O impacto da revolução digital no sistema financeiro – Por Murilo Portugal Filho
Que novo balanço de riscos e oportunidades as mudanças tecnológicas criam para a economia e a sociedade, para empresas, famílias e indivíduos?
O setor bancário está enfrentando uma onda de inovação em virtude da combinação de novas tecnologias — big data analytics, cloud computing, inteligência artificial, blockchain e internet das coisas — e da competição, mas também cooperação, com as Fintechs e Big Techs.
“A inovação está no DNA do setor bancário, mas as glórias do passado não garantem o futuro”, alertou o economista Murilo Portugal Filho, presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) desde 2011, em palestra na Fundação FHC sobre o impacto da revolução digital no sistema financeiro. Estava prevista a participação de Burkhard Balz, diretor do Deutsche Bundesbank (banco central alemão) desde 2018, mas o convidado alemão não pôde viajar ao Brasil.
Segundo Portugal, a concorrência está levando os grandes bancos a “emular a agilidade e a filosofia de encantar os clientes das Fintechs”. “Uso mais intenso de novas tecnologias, simplicidade, integração de vários produtos e serviços, inclusive com outros setores, são alguns dos efeitos positivos da interação entre os bancos tradicionais e os entrantes no mercado”, disse o ex-secretário do Tesouro Nacional.
“Todos os bancos têm investido e comprado Fintechs, ou criado parcerias com elas. É uma relação baseada em competição, claro, mas também em cooperação”, disse.
‘Dados são o petróleo do Século 21’
Dois “drivers de mudança” são os mais relevantes. O primeiro é a enorme quantidade de dados sobre os cidadãos/consumidores que circula pelas redes e que pode ser analisada e utilizada para fins ou objetivos inesperados. “Os dados digitais são hoje o que o petróleo foi no século 20. Ao analisá-los, descobrimos segredos e correlações que estavam escondidos”, afirmou.
O segundo é a experiência do usuário: “Os clientes estão cada vez mais digitais, esperam ter suas necessidades resolvidas pelo celular a qualquer hora do dia em minutos ou segundos e de forma segura”, disse.
Segundo dados citados pelo palestrante, das quase 80 bilhões de transações bancárias realizadas em 2018, 40% foram realizadas por meio do celular/smartphone, duas vezes mais do que a quantidade de operações feitas pelo computador e mais de três vezes via caixa eletrônico. Setenta e seis por cento dos clientes que utilizam os meios digitais abandonam uma transação bancária quando se sentem frustrados no meio do processo. Veja estas e outras estatísticas na seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página.
Para se adaptarem a esse contexto, os bancos brasileiros têm investido quase R$ 20 bilhões anuais em TI. “Nesse ambiente de inovação, eles têm desvantagens por possuírem grandes sistemas, relacionamento com grande número de clientes e o compromisso de oferecer a eles quantidade significativa de produtos e serviços. Não é trivial transferir tudo isso para o mundo digital. Já as Fintechs não têm os canais de distribuição, a experiência e a relação sólida com os clientes. Existe muita complementaridade entre os bancos e os novos entrantes digitais”, explicou.
De acordo com Portugal, que também tem sólida carreira em instituições internacionais como ex-diretor executivo do Banco Mundial e vice diretor geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), as Big Techs, como são conhecidas as gigantes do mundo digital como Google, Facebook e Amazon, “representam uma ameaça ainda maior do que as Fintechs à indústria financeira tradicional, mas até agora elas têm preferido fazer parcerias conosco”.
Portugal defendeu a competição baseada nas vantagens genuínas de cada um e não no free riding (utilização sem custo de estruturas construídas com recursos das instituições financeiras preexistentes) ou na arbitragem regulatória (ocorre quando dois grupos de empresas atuam no mesmo mercado, oferecendo produtos e serviços semelhantes, mas um deles é sujeito a regras legais e regulatórias mais suaves do que o outro). “Os entrantes devem poder utilizar a estrutura já montada pelos incumbentes, como as redes de ATMs (pontos de atendimento eletrônico), mas têm que pagar por isso, o que inclui os altos custos de investimento ao longo dos anos e os custos operacionais”, disse.
‘Países precisam se preparar para ataques virtuais em grande escala’
Para fazer frente aos novos desafios criados pela revolução digital, a Febraban definiu 4 diretrizes como prioridades nos próximos anos:
- promover ainda mais a cultura digital dos consumidores e da sociedade em geral;
- aumentar a eficiência da indústria bancária;
- encorajar a inovação e a competição em bases justas;
- contribuir para aumentar a segurança digital.
“Os crimes cibernéticos preocupam muito, e os riscos só vão aumentar com o advento da internet das coisas (tecnologia que possibilita que objetos do cotidiano estejam conectados por meio da internet, gerando uma quantidade ainda maior de dados em circulação). Os países, tanto o governo como as empresas e a sociedade, precisam se preparar para se proteger de ataques virtuais em grande escala, inclusive à sua infraestrutura (não só financeira, mas também de energia, telecomunicações, defesa etc.). É fundamental aprovarmos legislações fortes e colocá-las em prática rapidamente”, alertou.
Segundo estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizado em 32 países, 80% deles não tinham uma estratégia definida para proteger suas estruturas mais críticas de ataques virtuais em grande escala. Para contribuir com soluções para essa ameaça, a Febraban criou um Laboratório de Segurança Cibernética.
Além da defesa contra ataques cibernéticos, Portugal apontou o desafio de adaptação à nova Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira, promulgada em 2018 e com entrada em vigor prevista para este ano. Para ele, “ será muito difícil as instituições se adaptarem a todas as mudanças previstas no prazo estipulado. Nem mesmo a agência governamental responsável pela nova LGPD está operante”, disse.
Segundo o presidente da Febraban, a nova lei impõe às empresas, governos e instituições em geral responsabilidade pela proteção dos dados pessoais ao longo de toda a cadeia de coleta e utilização dessa informação, abarcando desde o momento em que o dado é fornecido pelo indivíduo, na condição de cliente ou cidadão, até as suas diversas utilizações. Será difícil e custoso implementá-la na prática, concluiu, ressalvando que o setor financeiro está preparado para isso
Open banking: que dados devem ser compartilhados?
Entre as novidades em fase de planejamento/implementação por parte da indústria bancária, ele citou a entrada em vigor de um sistema de pagamentos instantâneo e o “open banking”. “A ideia é viabilizar transferências de recursos entre bancos, cartões de crédito e celulares de bandeiras diferentes em dez segundos, 24 horas por dia, 365 dias por ano, por meio de uma central única de liquidação dos pagamentos e recebimentos”, disse.
Já o open banking parte da premissa de que os dados do cliente pertencem a eles, que podem autorizar outras instituições a acessar essas informações. A ideia é que assim se possa aumentar a competição entre as instituições financeiras, com base na oferta de produtos/serviços em condições mais vantajosas para o cliente. No final de 2019, o Banco Central do Brasil abriu consulta pública para definir as regras do open banking no Brasil e deve iniciar a primeira fase de implementação do projeto ainda neste ano.
“O open banking é uma tendência mundial, mas levanta questões importantes como de quem é a responsabilidade legal pelo compartilhamento de informações do cliente, mesmo que ele o autorize explicitamente, assim como a necessidade de reciprocidade no compartilhamento de informações valiosas. As Big Techs, por exemplo, possuem grande quantidade de dados de usuários de seus serviços e, se vão ter acesso às informações dos bancos, também deveriam dar acesso a parte daquelas informações que hoje não estão disponíveis. Por fim, os custos da implementação desse ‘sistema aberto de dados financeiros’ deve ser dividido entre todos os players que se beneficiarem do projeto”, explicou.
‘O cliente quer que seu banco dê lucro’
Ainda segundo Portugal, o peso relativo da indústria bancária na economia, hoje calculado em 6% do PIB no Brasil, vem decrescendo, uma tendência que deve continuar, à medida que serviços financeiros possam vir a ser oferecidos em número cada vez maior por instituições não bancárias. Não significa, porém, que os bancos vão perder espaço. As pessoas reclamam dos lucros dos bancos, mas, segundo o presidente da Febraban, ao colocar seu dinheiro nessas instituições, os clientes preferem confiar em instituições fortes e sólidas. “No frigir dos ovos, os clientes exigem que o banco onde está seu dinheiro dê lucro”, disse.
Portugal concluiu sua palestra com uma brincadeira em relação ao futuro da indústria bancária: “Quando me perguntam se os bancos vão acabar, lembro de uma frase dita por Mark Twain (escritor norte-americano) durante uma viagem a Londres, depois que um jornal havia erroneamente publicado o obituário de sua morte: ‘The reports of my death are greatly exaggerated’.”
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.