A derrota de Trump e o futuro da extrema direita: Uma conversa com Anne Applebaum
“O populismo autoritário contemporâneo alimenta-se de mentiras, transmitidas de forma serial, com auxílio das redes”, afirmou a escritora norte-americana neste debate.
Nostalgia de um passado idealizado em contraste com um presente ameaçador; críticas às elites globalistas que sufocam a nação e a identidade nacional; teorias conspiratórias que visam reforçar o sentimento de ameaça e a desconfiança no Estado Democrático de Direito; estigmatização de imigrantes e minorias; e o uso sistemático de informações falsas e mentiras para desacreditar os fatos, a ciência e a imprensa e confundir os cidadãos.
“São estes os principais elementos da estratégia e da retórica utilizadas por Vladimir Putin, Donald Trump, Recep Tayyip Erdoğan e todos os demais líderes neoautoritários”, afirmou a jornalista e escritora norte-americana Anne Applebaum, que tem investigado a ascensão do populismo nacionalista de direita no mundo, neste webinar realizado pela Fundação FHC.
“A grande diferença em relação aos sistemas totalitários do passado é que o comunismo e o nazismo, por exemplo, se sustentavam sobre explicações complexas do mundo e grandes mentiras do tipo ‘estamos construindo o socialismo’ ou ‘chegou a hora de erguer o império germânico’. Subjugados, os cidadãos eram obrigados a aceitar o pacote completo”, explicou.
“Já o populismo autoritário contemporâneo não tem uma ideologia tão estruturada e consolidada. Alimenta-se de falsificações e mentiras mais simples e prosaicas, transmitidas de forma serial, com auxílio das redes”, disse a autora do livro “O crepúsculo da democracia: Como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política” (Editora Record).
“Essa tática de mentir repetida e constantemente, o tempo todo, sem nem mesmo se preocupar em disfarçar ou desmentir quando se descobre que aquilo que foi dito não é verdadeiro, visa confundir a população, pois muitos simplesmente já não conseguem discernir o que é e o que não é verdade”, continuou a palestrante, que coordena pesquisa sobre desinformação no Século 21 na Universidade Johns Hopkins (EUA). Em permanente dúvida, as pessoas se tornam apáticas, o que acaba por estimular o sentimento antissistêmico.
“Putin lança mão dessa estratégia há muitos anos, e Trump fez o mesmo na Casa Branca. Quando um grupo tentou contar todas as pequenas e grandes mentiras ditas pelo ex-presidente em seus quatro anos de mandato, a soma chegou a milhares”, relatou Applebaum, que, como jornalista, cobriu as transições políticas e sociais na ex-URSS e na Europa do Leste, antes e depois da queda do Muro de Berlim (1989).
Em agosto de 2018, o cientista político Steven Levitsky (Harvard University) esteve na sede da Fundação em São Paulo para apresentar seu livro “Como Morrem as Democracias”(Editora Zahar/2018). Na ocasião, ele propôs o “teste do autocrata”, que, com apenas quatro perguntas, busca identificar se um líder político tem tendências autoritárias. Assista ao vídeo de sua apresentação, com legendas em português.
Causas do sentimento antissistêmico
“O que explica o extraordinário fenômeno desse sentimento antissistêmico se manifestar em países tão diferentes como Estados Unidos, Reino Unido, Polônia, Hungria, Itália, França, Turquia, Filipinas e Brasil praticamente ao mesmo tempo”?, perguntou Applebaum em sua palestra, que contou com perguntas dos cientistas políticos brasileiros Simon Schwartzman e Sergio Fausto.
A pesquisadora citou 3 razões principais:
- A mudança na natureza da informação – Com a crise do modelo de negócio das mídias tradicionais e a popularização das mídias sociais, há uma perda da noção de qual notícia é relevante, verdadeira ou falsa. Alimentada pelos algoritmos de plataformas como Facebook, Twitter e Google, dá se, ao mesmo tempo, uma escalada da polarização política nas redes e nas sociedades;
- A percepção de redução do poder de governos nacionais – Conectado à globalização e à formação de grandes blocos econômicos como a União Europeia, surge o sentimento de que governos e líderes nacionais têm cada vez menos instrumentos para proteger seus cidadãos de decisões tomadas por elites de burocratas ou em países distantes, com impactos na economia e no mercado de trabalho locais;
- A mudança demográfica em curso – Como resultado do êxodo de jovens e profissionais mais bem preparados de zonas rurais ou cidades menos desenvolvidas rumo aos grandes centros urbanos ou outros países, aqueles que ficam para trás se sentem abandonados e, com frequência, ressentidos.
“A combinação desses três fatores leva ao sentimento de que os governos nacionais têm cada vez menos controle e de que as democracias liberais são incapazes de dar respostas adequadas (aos problemas atuais). Surgem daí slogans poderosos como Take Back Control (Retomar o Controle), utilizado na campanha vitoriosa do Brexit em 2016”, disse Applebaum.
Em maio de 2020, o economista indiano Raghuram Rajan (Universidade de Chicago) deu uma palestra online, a convite da Fundação FHC e do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), em que defendeu a importância de países e da comunidade internacional buscarem uma nova moldura institucional, política e econômica que permita que a globalização siga seu curso e, ao mesmo tempo, garanta mais voz e poder às comunidades locais ou regionais. “Afinal, são as diferenças locais e regionais que são a base do sentimento de que temos um lugar no planeta e nos fazem, cada um de nós, únicos”, disse o ex-presidente do Banco Central da Índia.
‘Democratas foram complacentes’
“Diante desse contexto, qual sua visão sobre o futuro da democracia na Europa, na América do Norte e na América Latina?”, perguntou Simon Schwartzman. “Podemos ver a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos como um divisor de águas nesse processo?”, agregou Sergio Fausto.
“O que posso dizer é que, antes de 2016 (ano em que o Brexit foi aprovado em referendo no Reino Unido), as lideranças democratas e liberais democratas norte-americanas e europeias foram bastante complacentes em relação ao que poderia acontecer caso as forças políticas com tendências autoritárias se fortalecessem e chegassem ao poder em países centrais (o que acabou acontecendo naquele mesmo ano com a eleição de Trump)”, respondeu Applebaum.
“Hoje elas já não estão mais complacentes. Isso é verdade nos EUA (como demonstra a recente vitória de Biden em uma eleição bastante apertada), na Europa e, espero, também na América Latina. Os defensores da democracia liberal estão finalmente trabalhando duro para construir algum tipo de consenso político e, assim, restaurar a democracia”, acrescentou.
Em agosto de 2020, o cientista político norte-americano Larry Diamond (Universidade Stanford) defendeu a união de movimentos democráticos em “uma grande tenda política” para evitar que governantes com tendências autoritárias se reelejam. “A oposição democrática precisa transcender a polarização, não reforçá-la, para vencer eleições e resgatar a democracia em países onde ela está ameaçada”, afirmou Diamond em webinar realizado pela Fundação FHC e Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (RAPS).
‘Apostar na união, não na divisão’
A especialista norte-americana chamou atenção para o fato de o novo presidente norte-americano ter se desviado de um confronto direto com Trump desde que assumiu o poder, evitando por exemplo se envolver no segundo processo de impeachment de seu antecessor (aprovado pela Câmara dos Representantes e rejeitado pelo Senado).
“Biden tem adotado uma estratégia deliberada de mudar o foco da discussão. Em vez de dar seguimento à guerra cultural (uma tônica da era Trump), ele está falando em acelerar o processo de vacinação contra a Covid-19, consertar a economia do país e dar dinheiro aos mais prejudicados pela crise decorrente da pandemia. Está apostando na união, não na divisão. Vamos ver se dará certo”, disse.
A escritora e jornalista premiada com o Pulitzer disse que líderes democratas, sejam eles de centro-esquerda ou de centro-direita, terão maiores chances de vencer eleições se evitarem concentrar suas campanhas em temas que dividem a sociedade, como aborto e questões identitárias, em um momento tão complexo e desafiador. Em vez disso, devem apresentar propostas que digam respeito diretamente à vida real da maioria das pessoas, como emprego e salário, saúde e educação, moradia e infraestrutura.
“Os mais radicais não devem ter o caminho livre para determinar a agenda política, como fizeram no passado recente”, disse Applebaum. A palestrante também alertou para o erro de ignorar o sentimento das pessoas em relação a temas delicados como imigração: “Nem todo cidadão contra a imigração é racista. Suas preocupações são legítimas e devem ser levadas em conta.”
Applebaum propôs um amplo debate público sobre regulação das mídias sociais e da internet: “Chegou a hora de pensarmos criativamente sobre como a internet pode ser usada para promover o diálogo democrático, em vez de ódio e polarização. O Brasil tem muita gente boa nessa área que pode nos ajudar a buscar soluções.”
A palestrante analisou ainda os desafios diante do Partido Republicano caso o ex-presidente Donald Trump, mesmo derrotado em novembro passado, tente manter sua influência sobre o partido nos próximos anos. Assista ao vídeo integral em nosso canal no YouTube, com tradução simultânea.
Para saber mais:
Conheça o podcast Your Undivided Attention, do Center for Humane Technology, sobre como a disputa pela atenção nas mídias sociais manipula escolhas e desestabiliza sociedades.
Leia o artigo How to Save Democracy from Technology, que tem como um dos autores Francis Fukuyama, recém-publicado pela Foreign Affairs.
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.