Debates
04 de outubro de 2017

Desenvolvimento tecnológico e cooperação internacional: o projeto Gripen em pauta

Quais são as áreas em que Brasil e Suécia têm interesses em comum? Quais são os caminhos e que canais devem ser criados?

“A lógica de co-criação da nova geração de caças Gripen NG é algo totalmente distinto, inédito. Brasil e Suécia decidiram fazer essa parceria conscientemente e não podemos perder a oportunidade de desenvolvê-la ao máximo.”

Mikael Román, conselheiro Técnico Científico e Diretor do departamento de Ciência e Inovação da Embaixada da Suécia em Brasília


A presidente da Boeing para a América Latina, Donna Hrinak, ex-embaixadora dos EUA no Brasil, circulou por Brasília há alguns dias para tentar vencer as resistências a uma possível compra (ou fusão) da Embraer pela (ou com a) multinacional norte-americana e garantir que, caso a negociação se concretize, serão protegidos interesses do Brasil em temas como a transferência de tecnologia entre a empresa sueca SAAB e a Embraer para produção dos caças Gripen no Brasil. Segundo reportagem do Estadão, a mensagem é que a Boeing concorda com a blindagem do projeto Gripen, que permaneceria autônomo mesmo que o eventual negócio venha a se concretizar.

Recentemente, a Fundação FHC promoveu um encontro com representantes dos governos brasileiro e sueco, da Embraer, da SAAB e da comunidade científica brasileira para analisar novas oportunidades de desenvolvimento tecnológico resultantes da parceria entre as duas empresas. Na ocasião, o adido científico da Embaixada da Suécia em Brasília, Mikael Román, apresentou seu estudo “Nurturing Spillover from the Industrial Partnership between Sweden and Brazil: a case study of the Gripen project”.

O trabalho (disponível na seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página) aborda a dinâmica geral de grandes projetos industriais bilaterais baseados em inovação. “Esse ‘spillover’ (transbordamento, em tradução livre para o português) pode ir muito além da transferência de tecnologia e conhecimento (da SAAB para as empresas brasileiras envolvidas no projeto, sob liderança da Embraer) e criar uma nuvem de oportunidades para outros setores da economia”, defendeu Román, cientista Social, PhD em Ciência Política e Pós-Doutor pelo Centro de Estudos Internacionais no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).

Román lembrou que, ao fechar em 2013 a compra de 36 supersônicos de combate Gripen NG pelo valor de US$ 4,5 bilhões (cerca de R$ 14,2 bilhões) para reequipar a Força Aérea Brasileira (FAB), o Brasil optou por comprar “um avião que ainda não existe, pois será preciso desenvolver conjuntamente a próxima geração (dos caças)”. “O investimento que o Brasil se propôs a fazer na área de defesa tem tudo para servir de locomotiva e alavanca para incentivar o crescimento em toda a economia. O objetivo do meu estudo, e deste evento de hoje, é debatermos o que podemos fazer para incentivar essa dinâmica”, explicou.

“Desde que os primeiros suecos chegaram ao Brasil no final do século 19, sempre tivemos boas relações. Na década de 90, havia cerca de 220 empresas suecas atuando no Brasil, o maior PIB sueco fora de nossas fronteiras. Mas desde então não aconteceu muita coisa. Esta nova parceria entre a SAAB e a Embraer (e suas parceiras) está prevista para durar 30, 35 anos. É literalmente um casamento, um momento único na relação bilateral entre o Brasil e a Suécia”, afirmou o adido sueco, em sua fala de abertura.

O contrato entre a SAAB e o Ministério da Defesa tem 1.300 páginas, complementados por mais 2.800 páginas relativas ao processo de transferência de tecnologia (“offset”). “Os termos de propriedade intelectual (durante o processo de desenvolvimento do novo caça) têm aspectos bastante favoráveis ao Brasil. Tudo o que o Brasil pagar com recursos próprios, por exemplo, será nossa propriedade”, garantiu o brigadeiro José Augusto Crepaldi Affonso, diretor do Departamento de Produtos de Defesa (Deprod) do Ministério da Defesa.

Em 1981, os governos italiano e brasileiro concluíram um acordo para o desenvolvimento do avião de ataque AMX (apelidado de A-1 no Brasil), e a Embraer foi convidada para integrar o consórcio AMX Internacional. Desde então, ao redor de 200 AMXs foram construídos. “Falo com pragmatismo dos programas de transferência de tecnologia, pois já fizemos isso há 30 anos atrás, com o projeto AMX”, disse o tenente brigadeiro do ar Marcio Bruno Bonotto, da Comissão Coordenadora do Programa Aeronave de Combate (COPAC).

Capacidade de organização e gestão

Para Crepaldi, o efeito ‘spillover’ mais imediato é a capacidade de organização dos suecos. “Os suecos têm sangue viking e são muito duros na negociação, mas também são muito corretos. Admiro a organização deles e gostaria que assimilássemos essa qualidade”, disse.

Ele também elogiou a capacidade de gestão governamental da Suécia na área da defesa, em comparação com a brasileira nos últimos anos. “Nos últimos três anos e pouco, o Brasil teve quatro ministros da Defesa. É possível trabalhar assim?”, perguntou.

Bonotto concordou que falta aos brasileiros organização e visão de longo prazo. “Tanto a nossa indústria como a academia veem oportunidades, mas não têm plano de negócio bem definido. Só no Gripen temos 60 projetos de offset (transferência de tecnologia), mas muitas vezes eles não se concretizam a longo prazo. Essa visão mais de curto prazo é uma cultura do país. Precisamos nos organizar e definir o que queremos e podemos fazer. Os suecos querem cooperar, mas ainda estamos engatinhando”, disse.

Segundo Crepaldi, os engenheiros brasileiros envolvidos na parceria SAAB-Embraer até têm ideias de como a tecnologia e o conhecimento que estão sendo compartilhados poderiam ser usados em outras áreas, mas não têm tempo para desenvolvê-los. “O momento é agora e quem vai criar valor agregado são os novos atores que se dispuserem a entrar no jogo”, disse.

“Quais são as áreas em que Brasil e Suécia têm interesses em comum? Quais são os caminhos e que canais devem ser criados? É essencial criar instrumentos para que toda essa tecnologia seja apropriada por clientes do projeto, empreendedores e engenheiros de outras áreas, como por exemplo na agricultura”, sugeriu o brigadeiro. Ele também disse que o projeto Gripen pode ajudar o Brasil a atingir algumas das metas de desenvolvimento sustentável (“sustainable development goals”) com as quais o país se comprometeu na Cúpula do Clima de Paris, em dezembro de 2015.

Divisão de tarefas e mercados

Marcio Bonotto relatou que a Embraer e seus parceiros brasileiros vão montar os primeiros oito aviões na Suécia e outros 15 na fábrica da Embraer, em Gavião Peixoto (interior de SP). “Diversas partes estruturais serão produzidas no Brasil, por diferentes parceiros, e depois montadas em Gavião Peixoto. Também queremos garantir parte da manutenção dos caças, mas 100% não será possível”, disse.

Outros equipamentos que não são parte do avião, mas que são essenciais para a operação, como os capacetes inteligentes que serão usados pelos pilotos e alguns dos computadores de bordo, serão produzidos por uma empresa de Porto Alegre.

De acordo com Armando José Carbonari, diretor de Engenharia de Programas Militares da Embraer, a empresa é a principal responsável pelos 60 projetos de ‘offset’ relacionados ao Gripen: “Nosso papel está bem definido e tem diversas fases. Na primeira fase, enviamos cem engenheiros para a Suécia, de um total de 360 previstos, onde eles detalharam as mudanças (no avião) solicitadas pela Força Aérea Brasileira (FAB). As principais alterações estão sendo feitas por lá. Depois, eles voltam e continuam o trabalho por aqui. O relacionamento entre suecos e brasileiros está indo muito bem”, contou.

Bengt Janér, diretor da SAAB para o Gripen, que trabalha em Brasília junto à FAB, contou que, em 2010 (ano em que o governo brasileiro anunciou a decisão de comprar os caças suecos), foi fundado o Centro de Inovação Sueco Brasileiro, em São Bernardo do Campo, e que vários pesquisadores já estiveram na Suécia. Segundo ele, dos 36 aviões encomendados, 28 caças serão monoposto e oito, biposto. “A Embraer tomou a liderança na integração de sistemas e é a maior parceria no Brasil”, disse.

Já no Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen (Gripen Design Development Network – GDDN), em Gavião Peixoto (SP), trabalham cerca de 200 engenheiros em permanente contato online com seus colegas suecos.

“Nos primeiros dois anos (completados em setembro passado), focamos na área do desenvolvimento, agora estamos começando a produção. A partir de 2020, começa a linha de produção e montagem na Embraer. “As empresas brasileiras que participarem do projeto integrarão a cadeia de suprimento global, não estarão limitadas à produção no Brasil”, disse Janér.

Henri Philippe Reichstul, que presidiu a Petrobras entre 1999 e 2001 (governo FHC), lembrou que, além do agronegócio, há poucos setores em que o Brasil tem projeção internacional. “A Embraer e a Petrobras são exceções. Mas, para aproveitar essa nova oportunidade, é fundamental que o Brasil possa exportar a nova geração do Gripen para outros países, o que depende em grande parte da questão das patentes e da negociação para usar a tecnologia assimilada em outros projetos. O que a China faria caso fizesse parte de um projeto desse tipo?”, disse.

Carbonari (Embraer) concordou que, para o projeto Gripen ter sustentabilidade, será essencial haver vendas para outros países, principalmente da América Latina. “Se não conseguirmos vender os caças para a América Latina, as empresas que participarem do projeto junto conosco não conseguirão se sustentar e poderão fechar”, disse.

Ainda de acordo com o representante da empresa aeronáutica brasileira, para utilizar as tecnologias resultantes do Gripen em outros projetos, será necessário aval da SAAB e do governo sueco. “Este é um aspecto que buscaremos rever (no futuro). Lembro, no entanto, que o know how obtido no projeto do AMX acabou sendo utilizado pela Embraer para o desenvolvimento do EMB-314, o Super Tucano (aeronave turboélice de ataque leve e treinamento avançado que já vendeu 225 unidades ao todo). Eu (a Embraer) somos um spill over do AMX”, disse.

Já de acordo com Bengt Janér (SAAB), o Brasil terá preferência nas vendas (da nova geração de aviões) para outros países da América Latina, enquanto a Europa será mercado exclusivo da SAAB. “No resto do planeta, dependerá de quem tiver mais acesso ao mercado. Pode ser o Brasil ou a Suécia”, disse.

O que mais interessa ao Ministério da Defesa?

De acordo com o brigadeiro Crepaldi, “a Embraer (especializada na produção de aviões de porte médio) é a terceira empresa aeronáutica do mundo e tem tecnologia de sobra, inclusive já foi concorrente da SAAB. Apenas montar os aviões aqui no Brasil não nos interessa porque, depois que eles estiverem montados, acabou o projeto e temos de demitir todo mundo”.

“O que desejamos é ter acesso à engenharia de produção de fato, dominar os sofisticados sistemas de controle da aeronave e como integrar os armamentos ao caça. É isso que estamos buscando (como parte do acordo de transferência de tecnologia). A montagem dos aviões é secundária”, disse.

Quem tem o manche do projeto?

Já quase ao final do encontro, o superintendente executivo da Fundação FHC, Sergio Fausto, destacou a necessidade de alguém assumir de fato a liderança do projeto Gripen do ponto de vista brasileiro e no que diz respeito ao ‘spillover’. “É importante ficar claro, do ponto de vista institucional, quem tem o manche do projeto. Do contrário, apesar de todas as boas intenções, o aproveitamento pode ser decepcionante”, disse.

Fausto também quis saber se, apesar das dificuldades fiscais vividas atualmente pelo governo brasileiro, o projeto estaria seguindo o ritmo previsto. “Até o momento não tivemos nenhum atraso, inclusive no aspecto financeiro. A Força Aérea Brasileira sempre paga suas dívidas, ainda que com atraso”, respondeu Bonotto. Segundo ele, “o lado sueco compreende a situação econômica do país, assim como os riscos dos próximos anos, mas se comprometeu a manter as condições e os prazos do contrato, independentemente do que acontecer.”

Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.