Ruptura ou transição na Venezuela
Participaram deste debate: os embaixadores Sergio Amaral e Rubens Barbosa, o repórter William Waack e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
O Brasil passou do apoio irrestrito à Venezuela (durante os governos do PT) à crítica muito virulenta (no atual governo), perdeu o canal de comunicação com o regime em Caracas e não pode, no momento, contribuir de forma efetiva para a construção de uma solução negociada para a superação da crise no país vizinho. Esta foi a principal mensagem deste debate que reuniu os embaixadores Sergio Amaral e Rubens Barbosa, o repórter William Waack, com ampla experiência em coberturas internacionais, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
“A contaminação ideológica do atual governo, que tem um de seus pilares no Ministério das Relações Exteriores, colocou o Brasil a reboque de Washington em questões internacionais relevantes, entre elas a crise da Venezuela. O presidente Trump chegou a ameaçar com uma intervenção militar, mas mudou de opinião e ficamos pendurados. O resultado é que o Brasil, que como potência regional poderia conduzir um processo de negociação entre o governo e a oposição venezuelana, agora é conduzido”, disse Rubens Barbosa, que foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e Washington (1999-2004).
“Maduro se mostrou capaz de resistir às pressões diplomáticas para abrir o regime e permitir uma transição pacífica com antecipação de eleições livres e transparentes. Também tem conseguido permanecer no poder apesar das fortes sanções impostas pelos EUA, que chegaram a confiscar pagamentos de compra de petróleo da PDVSA. A médio prazo, as sanções podem levar a um colapso total de uma economia que já está combalida. Na prática, a Venezuela já não tem mais moeda e regride ao escambo de mercadorias. Que consequências (um colapso) terá para o Brasil e outros países vizinhos?”, perguntou Sergio Silva do Amaral, que acaba de deixar o cargo de embaixador em Washington (2016-2019).
“Como correspondente internacional, assisti de perto a tentativas de derrubadas de duas ditaduras, de Slobodan Milosevic (Sérvia/Iugoslávia) e Saddam Hussein (Iraque). Ditaduras dificilmente caem sozinhas, mas com bombardeios aéreos e ‘boots on the ground’. O atual governo brasileiro acreditou que a CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) tivesse um plano viável para derrubar Maduro e substituí-lo por um governo democrático com apoio interno, mas os norte-americanos não o têm. Como não tinham no Iraque e na antiga Iugoslávia”, disse William Waack, que foi correspondente internacional por 21 anos na Alemanha, Reino Unido, Rússia e EUA.
“Quando eu era presidente do Brasil (1995-2002), houve a Guerra do Iraque e representantes do governo norte-americano nos disseram que estava tudo preparado para o pós-Saddam, que as forças políticas de oposição já estavam organizadas, haveria eleições e um novo regime estável e democrático assumiria o poder. Nada aconteceu como previsto. Invadir a Venezuela e derrubar Maduro não é uma tarefa impossível para um país militarmente poderoso como os EUA, mas o que acontecerá depois?”, questionou o ex-presidente FHC.
Precedentes perigosos
De acordo com Rubens Barbosa, as iniciativas do Grupo de Lima (formado por 12 países americanos) e dos EUA para tentar desestabilizar o governo Maduro criaram precedentes perigosos para as relações internacionais e a política externa brasileira. “Reconhecemos um governo paralelo liderado pelo oposicionista Juan Guaidó (presidente da Assembleia Nacional da Venezuela), mas qualquer manual de direito internacional ensina que só se reconhece um governo quando ele de fato controla a maioria do território de um país e tem condições reais de impor suas políticas. Guaidó não tem condições de fazer nem uma coisa nem outra”, disse o presidente do IRICE (Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior).
Outro precedente perigoso foi o congelamento de recursos da venda de petróleo pelos EUA. “Os norte-americanos sempre importaram petróleo da Venezuela. Não há como bloquear pagamentos de uma venda internacional que aconteceu de forma legítima”, disse Barbosa, que alertou para a possível escalada de uma crise com repercussão internacional. “Além dos países vizinhos, EUA, Rússia, China, México e Noruega já estão bastante envolvidos”, lembrou. México e Uruguai (governados por presidentes de esquerda) se ofereceram para ajudar nas negociações entre o governo Maduro e a oposição venezuelana em Oslo (Noruega), mas até o momento não houve avanços concretos.
O embaixador, autor do livro “Um diplomata a serviço do Estado” (Editora FGV, 2018), também lembrou que a crise venezuelana, dependendo de sua evolução e desfecho, tem potencial para se tornar uma questão de segurança nacional de extrema gravidade para o Brasil. Como fatores complicadores, ele citou a dependência energética de Roraima em relação ao país vizinho, a vulnerabilidade das fronteiras diante do contrabando de drogas e armas, a presença das FARC em território venezuelano e a possibilidade de uma nova onda de refugiados venezuelanos. “Nosso principal objetivo é manter a fronteira estável, e esse conjunto de fatores torna a situação muito delicada”, disse.
“Para minha tristeza, o Brasil ficou de fora do grupo de contato integrado por México, Uruguai, UE e mais alguns países. Uma solução negociada é a única que interessa o Brasil. Tivemos a oportunidade de assumir efetiva liderança regional, mas devido à postura ultra-radical da chancelaria brasileira, acabamos marginalizados”, concluiu.
‘Aventura sem conexão com realidade’
“Potências (globais ou regionais) se comportam como potências não importa se são governadas por líderes de direita ou de esquerda. Por questões ideológicas, o governo brasileiro embarcou em uma aventura sem conexão com a realidade para derrubar Maduro. Salvo o imponderável e o imprevisível, estamos diante de um fracasso gestado em Brasília”, disse William Waack, que lembrou a tentativa fracassada do Brasil de levar ajuda humanitária para a Venezuela apesar da negativa do governo Maduro. “Como entramos numa fria dessas?”, continuou, para quem o único caminho de tirar Maduro do poder é por meio de pressão diplomática e negociações.
‘Venezuela não é prioridade em Washington’
Sergio Amaral, que exerceu o cargo de embaixador do Brasil nos EUA entre 2016 e 2019, disse que as preocupações na capital norte-americana estão voltadas para a emergência econômica, tecnológica e militar da China. “A China desponta como grande potência do Século 21, e os EUA farão o que puder para impedir que a nação asiática desafie a supremacia norte-americana. Ainda que mantenham acesa a ameaça de uma intervenção na Venezuela com o uso da força, isso não deve acontecer, pois não é uma prioridade estratégica para os EUA”, explicou.
‘Seremos vizinhos para sempre’
“O Itamaraty perdeu, no atual governo, capacidade de levar adiante uma política externa regional em relação à Venezuela, mas algumas lideranças militares brasileiras mantêm bons contatos com militares venezuelanos e podem ajudar. Precisamos ter paciência, afinal seremos vizinhos para sempre, e trabalhar discretamente para voltar a ter capacidade de atuar de forma pacífica e construtiva para evitar um caos maior na Venezuela”, continuou FHC, que foi ministro das Relações Exteriores (governo Itamar Franco).
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.