Debates
19 de abril de 2018

Reforma tributária: mudança abrangente ou estratégica?

“Se o argumento de que alterações amplas são perigosas fosse levado ao pé da letra não teríamos feito nossa última reforma de maior envergadura, nos anos 1960”, falou Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal.

“O custo político de uma reforma fatiada – e incompleta – pode ser tão grande quanto o de uma reforma ampla.”
Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal

“Prefiro reformas estratégicas, pois, ao enviarmos uma proposta de emenda constitucional ao Congresso, não sabemos o que vai acontecer. Pela minha experiência, piora.”
Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal

Uma reforma abrangente, que implique em alterações constitucionais e um período longo de transição entre o antigo e o novo modelo, ou diversas pequenas reformas de caráter estratégico, focando em problemas específicos? Esta foi a principal divergência entre os participantes do seminário “A difícil reforma tributária: desafios políticos, conceituais e práticos”, que reuniu Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal (Governo FHC) e Bernard Appy, ex-secretário de Política Econômica (Governo Lula), na Fundação FHC.

Para Appy, que dirige hoje o Centro de Cidadania Fiscal, um think tank independente que tem como objetivo contribuir para a simplificação do sistema tributário brasileiro, um bom sistema tributário, além de arrecadar, deve ser “simples, neutro, transparente e justo”. “O sistema brasileiro não tem nenhuma dessas características”, afirmou.

Segundo o economista, a agenda de reformas do modelo brasileiro é ampla e envolve diversas áreas:

  • Tributos sobre bens e serviços: agenda mais importante para a produtividade e a redução das tensões federativas;
  • Tributos sobre a renda: agenda distributiva;
  • Tributos sobre a folha de pagamentos: formalização;
  • Regimes simplificados: correção de distorções;
  • Processo administrativo fiscal (e relação fisco/contribuinte): segurança jurídica.

Em sua fala, ele focou principalmente no primeiro item, ao propor a substituição dos cinco impostos sobre bens e serviços existentes hoje no país (IPI, ICMS, ISS e PIS/Cofins) por apenas um imposto sobre o valor adicionado (IVA). “A ideia é substituir cinco impostos ruins por um imposto bom, sobre o consumo”, disse.

“Dá para melhorar o sistema? Sim, mas não dá para manter o sistema atual. O problema é estrutural e só vai piorar com a nova economia”, disse, salientando que uma eventual mudança exigiria reformas constitucionais, com aprovação de três quintos dos votos de deputados e senadores.

A proposta elaborada pelo Centro de Cidadania Fiscal (veja detalhes, incluindo a agenda distributiva, na seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página) prevê um período de transição de até dez anos para os cidadãos/consumidores e até 50 anos no que diz respeito à repartição dos impostos entre a União, os Estados e os municípios. “A proposta do CCiF não é um modelo fechado, mas uma contribuição ao debate”, disse. 

‘Nunca foi prioridade presidencial’

Segundo Appy, uma reforma tão abrangente como a sugerida só teria chance de passar se for prioridade do(a) próximo(a) presidente da República. “É fundamental que o ou a presidente coloque seu capital político para aprovar uma mudança mais abrangente, pois, se ficar como está, o Brasil estará fora do parâmetro produtivo da nova economia mundial”, afirmou.

Ele citou a Índia como exemplo de país que realizou recentemente uma ampla reforma tributária: “Virou prioridade do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Quando ele era governador, era contra várias das mudanças realizadas, mas depois que se tornou premiê (em 2014) liderou a reforma, que aparentemente melhorou o ambiente de negócios.”

‘Processo permanente’

Segundo Everardo Maciel, “a reforma tributária não é um evento, mas um processo permanente com diversos eventos relevantes”. Segundo e ex-secretário da Receita Federal (1995-2002), um “modelo de tributação ótimo é uma ficção”, assim como não existe “um paradigma tributário, pois cada sistema é modelado por circunstâncias locais e históricas”.

Ele disse não acreditar na “transposição acrítica de modelos tributários (de outros países)” e alertou para os riscos de uma reforma tributária de “caráter aventureiro, que cause exacerbação de conflitos e resulte em impasse”, pelos motivos citados abaixo:

  • Possibilidade de introdução de normas inconvenientes ou inadequadas, em virtude da ação de lobbies (no Congresso);
  • Efeitos imprevisíveis na arrecadação;
  • Efeitos diferenciados sobre os contribuintes;
  • Efeitos sobre o federalismo;
  • Imprevisibilidade das repercussões, somente aferíveis na prática.

Ele defendeu o “meio caminho entre reformas disruptivas, que são bonitas mas claudicantes, e o imobilismo”. Para Maciel, as mudanças devem ser realistas, pragmáticas e baseadas na identificação de problemas específicos e na formulação de soluções que, preferencialmente, não demandem grandes mudanças legislativas, conferindo prioridade ao processo e aos procedimentos tributários.

“Se o Arcanjo Gabriel baixasse hoje aqui e dissesse que convenceu todos os parlamentares a aprovar uma ampla reforma, o que garante que o STF não irá declará-la inconstitucional? Mudanças tributárias exigem a mesma prudência com que porcos espinhos fazem sexo”, disse Maciel, para quem a estabilidade normativa e a segurança jurídica são fatores determinantes para o investimento privado.

A reforma, ou “as reformas”, defendidas pelo ex-secretário (veja apresentação completa na seção Conteúdos Relacionados, à direita) devem atentar para as grandes transformações que estão ocorrendo no mundo contemporâneo, como:

  • Globalização e 4ª revolução industrial (moedas virtuais, inteligência artificial, novas matrizes energética e de comunicações, novas formas de trabalho, novos modelos de determinação de preços, cadeias de valor, etc.);
  • Evasão fiscal em um mundo cada vez mais digital;

  • Reformas tributárias em curso em outros países como EUA (‘Reforma Trump’ e seus imprevisíveis efeitos; ameaças tributárias à concentração nas operações de varejo – caso Amazon), França (extinção do imposto sobre grandes fortunas), União Europeia (medidas de retaliação aos paraísos fiscais; ‘Turnover Tax’), Itália (a proposta de criação de um imposto único), Austrália (criação do ‘Google Tax’), Reino Unido e Argentina (redução das alíquotas nominais do IRPJ).

Segurança jurídica vs. eficiência econômica

Após a fala de Maciel, Appy disse haver uma diferença de enfoque entre os dois palestrantes: “Everardo tem uma preocupação maior com a segurança jurídica, que também é fundamental, daí ser necessário haver regras claras de transição. Já eu foquei mais na eficiência econômica, pois temos um problema estrutural gravíssimo. Não dá para o Brasil rumar para a nova economia mantendo o status quo (tributário)”, afirmou.

“Se o argumento de que alterações amplas são perigosas fosse levado ao pé da letra não teríamos feito nossa última reforma de maior envergadura, nos anos 1960”.

“É bom lembrar que a reforma tributária de 1965 ocorreu no início do regime militar (Governo Castelo Branco). Não creio que hoje, com um Congresso livre e muito dividido, seria possível ter o mesmo êxito”, respondeu Maciel.

Ambos, no entanto, concordaram que a ideia de tributar grandes fortunas, levantada por um integrante da plateia já na parte final de perguntas e respostas, não contribuiria para a redução da desigualdade social. “Infelizmente não funciona, pois os muito ricos simplesmente alterariam seu domicílio (tributário). É uma ideia atraente, mas que só daria certo se ocorresse a nível mundial”, disse Appy.

“Não funciona. A França, por exemplo, acaba de eliminar esse imposto, pois percebeu que ele representa apenas 0,4% ou 0,5% da arrecadação total”, afirmou Maciel.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.