Vencendo o populismo com as armas da democracia: um encontro com Gloria Alvarez
“Creio que a riqueza não é algo que se deva transferir nem de baixo para cima, nem de cima para baixo. A riqueza é algo que se cria”, disse a jovem ativista e cientista política guatemalteca Gloria Yvette Alvarez Cross.
Em um país onde programas de transferência de renda como o bolsa-família são um tabu, e nenhum político ousa questioná-los, a jovem ativista e cientista política guatemalteca Gloria Yvette Alvarez Cross, 30 anos, provocou polêmica em recente visita ao Brasil ao fazer um ataque frontal ao populismo vigente na América Latina nas últimas décadas e defender de forma apaixonada e inteligente ideais liberais, que ela prefere classificar de republicanos.
Na quinta-feira, 9 de abril, Gloria esteve na Fundação FHC, em São Paulo para apresentar sua palestra “Vencendo o populismo com as armas da democracia”, a mesma realizada com grande sucesso em setembro de 2014 durante o 1º Parlamento Iberoamericano da Juventude, em Zaragoza, na Espanha. Reproduzida no YouTube, sua fala se tornou um fenômeno viral nas mídias sociais.
Três dias depois, a jovem e bonita ativista discursou durante a manifestação contra a corrupção e o governo da presidente Dilma Rousseff (PT) no domingo, 12 de abril, em São Paulo, e novamente causou sensação. “A democracia necessita de cidadãos empoderados que vigiem o governo. Vida, liberdade e propriedade são os três direitos fundamentais do homem. O indivíduo é a minoria mais pequena que existe”, bradou Gloria do alto do carro de som do movimento #VemPraRua durante o protesto na avenida Paulista.
Segundo a cientista política, a América Latina nunca experimentou um regime capitalista de verdade e, portanto, as populações que vivem da fronteira do México com os Estados Unidos ao sul da Patagônia não têm real noção de seus supostos benefícios. “Nas escolas latino-americanos, aprendemos que a Espanha (e no caso do Brasil, Portugal) trouxe para a América a visão de mundo ocidental, que é uma mescla da tradição judaico-cristã com valores greco-romanos. Não concordo com isso”, afirmou logo no início de sua exposição na Fundação FHC.
Citando o livro A Espanha Invertebrada, de Jose Ortega Y Gasset, Alvarez disse que a Espanha “em vez de trazer liberdade, individualismo, direitos e conceito de propriedade privada, trouxe abusos econômicos, sociais e políticos. A ordem era saquear riquezas, submeter os indígenas e reclamar essas terras como parte da Coroa espanhola”, disse.
“Outro mito que nos contam é que os astecas, os maias e os incas eram civilizações pacíficas, quando na verdade eram sociedades classistas, elitistas, em que havia uma submissão do povo pela elite. Por isso foi fácil para os espanhóis eliminarem os chefes pré-colombianos e se colocarem em seu lugar. As populações já estavam acostumadas a se submeter a um caudilho, a um cacique”, disse.
Lembrando outro crítico frequente do discurso “de esquerda” latino-americano, o jornalista e autor Álvaro Vargas Llosa, filho do escritor peruano Mario Vargas Llosa, Gloria Alvarez citou quatro princípios opressores que têm esmagado o continente latino-americano desde sempre: corporativismo, mercantilismo estatal, privilégios diante da lei e transferência de riqueza. “Esses princípios são, como Bruce Willis, duros de matar”, brincou.
O corporativismo se baseia na noção de que o Estado se associa (e serve) a grupos e não ao indivíduo: “Na América Latina, se queremos ter direitos e valermos como pessoas, temos de nos agrupar, pertencer a um grêmio, a um sindicato ou a um magistério. É uma visão corporativa da sociedade. Os grupos mais organizados obtêm mais direitos, em detrimento dos demais.”
Já o mercantilismo estatal surge do conceito de que os cidadãos e as empresas precisam pedir permissão ao Estado para poder operar economicamente. “Quantas vezes ouvimos falar que o problema de América Latina é o capitalismo selvagem explorador? Mas quando tivemos livre mercado em nosso continente? Não podemos produzir e comercializar sem antes dar uma grande parte ao governo. Esse legado do monopólio estatal persiste até hoje”, disse.
Em seguida, Gloria defendeu a tese de que nossas sociedades foram construídas com base em privilégios, muitas vezes previstos em leis. “Na América Latina, sempre houve diferentes códigos de lei para indígenas, negros, mestiços, europeus etc. Nunca tivemos igualdade diante da lei. Isso nos impede de valorizar as pessoas pelo que elas realmente valem, por seus méritos, sua cabeça e sua mentalidade. A consequência é que praticamente não há mobilidade social.”
Diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, o conceito de criação de riqueza não é valorizado na América Latina, sustenta a cientista política guatemalteca. “Durante séculos o que se fez foi transferir riqueza dos de baixo para cima. Os índios e os escravos trabalhavam e as oligarquias ganhavam. O que o populista propõe é a transferência de riqueza dos de cima para os de baixo. Mas não creio que a riqueza se transfira. A riqueza se cria”, afirmou, em um dos momentos mais polêmicos de sua fala de cerca de uma hora.
“A única forma de se criar riqueza é com a mente humana, que é o único recurso inesgotável que existe neste mundo. O único capaz de transformar os recursos naturais da Terra em algo que não existia ou ainda não existe”, afirmou, lembrando os casos de pessoas extremamente bem-sucedidas recentemente como J. K. Rowling, autora da série Harry Potter (“que ficou mais rica do que a rainha da Inglaterra”), o inventor do Facebook, Mark Zuckerberg (“que idealizou a rede social mais poderosa do mundo para impressionar as colegas de universidade”) e Steve Jobs, um dos fundadores da Apple (“que teve a incrível ideia de juntar celular e internet”).
“Apesar dos milhares de exemplos de que a riqueza se cria com a mente empoderada, na América Latina seguimos pensando que a riqueza se transfere. Por isso seguimos fadados ao subdesenvolvimento”, disse Gloria Alvarez.
O egoísmo racional e o egoísmo burro
Gloria também provocou incômodo ao sustentar a tese de que somos todos egoístas: “Há uma verdade com a qual temos de fazer as pazes é que todo ser vivo é egoísta. Não sabemos por quê, mas tudo o que está vivo busca sobreviver.” Mas, segundo Alvarez, há dois tipos de egoísmo: o irracional ou burro, e o racional ou inteligente.
“O egoísta irracional pensa que sua vida, sua propriedade privada e sua liberdade estão acima da dos outros e, por isso, atropela os demais. O egoísta racional compreende que, assim como ele tem direito à sua vida, liberdade e propriedade, todos os mais de sete bilhões de seres humanos que habitam a Terra também têm. “Segundo o economista francês Frédéric Bastiat, a missão da lei está em impedir que os atos de uns atropelem os direitos de outros.”
“Mas na América Latina seguimos nos iludindo ao querer que o político não tenha interesses pessoais. É o que os populistas nos dizem nas campanhas: ‘Eu não tenho interesse pessoal, meu único interesse é o povo’”, afirmou.
“Estudei ciência política e sei que, quando alguém entra na carreira política, não pede a uma enfermeira ‘vamos, enfie uma agulha em minha veia e extraia todo o egoísmo que há em meu sangue’. E pronto, aí ele já pode ser político, pois não tem mais interesses pessoais. O político, como todo ser humano, tem interesses pessoais e é egoísta”, provocou, brincando em seguida com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, presente na plateia.
Como ativista, Gloria deixou claro qual seria seu interesse pessoal em participar da política: “Sou consciente de que, em um país analfabeto, desnutrido, miserável e violento como a Guatemala, quando o político rouba o povo, no futuro minha filha será violada, meu filho será assassinado. Terei de morar em uma casa cheia de guardas, sem poder viver com liberdade.”
“Se os políticos tivessem um pensamento de longo prazo perceberiam que o dinheiro que roubam hoje é a violência de amanhã”, disse. “Não quero viver em um país onde não posso caminhar três quarteirões sem que me coloquem uma pistola na cabeça. Um país com narcotraficantes, bandidos, miseráveis, gente sem autoestima. Quero estar rodeada de artistas, arquitetos, médicos, professores, de gente que trabalhe, sonhe e progrida pelos seus próprios meios. E que eu também possa progredir. Este é o meu interesse pessoal.”
República versus populismo
Na segunda metade de sua palestra, Gloria Alvarez detalhou sua visão de República como o melhor antídoto contra o populismo tão em voga na América Latina. “O debate de esquerda e direita não serve mais. Uma esquerda intelectualmente honesta tem que reconhecer que a única forma de criar riqueza é com emprego. E uma direita moderna tem que reconhecer que as decisões morais de cada indivíduo são suas, não se pode mais impor um conservadorismo de antigamente. Portanto, essa dicotomia direita versus esquerda é algo desgastado. Já a oposição entre populismo e república, não.”
“Por que a República e o populismo são antíteses? A República valoriza a meritocracia, o direito de livre expressão, busca o diálogo e o intercâmbio de ideias. O populismo se vale da manipulação em vez do diálogo e, para se desenvolver, necessita de falta de transparência e de institucionalidade zero. A corrupção é a gasolina do populismo”, declarou.
“A República e a democracia precisam uma da outra. Sem democracia, a República se torna império. Sem República, a democracia se torna demagogia”, afirmou.
Para Gloria, a República só existe com equilíbrio entre os três poderes, mas, para ela, o Judiciário é o mais importante: “O Poder Judiciário, justamente o mais abandonado na América Latina, é essencial porque castiga o governo e a sociedade por igual, sem privilégios, quando há corrupção ou violação da lei.”
A origem do populismo latino-americano do Século 21
Para a cientista política Gloria Alvarez, o populismo latino-americano deste século começou a ser germinado na capital paulista em 1990, quando o Partido dos Trabalhadores promoveu o seminário internacional apelidado de Foro de São Paulo, com a participação de líderes de esquerda de toda a América Latina.
“Quando cai o Muro de Berlim, em 1989, e no ano seguinte a União Soviética sucumbe, as organizações, os partidos e as guerrilhas de esquerda da América Latina, assim como regimes socialistas como o de Cuba, se veem diante de um problema: não há mais dinheiro da União Soviética para sustentá-los. Eles têm de encontrar outras formas de se manter e uma nova ideologia para chegar ao poder. O que faz toda a esquerda latino-americana? Toma um avião e vem para cá, para o Foro de São Paulo. Naquele encontro a esquerda socialista latino-americana elaborou uma agenda chamada Socialismo do século 21”, afirmou.
Gloria também lembrou a responsabilidade dos presidentes liberais, ou “de direita”, da década de 90 pela formação do caldo de cultura que possibilitou o crescimento do populismo “de esquerda” latino-americano. “A Queda do Muro coincidiu com a época que a América Latina entrava na era democrática e com a posse de diversos presidentes civis liberais. Aqueles líderes ‘de direita’ vão aos Estados Unidos e assinam o que se chamou de Consenso de Washington, em que juraram governar em prol do livre mercado. Ao voltarem a seus países, privatizaram os setores elétrico e de telecomunicações, as empresas de petróleo, minas, companhias aéreas e ferrovias. Mas em diversos casos quem se beneficiou foram seus irmãos, primos e amigos. Governantes e familiares se tornaram colegas em novos monopólios e oligopólios. Como resultado, no imaginário latino-americano o capitalismo fracassou, o livre mercado não deu certo. Mas não houve livre mercado, não houve capitalismo de verdade.”
Para Gloria, aquela atitude abriu caminho para os líderes populistas: “Eles disseram: ‘Viram, o livre mercado não funciona, o capitalismo ianque não serve ao povo.’ E as pessoas voltaram a ver o populismo como alternativa ao capitalismo fracassado.”
Manual do populista
Na parte final de sua fala, a guatemalteca Gloria Alvarez apresentou o que ela chamou de Manual do Populista, em seis passos.
Primeiro passo – O líder populista lança mão do ódio para dividir a sociedade. De um lado está o povo. Do outro, o antipovo. “Quando a sociedade está dividida pelo ódio, já não há cooperação na sociedade civil, não há mais empatia pelo outro. Nesse momento, o populista diz ‘Eu sou o super-homem e me encarregarei de tudo’.”
Segundo passo – Eliminar toda a oposição do Congresso, pois deputados e senadores que debatam e critiquem atrapalham. “O populista precisa de parlamentares que obedeçam a suas ordens. Então, compram-se deputados, extorquem, qualquer coisa.”
Terceiro passo – É preciso anular o Poder Judiciário. São necessários juízes que calem a boca e façam o que o governante populista quer. A corrupção, a intimidação e até mesmo o assassinato são maneiras de atingir esse objetivo, segundo Gloria.
Quarto passo – Reformar as Constituições para permitir reeleições sem limite, controle dos processos eleitorais e fim da independência entre os poderes.
Quinto passo – Começa-se a impor limites à propriedade privada e à produção econômica. “Na Venezuela, mais de dez mil negócios foram desapropriados desde que Hugo Chávez chegou ao poder. Já os argentinos são proibidos de ter dólares. Precisam ir a Montevidéu em um barco, como criminosos, depositar seus dólares em bancos uruguaios”, disse.
Sexto passo – Eliminar a liberdade de imprensa.
Gloria Alvarez fez então mais uma provocação: “Em maior ou menor medida, esse manual está sendo implementado em toda a América Latina, de norte a sul. Cada um de vocês pode analisar quais passos estão sendo tomados em seu país.”
Uma metáfora futebolística
“Já que estamos no país do futebol, vou usar uma metáfora futebolística”, anunciou a cientista política guatemalteca. Segundo Gloria, na República o governo é o árbitro: “O trabalho do juiz é observar os cidadãos jogarem o jogo da vida. Quando um jogador interfere na liberdade do outro jogar segundo as regras estabelecidas, ele apita e pune. Assim atua um chefe de Estado republicano.”
“Já para o populista, o governo é árbitro, atacante, meio-de-campo, zagueiro, vendedor de hot dogs, polícia e até mesmo dono do estádio. O governo controla tudo!”, afirmou. “O populista se torna jogador quando elimina a oposição, polícia ao assassinar juízes, público ao eliminar a liberdade de expressão e dono do estádio quando expropria. E um dia o cidadão olha para o estádio e pensa ‘quando foi que isso aconteceu?’”, disse a palestrante.
O que fazer?
Para a guatemalteca Gloria Alvarez, não se pode culpar os que votam pelo populista, mas sim oferecer aos eleitores uma alternativa que, com frequência, eles nunca tiveram em suas vidas. “Esta alternativa se chama justiça. E a única forma de justiça é a igualdade perante a lei de cada um e de todos os indivíduos. É a República”, propôs.
“Não acredito que as pessoas, por serem pobres, não possam pensar racionalmente e no longo prazo. Creio que cada indivíduo é uma cabeça que podemos resgatar. E não se trata somente de empoderar os cidadãos. Também precisamos ter candidatos que defendam a República e que, ao chegar ao poder, não atuem como populistas.”
Com esse objetivo, a ativista e seu Movimento Cívico Nacional ajudou a criar um projeto na Guatemala chamado La Cantera (A Pedreira). Qualquer guatemalteco com mais de 27 anos pode participar, mas antes tem de passar por uma série de entrevistas e uma bateria de testes, que vão desde mostrar comprovada liderança em sua comunidade a se submeter a um detector de mentiras e revelar suas posses e contas bancárias, assim como antecedentes judicial e policial.
Se passar pelo escrutínio, recebe uma bolsa de estudos de dois anos na Escola de Governo da Guatemala com o objetivo de se tornar mestre em políticas públicas, com especialização em uma área específica como saúde, educação etc. “Depois eles são convidados a se lançarem candidatos a cargos públicos por algum partido alinhado ao projeto. Quem garante que, ao chegarem ao poder, não serão corrompidos? Nada. Cada um controla suas decisões. Mas, como dizia Albert Einstein, se queremos resultados diferentes temos que fazer coisas diferentes. E o La Cantera é algo diferente num país como a Guatemala, onde a meritocracia nunca foi premiada”, afirmou Gloria.
Há muito que dizer, criticar, concordar e discordar em relação às ideias expostas pela cientista política e ativista guatemalteca em sua passagem pelo Brasil neste tumultuado mês de abril de 2015. Mas não há como negar que suas provocações são uma lufada de ar fresco na mesmice ideológica que dominou o cenário político brasileiro há mais de uma década. É hora de ampliar e aprofundar o debate.
Otávio Dias é jornalista especializado em relações internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do portal do Estadão e editor-chefe do site Brasil Post.