Quem tem direito à memória?
“Quais são os limites da construção de memória? Como a construção de memória é algo que revela e oculta? Quantos monumentos podem sim servir realmente para nos preparar a desafiar qualquer imagem?”, questionou o escritor Abilio Ferreira neste debate.
As manifestações iniciadas nos Estados Unidos contra o assassinato por policiais brancos de um homem negro rendido foram replicadas mundo afora, levando em alguns lugares à destruição de monumentos públicos. Esses atos atestam o mal-estar da sensibilidade contemporânea frente a personagens simbólicas do racismo e do colonialismo, consagradas pela história oficial e transformadas em monumentos, nomes de logradouros e ruas no espaço público. De outro lado, forças sociais esquecidas pelas narrativas preponderantes lutam para conhecer a sua história, sair da invisibilidade e reivindicam o direito à memória. É no contexto da luta contra a desigualdade que surgem essas duas formas de ativismo político, ambas no campo do patrimônio cultural das cidades em que vivemos.
As intervenções em monumentos nos mobilizam. O que eles revelam? O que eles escondem?
Os palestrantes comentam que monumentos presentes na cidade de São Paulo, como: “Monumento a Garcia Lorca”, “Monumento às Bandeiras”, Monumento “Duque de Caxias”, “Estátua Padre José de Anchieta” e “Monumento Luiz Gama”, nos fazem pensar acerca da utilização do espaço público, a respeito da sua influência na formação da memória, e quanto à centralidade destas obras na construção de simbologias.
O historiador Paulo César Garcez Marins parte da narrativa dos protestos mundiais antirracistas seguintes ao assassinato brutal do estadunidense George Floyd, em Mineápolis, a derrubada de uma estátua do mercador, filantropo e escravocrata inglês Edward Colston, em Bristol, fez ressurgir o debate acerca das manifestações sobre monumentos, sobretudo aqueles que celebram pessoas que construíram nas suas vidas ações racistas.
Para Garcez, “Discutir a memória é certamente um caminho para discutir também formas relacionadas ao nosso presente.” “É pensar líderes políticos, religiosos e culturais. A ideia de que nós vamos celebrar alguém, torná-lo um objeto de celebração, de culto nos locais públicos e a partir dali lembrar apenas alguns aspectos da sua vida e esquecer outros, é algo que deve realmente nos desafiar.”
Derrubá-las ou mantê-las? Essa é a grande discussão hoje em dia
O escritor Abilio Ferreira complementa a importância de transcendermos a essa dicotomia entre uma posição de derruba ou não derruba. “Existe uma construção de memória que nos interessa debater”. De acordo com o palestrante, “o que cria monumentos, o que cria a memória é o processo de construção coletivo, o processo histórico. É a dinâmica histórica que já vem sendo feita, mas que precisa ser reconhecida. Mas ela também não vai ser reconhecida por iniciativa espontânea de quem detém o poder de contar a história.”
Essa dinâmica nos apresenta um impasse e Garcez explica: “Temos que trabalhar com o público quem fez aquelas memórias. Quais são os limites da construção de memória? Como a construção de memória é algo que revela e oculta? Quantos monumentos podem sim servir realmente para nos preparar a desafiar qualquer imagem?”.
E Abilio instiga a reflexão: “o que produz a narrativa urbana é a questão da educação patrimonial, a entrada na escola desse debate, que possibilita também a pressão sobre os gestores da cidade: as empresas, as pessoas do Poder Legislativo e Executivo.”