Debates
06 de maio de 2021

O papel das ciências sociais no desenvolvimento do Brasil

O debate marcou o lançamento do novo livro do cientista político Simon Schwartzman: “Falso Mineiro”. Bernardo Sorj e Elizabeth Balbachevsky também participaram da conversa.

Para que servem as ciências sociais?, perguntou Simon Schwartzman no lançamento de sua autobiografia “Falso Mineiro: Memórias de Política, Ciência, Educação e Sociedade” (Editora Intrínseca, selo História Real), em webinar realizado pela Fundação FHC no início de maio. Em sua fala inicial, o renomado cientista político identificou três papéis cruciais e concluiu: “É fundamental entender e mostrar o que está acontecendo na sociedade aqui e agora e comparar com o que pode estar acontecendo em outros lugares, sempre com uma perspectiva histórica, claro. Isso nos tira do provincianismo, pois o mundo é amplo e somos parte de algo maior e mais complicado. É função das ciências sociais tentar entender essa grande variedade de fenômenos existentes na atualidade.”

Para conversar com o membro da Academia Brasileira de Ciências, convidamos dois cientistas sociais com relevantes contribuições à ciência e à sociedade brasileira nas últimas décadas: a cientista política Elizabeth Balbachevsky, professora da Universidade de São Paulo, e o sociólogo Bernardo Sorj, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Para Balbachevsky, “as ciências sociais são parte necessária de um processo de conhecimento que desnaturaliza situações e as recria como problemas que precisam ser enfrentados pela sociedade. Elas também se envolvem na discussão ética e no debate sobre os desenhos de possíveis respostas para esses problemas.”

“Proponho uma sociologia que revele mapas mais complexos da vida social brasileira e que possa, assim, se contrapor a simplificações que venham da vida política e de outras áreas, como a economia. Que nos ajude a superar a polarização que caracteriza a atual vida intelectual e política brasileira e contribua efetivamente para repensar o Brasil”, disse Sorj.

Os três papéis do cientista social

Segundo Schwartzman, que presidiu o IBGE entre 1994 e 1998, uma das funções das ciências sociais é ser “uma espécie de engenharia social”,  ajudando a administrar a sociedade de maneira adequada. “Estamos longe de ser uma ciência aplicada como a medicina, mas podemos contribuir, por exemplo, para melhorar o sistema político, lidar com o problema da violência ou cuidar para que a vida das famílias seja mais funcional. Esta, no entanto, é uma ambição que nunca foi completamente cumprida”, disse.

“Entender o contexto local e situá-lo em um cenário mais amplo, levando em conta a evolução no decorrer da história, é função do sociólogo. É muito importante comparar experiências”, disse Simon.

“Por que alguns países conseguem fazer as coisas de um jeito e outros, de outro? Por que a educação brasileira difere da educação da Coreia do Sul? Entender o contexto local e situá-lo em um cenário mais amplo, levando em conta a evolução no decorrer da história, é a segunda função do sociólogo. É muito importante comparar experiências”, continuou.

A terceira função é mais ética e normativa, pois os cientistas sociais não são técnicos neutros, eles têm princípios e compromissos morais, explicou o doutor em ciências políticas pela Universidade da Califórnia em Berkeley. “Temos desigualdade, discriminação, pobreza e violência. O cientista social é comprometido com esses problemas, mas não é o mesmo tipo de compromisso, por exemplo, que uma pessoa tem a partir da religião, quando diz ‘isso está errado e vou consertar’. O cientista social não se propõe apenas a corrigir determinado problema, mas se pergunta: Como vou fazer isso? Quais são as experiências que existem no mundo? Quais tentativas de intervenção funcionam e quais não funcionam? Quais os resultados?”, disse.

Segundo o autor, a ética das ciências sociais é mediada pelo conhecimento e pela informação e é isso que a diferencia de um simples engajamento ético ou moral. “Isso é importante porque hoje em dia muitas vezes vemos nos departamentos de ciências sociais das universidades um predomínio quase que exclusivo da questão ética e da questão moral, mas fica faltando a outra dimensão, da análise, do conhecimento, da comparação, da consciência histórica. Sem isso, as ciências sociais não existem”, afirmou o homenageado.

Além de pesquisar, dar aulas e escrever artigos, o cientista social deve ser um intelectual público, que busca dialogar com seu objeto de estudo, a sociedade, saindo da academia e indo para os espaços de debate. “Esse papel de intelectual público se aproxima do papel do político”, disse. Simon citou o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso como um exemplo de soma do conhecimento intelectual e da participação pública. “Depois que Fernando Henrique se tornou presidente, não precisei mais explicar pra ninguém o que faz um sociólogo. Devo isso a ele”, brincou.

Schwartzman alertou, no entanto, para a importância de não confundir os dois papéis: “É preciso ter claro que a vocação do político é diferente da vocação do cientista social. São formas diferentes de se relacionar com a sociedade.”

Ciência militante vs. ciência engajada

Em sua exposição, Elizabeth Balbachevsky buscou demarcar a diferença entre uma ciência social militante e uma ciência social engajada. A ciência social militante seria aquela que aceita subordinar  a sua agenda de pesquisa a um princípio que lhe é externo, em nome de uma causa ou de uma conveniência política. “Quando você entra dentro de uma lógica de militância política, aceita uma espécie de autocensura sobre quais resultados são aceitáveis ou úteis e quais não são e, portanto, não merecem ser expressos. Não raras vezes uma ciência social produzida dentro dessa matriz resulta em uma má ciência social, que dialoga apenas com convertidos e tem baixo impacto social”, disse.

A ciência social engajada seria diferente, não por ser impermeável  às questões ideológicas e aos valores, mas por se debruçar sobre as questões mais candentes do momento que a sociedade está vivendo. “O que chamo de ciência social engajada é um modelo de pesquisa híbrido que se preocupa com o entendimento dos fenômenos sociais e, ao mesmo tempo, com a aplicação do conhecimento na solução dos problemas complexos que a sociedade vive”, explicou a coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas do Instituto de Estudos Avançados da USP (NUPPs / IEA-USP).

Além de híbrida, essa ciência social é também inter e transdisciplinar, pois os problemas reais dificilmente estão contidos no âmbito de uma única disciplina. Como exemplo, a palestrante citou os atuais projetos dedicados a estudar novas dinâmicas criadas pela pandemia. “A urgência social que estamos vivendo levou diversos cientistas sociais a mudarem radicalmente suas agendas de pesquisa e se envolverem em grupos de pesquisa amplos, com perfis disciplinares diversos. Os resultados começam a surgir e são muito promissores”, relatou.

Ciências sociais e identidade nacional

Bernardo Sorj, sociólogo uruguaio naturalizado brasileiro, apontou três “tradições” na sociologia. A primeira visa a estudar os problemas e as políticas públicas desenhadas para enfrentá-los. “É uma visão reformista que segmenta os problemas sociais na procura de soluções basicamente dentro da ordem estabelecida. Obviamente espera-se que essas soluções mudem a ordem estabelecida, mas se trata de análises pontuais”, disse.

A segunda ele chamou de “visão da teoria crítica” e tem como ponto de partida o questionamento dos fundamentos da própria sociedade: “Ela é holística, tem um componente utópico, quando não trágico, da vida social, mas infelizmente, muitas vezes dificulta o diálogo.”

Uma terceira tradição procura mapear e explicar a dinâmica do conjunto da estrutura social de um país, com estudos sobre fenômenos abrangentes como, por exemplo, mudanças na estrutura de classes,  na mobilidade social, nas formas de organização e representação de interesses da sociedade junto ao Estado, etc. “É uma tradição importante, que infelizmente perdeu espaço nas últimas décadas no Brasil, espaço que foi ocupado pelos economistas, que têm realizado excelentes trabalhos sobre a estrutura socioeconômica brasileira, mas que, obviamente, tem um recorte parcial. Nós, sociólogos, sabemos que muitos agregados estatísticos aglutinam fenômenos sociais que nada têm em comum, e as ciências econômicas não raro deixam de lado fatores importantes, mas difíceis de mensurar, que não cabem nos seus modelos explicativos, disse Sorj.

“Essa função de buscar explicações abrangentes sobre a sociedade é uma demanda, ainda que não declarada, da própria sociedade, que quer saber o que somos e por que somos como somos”, continuou Sorj. Nesse sentido, as ciências sociais influenciam a formação das identidades nacionais.

Para Sorj, nos últimos 40 anos “a sociologia perdeu o pé nesse esforço de interpretar o Brasil e deixou de ter como referência o estudo e a definição do que é a identidade nacional brasileira no contexto de um mundo cada vez mais globalizado. Esta pode e deve ser uma área da sociologia que merece ser desenvolvida pelas novas gerações.”

Schwartzman: ‘Não cabe às ciências sociais dizerem qual é a identidade brasileira’

“Quando pesquiso educação, por exemplo, não devo olhar a educação brasileira do ponto de vista da identidade nacional — claro, é preciso analisar as características históricas e outros aspectos exclusivos nossos —, mas tenho que ver como é a educação no mundo e no que o Brasil é igual e no que é diferente dos outros países. Portanto, acho que o papel das ciências sociais não é o de trabalhar a identidade nacional, mas entender, em determinada sociedade, o que é comum e o que é diferente do resto do mundo, por que seguimos um caminho enquanto outras nações escolhem outros. É a partir de uma visão comparativa aprofundada que temos um verdadeiro entendimento de quem somos e como somos”, disse Simon após a fala de Sorj. 

Schwartzman prosseguiu: “Concordo que a sociologia perdeu o pé, mas não pelo tema da identidade, mas porque se transformou, nos departamentos de ciências sociais das universidades brasileiras, em uma espécie de disciplina moral, de contestação de valores e afirmação de direitos. A sociologia se colocou num canto, e deixou a análise dos processo sociais e econômicos para outras áreas.”

Sorj respondeu: “Em nenhum momento propus que o sociólogo deva produzir identidade, o que estou dizendo é que o trabalho do sociólogo, do cientista político e do economista (três áreas da ciência que compõem as ciências sociais) produz identidade. Quando o Simon, por exemplo, faz um ranking da educação no mundo e coloca o Brasil em uma posição ruim, ele está produzindo identidade, ainda que não seja este seu objetivo”.

“Concordo não ser função da sociologia produzir identidade, mas todo conhecimento social é apropriado pela sociedade porque ela precisa se mapear e se localizar no mundo. Como Simon, não acredito em essencialismos identitários, mas acredito em trajetórias históricas diferenciadas, particulares. As ciências sociais podem nos ajudar a repensar o Brasil e a superar a simplificação e a polarização da atual vida política e intelectual brasileira”, concluiu Bernardo.


Para Saber Mais:

Leia entrevista de Fernando Henrique Cardoso sobre seu mais novo livro, “Um Intelectual na Política – Memórias” , que está sendo lançado pela Companhia das Letras às vésperas do aniversário de 90 anos do ex-presidente.

 

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.