Estado não deve se tornar dependente da confissão por preguiça de investigar. Cabe ao Ministério Público e ao Judiciário avaliar, no caso a caso, a necessidade e o interesse público dos acordos. No âmbito da Lava Jato, há exemplos nos dois sentidos. Houve bons acordos que contribuíram para a revelação e prevenção de crimes e ressarcimento de prejuízos aos cofres públicos, e houve maus acordos, celebrados com pressa e sem critério.”

Segundo Dias, o Brasil está apenas dando os primeiros passos na construção de um sistema eficiente de negociação de acordos de colaboração com indivíduos e acordos de leniência com empresas. “O que se vê hoje são diversas instituições competindo por protagonismo, o que é fator de insegurança jurídica. Algumas dessas instituições estão relacionadas ao poder executivo, que pode não estar interessado na revelação de condutas ilegais por seus integrantes. Trata-se de um cenário kafkiano, no qual uma empresa faz acordo com um órgão público, mas não consegue se recuperar economicamente, pois se torna mais vulnerável e sujeita à retaliação estatal”, afirmou.

‘Messianismo judicial’

“A lei não é neutra, mas tem de ser imparcial. Como juiz, sempre adotei a postura de estar aberto para formar minha convicção, sem pré-juízos. O réu tem direito de ser julgado por alguém que ele considere imparcial.”
Antonio Cezar Peluso, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (2003 a 2012)

Antonio Cezar Peluso, que exerceu a magistratura por 44 anos e presidiu o STF de 2010 a 2012, criticou juízes que sentem que possuem um “mandato divino para mudar a cultura do país, às vezes em detrimento do respeito primordial ao ordenamento jurídico”. “Não cabe ao Judiciário fazer revoluções, mas resguardar os cidadãos das arbitrariedades do Estado”, disse.

“Quando nos convencemos de que temos uma missão a cumprir, agimos com paixão e emoção e não com razão”, continuou. Em seguida, o ministro citou dois casos em que, em sua visão, o Supremo tentou ser porta-voz das ruas, em vez de agir como garantidor da Constituição.

O primeiro foi quando o STF decidiu pela aplicação da Lei da Ficha Limpa a políticos condenados antes da lei entrar em vigor. “Como isso é possível? Ninguém pode sofrer sanções previstas em uma lei que não existia por ocasião do crime que lhe é imputado. Por que isso aconteceu? Simplesmente porque a consciência cívica assim o exigiu”, disse.

O segundo caso foi o julgamento no STF que autorizou o início de cumprimento da pena de prisão após decisão de segunda instância. “Por um voto, os ministros do Supremo ‘cassaram’ a cláusula constitucional que determina que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado. Foi um caso típico de decisão motivada pela intenção de responder a um desejo da sociedade”, disse.

“Não tenho dúvida de que o sistema recursal vigente no Brasil é ruim e de que é repulsivo que alguns casos prescrevam por não terem sido analisados a tempo por todas as instâncias judiciais existentes. Mas, para mudar isso, é preciso emendar a Constituição”, afirmou o ministro, que em 2011, quando era presidente do STF, apresentou ao Congresso a chamada “PEC dos Recursos”, com o objetivo de reduzir o número de recursos ao Supremo e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dar mais agilidade às decisões judiciais.

Por fim, ele também comentou recente sessão do STF que discutiu a possibilidade de criminalização da homofobia (ainda sem decisão). “Atos de homofobia são abomináveis, mas não é possível criminalizá-los por analogia ao crime de racismo, já previsto em lei. Se queremos tornar a homofobia crime, o Legislativo terá de analisar a questão e votar”, afirmou.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.