O golpe de 1964: o passado e o presente 50 anos depois
Além de FHC, participaram deste debate: José Serra, então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), o historiador Boris Fausto e o cientista político Bolívar Lamounier.
Não uma, mas várias causas contribuíram para o clima que culminou com o golpe de 31 de março de 1964. Para discuti-las, a Fundação FHC reuniu no dia 28 de março José Serra, então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), o historiador Boris Fausto e o cientista político Bolívar Lamounier. Fernando Henrique Cardoso também participou do debate.
Os palestrantes destacaram causas econômicas, como a escalada da inflação nos anos que antecederam o golpe, mas sobretudo os fatores políticos que levaram ao desenlace fatal da curta experiência democrática de 1945 a 1964: a renúncia de Jânio Quadros, a radicalização ideológica na América Latina depois da Revolução Cubana, os erros de avaliação das chamadas “forças progressistas”, etc.
Mais do que apontar causas específicas, descreveram um enredo no qual atores políticos, de um lado e de outro, extremaram as suas posições e perderam a capacidade de produzir acordos e preservar a democracia. Em vez do diálogo em torno das “reformas de base” – tema que condensava as tensões políticas à época, em torno de questões que iam da reforma agrária ao direito de suboficiais concorrerem a cargos eletivos -, prevaleceram ameaças de parte a parte, num ambiente de paranoia crescente sobre as intenções e o poder do adversário. Ao final levaram a melhor as forças mais conservadoras, que conseguiram o apoio das Forças Armadas.
O único esforço real para evitar que a polarização levasse ao desfecho previsível, destacou Serra, deu-se por iniciativa do deputado San Tiago Dantas, do PTB, que entre o final de 1963 e o início de 1964 buscou construir a Frente Progressista pelas Reformas de Base. A iniciativa chegou a contar com o apoio dos setores moderados do PTB, a simpatia do PCB e a adesão de parte significativa do principal partido no Congresso, o PSD, de Juscelino Kubitscheck. Ao final, porém, naufragou sob o peso da radicalização e pela retirada do apoio que inicialmente lhe emprestou o presidente Jango Goulart.
A maioria dos militares só aderiu a conspiração golpista nas últimas semanas antes do 31 de março. Foi decisivo para tanto o Comício da Central do Brasil, no dia 13 daquele mês, quando Jango fez um claro movimento político à esquerda, parecendo endossar a tese de que as reformas de base deveriam ser feitas “na lei ou na marra”, segundo frase famosa do então deputado Leonel Brizola. A gota d´água teria sido a revolta de suboficiais da marinha, em 25 de março, que culminaria com um discurso de apoio do presidente a marujos e sargentos revoltosos, um dia antes do golpe. O medo do “comunismo” e a ameaça de quebra da hierarquia militar fizeram a balança pender em favor da decisão das Forças Armadas de romper a legalidade, na opinião unânime dos palestrantes.
Boris Fausto foi o primeiro a chamar atenção para o sacrifício da democracia no desenrolar desse enredo de radicalização. Como assinalou o historiador, “é importante lembrar que a esquerda e a direita tinham a democracia como um valor instrumental para seus projetos” e não como um valor em si. A esquerda ameaçava fazer as reformas “na lei ou na marra”. Já as forças mais conservadoras estavam dispostas a barrar uma hipotética “comunização do país”, a qualquer preço. Para ilustrar esse desapego à democracia, Serra entoou, bem humorado, o trecho de uma canção difundida pela UNE: “Para que democracia/ Quando a barriga está vazia?”
Bolívar Lamounier apresentou uma visão panorâmica do período de 1945-1964, para mostrar que o embate político que culminou com o golpe já vinha se desenhando desde o início daquele período, opondo as forças políticas oriundas do getulismo ao anti-getulismo, congregado na UDN. O trabalhismo se aproximou das forças de esquerda, ao passo que o udenismo movimentou-se para a direita, namorando o golpe militar desde a conjuntura que levou ao suicídio de Getúlio. O PSD, que também era oriundo do getulismo, mas tinhas bases mais fortes no meio rural do que nos grandes centros urbanos, progressivamente se deslocou do centro para a direita. Esse realinhamento e polarização das forças políticas refletiam, ressaltou Lamounier, tanto fatores demográficos e econômicos, como a rápida industrialização e urbanização do país, quanto fatores ideológicos, a exemplo do medo crescente do comunismo, que se espalhou na América Latina, depois da Revolução Cubana em 1959 e, principalmente, após a adesão de Cuba à União Soviética em 1962. Se os primeiros desenharam o contexto geral, foram os fatores ideológicos e políticos (e a fraca liderança de Jango, por exemplo) que moveram a trama na direção conhecida.
Houve, sem dúvida, apoio dos Estados Unidos à conspiração contra João Goulart, seja sob a forma de apoio financeiro a grupos civis de conspiradores, seja sob a forma da promessa de respaldo armado à conspiração golpista, em caso de resistência de forças leais ao governo no momento decisivo. Embora real, a interferência norte-americana não é nem de longe a causa primordial do golpe, sustentaram, sem exceção, os palestrantes.
Ao final, o apoio logístico das forças armadas dos Estados Unidos sequer se mostrou necessário, notou Boris Fausto, já que não houve resistência ao golpe. A verdade é que o chamado “dispositivo militar” de Jango Goulart, os sindicatos e as organizações de esquerda não tinham a força que apregoavam.
Assustar a direita, comentou Serra, era um política deliberada dos setores brizolistas do PTB e de alguns grupos de esquerda. Com bom humor, o então presidente da UNE contou que, num certo dia no início de 1964, estava no gabinete de um deputado petebista no Congresso e perguntou o que significava um mapa do Brasil crivado de tachinhas de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Neiva Moreira respondeu que o mapa estava ali para que os deputados conservadores o vissem e imaginassem que as tachinhas indicavam a existência de núcleos político-militares ligados ao então deputado Leonel Brizola, o chamados “grupo dos onze”. Pura encenação, pois esses grupos jamais tiveram a presença territorial e a organização que o tal mapa fazia crer.
Fernando Henrique encerrou o debate registrando que, depois do comício da Central, tomou um trem para São Paulo. Nele estavam também José Gregori e Plínio de Arruda Sampaio. Fernando Henrique recordou que naquele momento, entre eles, já não havia mais dúvida de que o golpe viria, só não sabiam se por forças leais ou antagônicas a Jango Goulart. Presente no auditório do iFHC, Gregori, então chefe de gabinete do deputado San Tiago Dantas, relembrou ter dito aos dois amigos e companheiros de viagem que, seja lá de que lado viesse o golpe, eles seriam levados ao exílio e de lá só retornariam velhinhos, por comiseração dos novos donos do poder.
O golpe veio pela direita. Plínio e Fernando Henrique foram para o exílio. Mas o vaticínio brincalhão de Gregori não se confirmou.