Ministros Barroso e Jobim debatem protagonismo do STF
Quais as lições aprendidas com o teste de estresse pelo qual passou a democracia brasileira nos últimos anos? Depois de um período de necessário e intenso protagonismo, como deve agir o Supremo Tribunal Federal nos próximos anos?
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Convidado: Luís Roberto Barrosso. Presidente do Supremo Tribunal Federal, ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral e professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pela Yale University, é também doutor e livre-docente pela UERJ e senior fellow na Harvard Kennedy School (2018).
Comentarista: Oscar Vilhena. Professor de Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito e Desenvolvimento e Diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP). É conselheiro da Fundação Fernando Henrique Cardoso.
Comentarista: Marta Arretche. Professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole. É membro do Advisory Board do International Panel for Social Progress e coordenadora geral de Artes, Ciências e Humanidades da FAPESP.
Abertura: Celso Lafer, Presidente da Fundação Fernando Henrique Cardoso e professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP. Foi ministro das Relações Exteriores e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Brasil.
Mediação: Sergio Fausto, Cientista político e diretor geral da Fundação FHC.
O crescente protagonismo do Supremo Tribunal Federal na política e na sociedade brasileira foi tema de um denso – e raro – debate entre o atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, e Nelson Jobim, que presidiu o STF de 2004 a 2006, no auditório da Fundação Fernando Henrique Cardoso em São Paulo, em 22 de abril último. Também participaram do evento o constitucionalista Oscar Vilhena Vieira e os cientistas políticos Marta Arretche e Sergio Fausto.
Em sua fala inicial de cerca de 30 minutos, o ministro Barroso explicou que o protagonismo judicial do Supremo no Brasil é resultado de uma Constituição abrangente e de um arranjo constitucional que facilita o acesso de diversos atores da sociedade brasileira à corte máxima do país.
“Esta foi uma escolha dos deputados constituintes que escreveram a Carta de 1988. A Constituição vigente inclui em seu texto matérias que, na maior parte dos países, são deixadas para a política resolver. E cabe ao Supremo ser o guardião desta Constituição abrangente que nós temos. Ao cumprir este papel, o STF inevitavelmente vai desagradar muita gente. Portanto, o prestígio do STF não pode ser aferido em pesquisas de opinião pública. Não dá para agradar a todo mundo”.
Luís Roberto Barroso
O presidente do STF defendeu a atuação do tribunal diante das ameaças à democracia e ao Estado democrático de direito durante os anos Bolsonaro (2019-2022), que culminaram com os ataques contra as sedes dos três poderes da República em 8 de janeiro de 2023.
“Enfrentamos as sombras e corremos o risco de elas terem prevalecido. Diante de um quadro muito complicado, o Supremo Tribunal Federal teve que assumir o fronte desse embate contra o extremismo. A corte máxima é passível de crítica como qualquer instituição, mas baixar a cabeça diante do ímpeto destrutivo das instituições democráticas, isso não. A democracia tem lugar para liberais, progressistas e conservadores, mas não tem lugar para a intolerância”, afirmou Barroso.
Ao final de sua apresentação, Barroso lembrou que a “sociedade brasileira está muito polarizada, radicalizada e intolerante” e propôs uma “agenda mínima constitucional capaz de congregar as pessoas em torno dos direitos fundamentais previstos na Constituição”. Sua lista inclui combate à pobreza e à desigualdade social, crescimento econômico e aumento da produtividade, valorização da iniciativa privada, prioridade máxima à educação básica, investimentos em ciência e tecnologia, segurança pública, saneamento básico, habitação popular e proteção do meio ambiente.
“Diante de um quadro muito complicado, o Supremo Tribunal Federal teve que assumir o fronte desse embate contra o extremismo”.
Luís Roberto Barroso, presidente do STF.
Supremo deve ter maior cautela e exercer a autocontenção, diz Jobim
Já na parte do debate aberta a perguntas da plateia, o ex-ministro Nelson Jobim – que também foi ministro da Justiça (1995-97) e da Defesa (2007-11) – pediu a palavra:
“Todos concordam com essa agenda que o ministro Barroso propõe. O problema não está no quê, mas no como. Aí começam as divergências.”
“A política brasileira acabou perdendo a capacidade de compor os seus conflitos. E aí começou-se a recorrer ao Supremo para resolver os conflitos da política. Hoje todo mundo sabe quem são os ministros do STF, mas ninguém sabe quem são os líderes dos partidos no Congresso Nacional, que, no passado, eram os que construíam as maiorias legislativas para aprovar projetos importantes para o país”, disse Jobim, que foi deputado federal entre 1987 e 1995 e teve papel relevante na Assembleia Nacional Constituinte (1988-89).
“No momento em que se acessa o Supremo para arbitrar questões que deveriam ser resolvidas pelos políticos, isso desprestigia a política. O ex-ministro Teori Zavascki (morto em um acidente de avião em 2016) disse isso em um acórdão em que se opôs a um determinado tipo de decisão em que o Supremo avançou além dos princípios constitucionais e começou a fixar os ‘comos’. Como se faz? E como tem alguém resolvendo como se faz, aqueles que deveriam ser responsáveis pela condução do país, seja no Legislativo seja no Executivo, acabam não agindo para evitar desgastes e jogam o assunto para o Supremo”, continuou o ex-ministro.
“Daí a necessidade de o Supremo exercer a autocontenção. Eu creio, Barroso, que tem que ser meditado dentro do tribunal uma forma pela qual o STF não avance no ‘como’ de forma definitiva. A meu ver, esta é uma responsabilidade do presidente do tribunal. A pergunta que eu gostaria de fazer a você é a seguinte: é possível hoje se conseguir ter uma maior cautela? É possível o STF estabelecer uma forma de contenção progressiva de suas ações de maneira que os atores políticos sejam instados a exercer a função que cabe a eles?”, concluiu Jobim.
Política judicializada é motor da polarização, alerta Arretche
“Não podemos naturalizar esta conversa porque, se a defesa da democracia preocupa a Suprema Corte, este já é um problema da democracia”, disse Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). “Devemos dar muita atenção a essa questão porque a extrema direita brasileira, assim como em outros países, se tornou eleitoralmente competitiva, logo o risco de vivermos um retrocesso democrático não está encerrado (com a derrota de Jair Bolsonaro em 2020)”, disse.
Segundo Arretche, os cientistas políticos estão “freneticamente tentando entender do que se alimenta a extrema direita. Não é apenas uma questão de lavagem cerebral das pessoas nas redes sociais. Trata-se de de um fenômeno mais profundo e mais complexo”. A professora da USP listou três pontos de risco para o Judiciário e o país.
O primeiro, já explicitado por Barroso e Jobim, é que os atores políticos desistiram de disputar mudanças na lei na arena parlamentar e se dirigiram à arena do Judiciário. “Temos aí um problema de desenho constitucional?”, perguntou.
O segundo é que, quando a extrema direita joga questões para o Judiciário, ela sabe que, mesmo com a grande chance de sofrer derrotas jurídicas, isto pode lhe trazer ganhos políticos: “Quando o STF desempenha seu papel de arbitrar disputas, ele está inadvertidamente fornecendo combustível para a extrema direita do campo político.”
O terceiro ponto levantado pela debatedora é que, quando os ministros do Supremo tomam decisões monocraticamente ou exercem o poder de veto por meio de pedidos de vista, isto reforça o argumento da extrema direita de que a corte age arbitrariamente. “Como temos visto, esta narrativa tem eco em parte significativa da sociedade brasileira e pode nos trazer mais problemas mais adiante”, alertou Arretche.
“Precisamos entender as fontes de sucesso eleitoral da extrema direita para dar as respostas corretas a elas”, concluiu.
Qual a agenda do STF para reforçar sua autoridade judiciária?, pergunta Vilhena
“Do alfinete ao foguete tudo vai acabar no Supremo. Não há tema moral, econômico, político que não passe por lá”, brincou Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional e diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP). Segundo ele, é falsa a afirmação, frequentemente feita pela extrema direita, de que o Supremo Tribunal Federal estaria usurpando poderes ao julgar questões que caberiam ao Poder Legislativo decidir.
“Não há um Supremo usurpador, mas sim um tribunal que recebeu uma delegação de autoridade político-institucional superior à de seus congêneres em outros países, expressa em uma Constituição mais ampla do que as demais. Entretanto, mesmo falsa, essa tese da usurpação ocorre em um momento de ascensão de ondas populistas não apenas no Brasil, mas também em países como a Venezuela, a Hungria, a Rússia e a Turquia, onde as cortes superiores foram despedaçadas quando se contrapuseram a governos populistas, sejam eles de esquerda ou de direita. Nesse contexto perigoso, eu me pergunto: qual a melhor estratégia de defesa do Supremo?”, disse Vilhena.
“Não consigo pensar em outra que não seja o reforço de sua autoridade a partir das premissas de sua autoridade, que não são premissas semelhantes ao exercício da autoridade pela autoridade política (Executivo e Legislativo), mas sim pela autoridade institucional judicial. Qual seria uma lista de medidas que possam ser adotadas pelo STF com o objetivo de aumentar a consistência de seus votos e a aderência a seus precedentes?”
Luís Roberto Barroso, presidente do STF.
“A questão da colegialidade das decisões do Supremo, com a limitação das decisões monocráticas, é uma delas. Assim como a criação de standards para a padronização de certos processos decisórios e a teoria da deferência em relação ao poder político, no caso o Legislativo, e aos tribunais inferiores. Porque é um conforto que uma decisão judicial termine no Superior Tribunal de Justiça, no Tribunal Regional do Trabalho ou nos Tribunais de Justiça. O STF não precisa ser o decisor de tudo”, disse.
Em seus comentários, Vilhena defendeu que o STF redobre a cautela ao tomar decisões sensíveis à população. “Diferentemente do presidente da República, que responde por seus acertos e erros nas urnas, e do Legislativo, que tem uma competência mais pluralista de perceber e dialogar com a diversidade da sociedade brasileira, a autoridade do Supremo se baseia fundamentalmente em sua imparcialidade e distanciamento das partes. Exerce um enorme poder sem que tenha que prestar contas (ele usou o termo em inglês accountability) ao cidadão pelo voto. Isso faz com que o exercício de sua autoridade deva ser feito de maneira extremamente cautelosa e distinta do modo como as outras autoridades exercem o poder político”, concluiu.
STF deve se concentrar no essencial, que é a defesa das instituições, diz Fausto
“Desculpe, ministro Barroso, mas vou fazer uma provocação. Em que outro país o presidente da corte suprema apresentaria uma agenda de trabalho interna que incluísse temas como educação, saneamento, moradia, iniciativa privada, entre outros citados?”, disse o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC.
“Vejo que o Supremo internalizou esse papel de resolver todos os problemas do país, quando deveria se concentrar naquilo que é fundamental, a defesa das instituições democráticas, sobretudo em um momento de crise da democracia como a que vivemos no Brasil recentemente e em outros países. O STF pode ter um papel pedagógico em relação ao sistema político e dizer ‘não vem’, ‘nós não somos a fonte recursal de todos os problemas e frustrações da sociedade.”
Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC.
Como mediador, Fausto recebeu diversas perguntas do público, enviadas por escrito. “Infelizmente não tenho tempo de fazer todas elas, mas a maioria gira em torno da percepção de que o Supremo estaria caindo em uma armadilha populista. Com esse excesso de protagonismo e de visibilidade, o tribunal estaria se colocando em uma situação de maior vulnerabilidade?”, perguntou.
Minha agenda é a da Constituição, respondeu Barroso
“A minha agenda é a agenda da Constituição. E eu não digo ‘como fazer’. Como ministro do Supremo e presidente do Judiciário, apenas exijo o cumprimento dos direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs brasileiros”, respondeu Barroso. “É o caso, por exemplo, da urgência de se aprimorar a segurança pública, pois a violência praticada pelo crime comum e organizado é uma ameaça à vida de todos, sobretudo dos mais pobres.”
Barroso rejeitou a ideia de que o STF estaria caindo em uma armadilha populista: “Exposição pública e populismo são coisas diferentes. Os integrantes do Supremo defendem publicamente suas decisões, inclusive pela TV Justiça. Mas isso não quer dizer que votem de forma populista”. Segundo ele, o tribunal não está submetido a uma “accountability eleitoral”, mas seus membros são cobrados pela população em todos os lugares que frequentam.
Por fim, o ministro concordou que o STF deve restringir as decisões monocráticas: “A questão da colegialidade é um ponto importante. Se a matéria é institucionalmente importante, eu não concedo decisões monocráticas. Faço questão de levar ao plenário para ratificação.”
Leia o artigo “O STF e a defesa da democracia no Brasil”, de Oscar Vilhena, publicado no Journal of Democracy em Português.
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.