As lições da Lava Jato e os avanços e desafios no combate à corrupção
“Mais do que apenas uma má conduta individual, a corrupção progressivamente se generalizou no sistema político e se tornou a base de sustentação do poder”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
“O financiamento das campanhas eleitorais, algo que não foi resolvido de forma adequada pela Constituição de 1988 e por outras leis que tratam do tema, é a mãe da Lava Jato e de todo o esquema de corrupção que ela nos revelou. Mais do que apenas uma má conduta individual, a corrupção progressivamente se generalizou no sistema político e se tornou a base de sustentação do poder”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao final deste debate realizado em parceria com o site jurídico JOTA.
“Neste exato momento, o Congresso está discutindo o problema da maneira mais simplória, ao propor que o Tesouro arque com custos bilionários em vez de pensar como reduzir os custos das campanhas e aproximar os eleitores de seus representantes”, continuou FHC.
Concordância sobre avanços, discordância sobre eventuais excessos
“A Lava Jato colocou em prática diversos novos institutos como a colaboração premiada e o acordo de leniência, que rompem barreiras no processo penal e foram se solidificando no decorrer da operação, para o bem e para o mal”, disse o advogado Pierpaolo Cruz Bottini, professor livre docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
“Se, por um lado, eles se mostraram eficientes e legítimos, por outro, alguns excessos merecem ser observados com racionalidade crítica”, continuou o doutor em direito penal pela USP, que chefiou a Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (2005-2006).
Entre os possíveis excessos, Bottini destacou a delação premiada sem prova consistente. “Há casos em que o colaborador narra uma história em troca de vantagens, mas esta narrativa não é prova e, sim, um meio para as autoridades buscarem provas. O problema é que a sociedade aceita a narrativa como verdade, o que pode levar a injustiças”, disse.
“É fato que a delação premiada permitiu o acesso a informações de dentro das organizações criminosas. Mas a Lava Jato trouxe desafios ao direito penal como, por exemplo, um retrocesso na jurisprudência da prisão preventiva nos tribunais superiores. É importante reconduzir a prisão preventiva a casos excepcionais. O país reformou recentemente as medidas cautelares, mas não as utiliza como deveria”, disse a professora Heloísa Estellita, coordenadora do Grupo de Ensino e Pesquisa em Direito Penal Econômico da Escola de Direito de São Paulo da FGV.
Bottino e Estellita também criticaram o suposto exagero no uso da condução coercitiva. “Na medida em que você tira a liberdade de alguém só para que este alguém seja ouvido, mas como investigado ele tem direito ao silêncio, me parece uma falta de senso que acaba arranhando sua imagem sem uma utilidade prática”, disse Bottino.
Silvana Batini Cesar Góes, procuradora do Ministério Público Federal (MPF) no Rio de Janeiro, discordou: “A condução coercitiva surge justamente para diminuir a necessidade de prisão temporária, pois a pessoa é conduzida a prestar depoimento por apenas algumas horas e, em seguida, é liberada. No caso da Lava Jato, ela criou alvoroço pela notoriedade de alguns conduzidos”.
“Acho uma injustiça a tentativa de vincular o fato de muitos investigados decidirem colaborar com a prisão preventiva, pois o número de delatores da Lava Jato é muito maior que o de prisões preventivas realizadas. O colaborador entrega porque tem medo da pena e não da prisão preventiva especificamente”, disse Batini, professora da Escola de Direito do Rio da Fundação Getulio Vargas.
Segundo a procuradora, que integra o braço da Lava Jato no Rio de Janeiro, o Judiciário atualizou a jurisprudência da prisão preventiva, que anteriormente era mais utilizada em casos de crimes de rua e foi modernizada para atuar em outro tipo de crime, os econômicos.
Prisão após decisão de segunda instância, mais um tema polêmico
Outro assunto que provocou polêmica foi a decisão do STF de admitir o início da execução de pena após decisão de segunda instância, quando ainda há recursos disponíveis em favor do réu. “Se esta decisão cair (como alguns ministros do STF, entre eles o decano Celso de Mello, propuseram recentemente), a Lava Jato corre risco?”, perguntou Sérgio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC e um dos mediadores do evento.
“É um dos avanços mais importantes dos últimos tempos (o cumprimento da pena a partir da segunda instância). Nenhum país do mundo para se provar democrático precisa ter quatro instâncias judiciais”, disse Batini. “Não há quatro instâncias, mas apenas três”, refutou Estellita (alguns processos são julgados em última instância pelo STF e outros pelo STJ).
“Vamos cumprir a Constituição? Ela diz claramente que ninguém pode cumprir pena sem que sua sentença tenha transitado em julgado. Se quisermos mudar isso, tem de ser por emenda constitucional (que exige ⅗ dos votos na Câmara dos Deputados e no Senado para ser aprovada)”, disse a professora da Direito FGV SP.
Para Batini, a possibilidade de a decisão ser revertida seria um grande retrocesso: “O Supremo decidiu pela prisão após a segunda instância há apenas dois anos. A jurisprudência tem de ter permanência ou gera insegurança jurídica e descrédito. Uma revisão prejudicaria não apenas a Lava Jato, mas outras investigações no futuro.”
Estellita criticou o fato de o Poder Judiciário não ter prazo para julgar processos, o que leva a que muitos deles prescrevam: “Todos nós, advogados, procuradores, temos prazos a cumprir (durante um processo judicial). Para o Judiciário, não há prazo.”
Para ela, “cabe ao Estado reunir as provas para condenar uma pessoa em definitivo no prazo devido, pois a prescrição de crimes só não é reconhecida pela legislação internacional no caso de crimes contra a humanidade.” “Não é justo manter uma pessoa presa com um processo ainda não julgado de forma definitiva, pois isso prejudica sua dignidade humana, além de sua vida social e econômica. É como um nuvem cinza sobre sua cabeça”, concluiu.
O advogado Beto Ferreira Martins Vasconcelos, ex-secretário Nacional de Justiça do Ministério da Justiça (2015-2016), lembrou que o Brasil tem cerca de 650 mil presos, uma das mais altas taxas de encarceramento do mundo. “A maior parte delas condenada por crimes de pouca gravidade ou mesmo sem condenação. Portanto, o sistema ‘funciona’ muito bem para prender uma parcela da população menos favorecida, mas não funciona para outras. Aí é que está a questão”, disse.
‘Lava Jato não é revolucionária, mas fruto de um processo histórico.’
Todos os palestrantes salientaram que a Lava Jato só se tornou possível devido a uma série de avanços na legislação internacional e brasileira que começou na virada dos anos 80 para os 90 e continuou nos anos 2000.
“Após a Queda do Muro de Berlim (1989), diversas outras barreiras entraram em colapso, o que permitiu maior cooperação de agentes internacionais encabeçados pelos EUA e a Europa no sentido de investigar o fluxo de recursos financeiros lícitos e ilícitos pelo mundo”, explicou Vasconcelos, também professor da FGV Direito Rio. Como exemplo, ele citou as Convenções das Nações Unidas contra a Corrupção e de Combate ao Crime Organizado, ambas ratificadas pelo Brasil nos anos 2000.
Vasconcelos também lembrou que, desde a década de 90, o Brasil tem editado leis para combater a corrupção e tornar as contas públicas mais transparentes, como as Leis de Responsabilidade Fiscal e de Acesso à Informação, além das leis sobre organizações criminosas e de lavagem de dinheiro. Ele citou ainda a criação do COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), o fortalecimento da Polícia Federal, do Ministério Público e da Controladoria Geral da União – hoje Ministério da Transparência.
“A Lava Jato é mais um filme do que uma fotografia.”
Para Vasconcelos, a operação trouxe do submundo informações sobre como se opera a relação público-privada no país e impôs mudanças importantes no sentido de melhor governança e transparência por parte das empresas.
Nessa linha, Batini acrescentou: “A Lava Jato não é revolucionária, no sentido de ter caído do céu. Também dentro do Ministério Público e do Poder Judiciário foi necessário esperar que internamente pudéssemos evoluir e que todas essas novidades entrassem na nossa corrente sanguínea”, afirmou a procuradora se referindo à tradução das mudanças legais nas formas de agir do Ministério Público.
Junto com uma mudança geracional, o MP teve de aprender a trabalhar de outra forma: “Nós, procuradores federais, passamos a trabalhar em equipes, em estreita colaboração com membros de outros órgãos do Sistema de Justiça, como a Polícia Federal, a Receita e a CGU.”
Outra novidade foi a substituição do trabalho horizontal pelo vertical, em permanente diálogo com outras instâncias, como a Procuradoria Geral da União, a Justiça Federal, o STJ e o STF. “Isso nunca tinha sido feito antes”, disse, salientando também o intenso uso da tecnologia nas investigações. “Nesse sentido, a Lava Jato não é mais uma simples operação, mas um novo padrão de enfrentamento da criminalidade que começou em Curitiba e se estendeu para outros Estados”, afirmou.
Ativismo judicial
A jornalista Laura Diniz, sócia-fundadora do JOTA e também mediadora, quis saber a opinião dos participantes sobre a crescente importância do Judiciário no debate público brasileiro, seja por meio da atuação institucional do Supremo Tribunal Federal ou de seus ministros individualmente, além, é claro, do próprio juiz Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato na Justiça Federal em Curitiba.
“Diante da incapacidade atual do Poder Legislativo de chegar a consensos, o Judiciário, em especial o STF, tem se tornado cada vez mais um ‘locus’ de elaboração de políticas públicas”, disse Bottini. “É verdade que esta politização da Justiça ou judicialização da política acontece em todo o mundo, mas qual o equilíbrio correto?”, perguntou.
Vasconcelos lembrou que o alargamento da atuação do Judiciário vem acontecendo em diversas partes do mundo, fenômeno este que acabou por definir o presente momento como o “Século do Judiciário”. Lembrou também que, no Brasil, esse fenômeno é impulsionado pelo modelo da Constituição de 1988, cujo conteúdo incorporou largo espectro de direitos e princípios e também um mecanismo de atuação judicial e controle de constitucionalidade abrangente e capilarizado. Por fim, destacou ser relevante observar o previsível movimento de equilíbrio dinâmico entre os Poderes, cuja característica é o aumento conjuntural de protagonismo de um quando há redução significativa de prestígio e força de outros.
“O ministro Luiz Roberto Barroso tem falado de forma muito clara sobre o ativismo judicial e seus limites. Segundo ele, há juízes mais ativistas e outros, autocontidos. Mas o fato é que agendas que deveriam estar em outro poder, como a questão do aborto e a descriminalização das drogas, estão no Judiciário”, disse.
“O juiz só deve falar nos autos, e não publicamente. A essência de seu trabalho é a imparcialidade”, defendeu Estellita, que também manifestou reserva em relação à transmissão ao vivo de julgamentos do STF pela TV Justiça. “Até por uma questão de preservação do espaço de discussão entre os ministros e da reserva do voto. Sem falar na questão da vaidade. Nenhum país além do Brasil faz isso.”
Batini novamente discordou: “Reconheço que é preciso buscar o equilíbrio, mas não gosto da ideia de excluir categorias profissionais do debate público, é antidemocrático.” Para a procuradora, a megaexposição dos ministros do STF é um fato novo, mas inevitável (nos tempos de internet e das redes sociais). “Quando eu estudava direito, poucos sabiam os nomes dos ministros do STF. Hoje eles têm até torcida”, brincou.
FHC também falou sobre o assunto: “No passado, sabíamos os nomes dos comandantes militares e temíamos que eles tomassem decisões (sobre os rumos do país). Hoje todos sabem os nomes dos ministros do Supremo e até mesmo de outras instâncias do Judiciário. É um avanço democrático enorme”, disse. “O problema é que, às vezes, setores da sociedade manifestam o desejo de que este ou aquele juiz se candidate a presidente. Isso seria um desastre, como seria um desastre se eu e outros políticos resolvêssemos atuar como juiz”, continuou.
A hora da reforma política
Para Vasconcelos, a agenda que desperta maiores preocupações no momento é a reforma política. “Os parlamentares agem para impedir uma renovação da política, o que vai na contramão das necessidades do país. Além disso, a reforma política é um assunto incompreensível para a maior parte da população e, por isso, não há uma forte pressão popular para que ela seja feita”, disse.
Para Batini, o STF deve agir se o Legislativo não conseguir avançar na reforma política. “Não há coerência na atuação legislativa à altura dos desafios do país e, se o Parlamento não quiser recuperar seu papel, cabe ao STF dar uma certa racionalidade a esta questão”, afirmou.
Por fim, Estellita defendeu a regulamentação do lobby, hoje proibido no Brasil. “Isso é fundamental para diminuir a confusão entre a defesa de interesses de determinados grupos e coletividades e o financiamento dos partidos políticos”, afirmou.
Nem impunidade nem espírito de vingança
Ao final do evento, Fernando Henrique concordou sobre a importância de todos os atores envolvidos, dos políticos aos integrantes do Sistema Judicial e a própria sociedade, agirem com serenidade e equilíbrio. “Não se resolve todos os problemas de uma vez. Às vezes, a sociedade pede vingança, mas não pode. O Judiciário que faça o seu trabalho. Nem impunidade nem vingança”, disse.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.