Debates
20 de agosto de 2015

Arturo Valenzuela: Os EUA e o Brasil no novo tabuleiro da América Latina

Recebemos Arturo Valenzuela, cientista político chileno-americano que ocupou importantes cargos no Departamento de Estado norte-americano.


“Creio que o melhor para a relação entre os Estados Unidos e o Brasil seria ambos deixarem de lado ideologias e preconceitos, que podem dificultar as coisas, e pensarem em seus interesses fundamentais. A verdade é que temos muito a compartilhar. São países bastante similares, com muitas afinidades, valores e interesses em comum.”

A frase acima é um bom exemplo da maneira de pensar e se expressar de Arturo Valenzuela, cientista político chileno-americano que ocupou importantes cargos no Departamento de Estado norte-americano, equivalente ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro.

Nascido no Chile em 1944, Arturo Valenzuela foi enviado na adolescência pelos pais missionários (ele, chileno-americano, ela, americana) aos EUA, onde se formou em ciência política e fez carreira acadêmica em duas das principais universidades daquele país, a Duke e a Georgetown. Nas administrações democratas, foi subsecretário-assistente para Assuntos Interamericanos e membro do Conselho de Segurança Nacional (Clinton) e subsecretário para as Américas (Obama). “Nunca imaginei fazer parte do governo americano”, contou.

Para o cientista político não cabe aos EUA interferirem diretamente nos problemas dos vizinhos latinos. “Os problemas de cada país devem ser resolvidos por eles próprios. Há essa conversa meio esquisita de que os EUA descuidam da América Latina. Mas também há o argumento de que não devem se meter na região, às vezes dito pelas mesmas pessoas. Portanto, quando alguns me vêm com esse discurso ambivalente, respondo de forma direta e franca: ‘Se vocês não forem capazes de resolver seus problemas a essa altura da história, não cabe aos EUA resolvê-los’. A questão, na verdade, é mais profunda. Se os países não resolvem seus problemas por conta própria, suas instituições não amadurecem”, afirmou.

Os três eixos da política americana

De acordo com Valenzuela, a política norte-americana em relação à América Latina teve um divisor de águas: “O fim da Guerra Fria é a coisa fundamental, a chave para entender por que os EUA, principalmente a partir do início do governo Clinton, fez uma mudança bastante significativa em sua política para a região.”

Segundo o diplomata, ela se baseia em três eixos fundamentais: apoio à redemocratização (final da década de 80 e anos 90) e à estabilização econômica (anos 90 e 2000) e o desejo de que os países da região sejam bem sucedidos em seu caminho rumo ao pleno desenvolvimento. “Com o fim da Guerra Fria e o fim da ameaça do comunismo, já não havia nenhuma lógica em os EUA seguirem apoiando regimes autoritários latino-americanos. Houve então uma mudança fundamental da política norte-americana, que passou a apoiar, de forma verdadeira e sem uma prepotência hegemônica, os processos de consolidação democrática”, disse.

Para ilustrar o avanço democrático ocorrido na América Latina nas últimas décadas, Valenzuela apresentou estatísticas. Segundo ele, entre os anos 30 e 80 do século passado, 42% das mudanças de governo na região ocorreram por golpes de Estado. Nos anos 80, quando a Guerra Fria já se aproximava do fim, esse percentual baixou para 20%. “Desde os anos 90, a situação é bastante distinta. A meu ver, houve apenas dois golpes clássicos, no Haiti (1991) e em Honduras (2009). Por outro lado, num reflexo da ainda frágil consolidação democrática na região, 17 presidentes não terminaram seus mandatos desde os anos 90”, disse Valenzuela, autor do artigo acadêmico Latin American Presidencies Interrupted, publicado no Journal of Democracy (Volume 15, Nº 4).

Em 2002, ocorreu o fracassado golpe contra Hugo Chávez e, embora os países latino-americanos tenham se unido para condenar a tentativa de deposição do presidente venezuelano, os governos dos EUA e da Espanha inicialmente reconheceram o novo governo. Após 48 horas, com apoio da Guarda Presidencial, Chávez retornou ao poder, e a Casa Branca foi alvo de fortes críticas. “Naquele momento publiquei um artigo no The Washington Post questionando por que a Casa Branca se desviara de sua política de apoio à democracia na tentativa de golpe na Venezuela”, disse o palestrante.

Consenso de Washington e desigualdade social

Ao falar sobre o apoio às reformas econômicas realizadas nos anos 90 por diversos países do continente, com o objetivo de superar a estagnação econômica e a hiperinflação dos anos 80 (a chamada “década perdida”), Valenzuela tocou no tema do Consenso de Washington, um conjunto de medidas formulado por economistas ligados a instituições financeiras sediadas em Washington D.C, entre elas o FMI (Fundo Monetário Internacional), adotado por diversos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades econômicas.

“A maioria reconhece que alguns pontos do Consenso de Washington foram essenciais para a estabilização, como uma política macroeconômica responsável, maior independência do Banco Central, privatização de empresas estatais não competitivas e abertura comercial”, afirmou Valenzuela. “Mas o Consenso de Washington descuidou da questão social, da importância de investir em educação e em programas sociais de redução da desigualdade. Como o Brasil e o México demonstraram, o Estado tem um papel importante no combate à extrema pobreza.”

Para Arturo Valenzuela, não havia intenções “imperialistas” por trás do Consenso de Washington. “O que nos movia era estabelecer uma conversa entre países iguais, apesar das diferenças de tamanho econômico e poder. Qual é atualmente o interesse fundamental dos EUA nas Américas? Já não estamos falando de mercantilismo, busca de matérias primas ou proteger empresas americanas. Vivemos em um mundo globalizado, e nosso interesse fundamental é que os países da América Latina tenham sucesso”, disse.

Ele rejeitou, por exemplo, a tese de que os EUA estariam preocupados como o aumento da presença da China na região. Nos últimos anos, a nova potência asiática se tornou o principal parceiro comercial de diversos países latino-americanos, inclusive do Brasil (a partir de 2009). “Bem-vindos os chineses se quiserem negociar com a América Latina. Quando os países latino-americanos prosperam economicamente, isso é bom para os EUA. Mas, por favor, não sejam apenas exportadores de alimentos e matérias primas. Fortaleçam suas indústrias sem protecionismo exagerado. Se elas não forem competitivas, não conseguirão inovar.”

Cuba e o último resquício da Guerra Fria

Segundo Valenzuela, o fato recente mais importante nas relações dos EUA com a América Latina foi a retomada das relações com Cuba, anunciada em dezembro de 2014. Havia um desejo de reaproximação desde Clinton, afirmou, mas naquele momento não só não foi possível avançar, como houve um recrudescimento do embargo econômico, com a aprovação da Lei Helms-Burton. O motivo? A derrubada pelo regime cubano de dois aviões da organização anticastrista Hermanos al Rescate, que a partir da Flórida realizava voos com fins supostamente humanitários sobre a ilha. De acordo com o cientista político, a retomada do diálogo foi impedida por anos devido a uma “simbiose entre os duros de Havana e de Miami”.

Assim que o presidente Barack Obama chegou à Casa Branca, em 2009, Valenzuela voltou ao governo como subsecretário para as Américas, e os EUA tentaram “dar um reset” na relação com Cuba. “Aprovamos uma série de medidas para facilitar viagens de cubano-americanos à ilha e demos início a negociações que, no entanto, só prosperaram no segundo mandato”, relatou. Na fase final, elas duraram 18 meses e foram conduzidas por Ricardo Zuñiga, então responsável pelas relações com Cuba no Departamento de Estado e atual cônsul americano em São Paulo.

“O acordo com Cuba pôs fim a um dos últimos resquícios da Guerra Fria. Depois de mais de meio século de rompimento, há uma normalização das relações que, por mais tênue que seja, é promissora”, afirmou. Valenzuela não crê em uma reversão desse diálogo, mesmo na hipótese (pouco provável, segundo ele) de uma vitória republicana nas eleições presidenciais de 2016. “Os EUA mudaram. Elegeram Obama, um afro-americano, duas vezes. O grande desafio para os democratas é que as pessoas compareçam às urnas (o voto nos EUA é facultativo). Com uma eleição decente, os democratas vencerão”, afirmou.

“A comunidade cubano-americana e a Flórida (Estado que concentra o maior número de eleitores de origem cubana e é tradicionalmente um reduto republicano) também estão mudando. Duvido que haja uma reversão do acordo”, continuou, com otimismo.

A paralisia do Mercosul

Após lembrar-se do fracasso da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) – proposta do presidente Clinton de criação de uma área de livre comércio entre os 34 países da região, rejeitada por vários deles, inclusive o Brasil – , o ex-diplomata defendeu novos acordos comerciais e criticou o Mercosul, que, devido a disputas ideológicas e mudanças constantes de regras, não estaria ajudando seus membros a se tornarem mais fortes economicamente.

“Cada dia mais, percebe-se que o êxito dos países se deve à capacidade de se abrirem à globalização. Na região, há uma diferenciação entre o Mercosul, uma união aduaneira limitada, e a integração econômica que se desenvolve na região do Pacífico, baseada na noção de economias livres e abertas”, alertou.

Arturo Valenzuela também criticou o que ele chamou de “uma espécie de maniqueísmo” existente nos EUA em relação à América Latina. “Os que estão com os EUA são os bons. Os que não estão são os maus. Isso teve início, creio, em 2003 quando o México e o Chile (na época membros rotativos do Conselho de Segurança da ONU) não apoiaram o uso da força contra o Iraque”, contou.

“Essa percepção maniqueísta também se mostrou útil para alguns setores latino-americanos com uma predisposição contra os EUA. Assim como havia a tal simbiose entre os duros de Havana e Miami, também há uma simbiose entre os antiamericanos na região e os saudosos da Guerra Fria.”

A melhoria do diálogo com o Brasil

Sobre as relações Brasil-EUA, Valenzuela reconheceu que houve um período de distanciamento entre os dois governos – no início do governo Obama e o auge da crise financeira americana, por lá, e entre o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o primeiro de Dilma Rousseff, por aqui. “Naquele momento, (a mensagem) da política exterior brasileira era ‘bem, com os EUA não temos muito que ver, então vamos lá resolver o problema do Irã’”, disse, referindo-se à tentativa do Brasil e da Turquia de mediar um acordo nuclear com o país dos aiatolás em 2010, ignorada por Washington.

“Mesmo entre aliados, há diferenças, mas não podemos aceitar a ideologização dos interesses nacionais, essa coisa de ‘com eles, não’. Mas já houve uma mudança e não tenho dúvidas de que os interesses fundamentais do Brasil e dos EUA estão mais alinhados”, disse.

Valenzuela elogiou os resultados da recente visita oficial da presidente Dilma aos EUA, adiada em 2013 em resposta às denúncias de que a agência de segurança americana, a NSA, havia espionado o governo e empresas brasileiras. “Retomamos o diálogo e a cooperação em grandes temas como direitos humanos, ciências, tecnologia e educação. Mas podemos ser mais ambiciosos. Há o Diálogo de Parceria Global Brasil-EUA e o Diálogo Estratégico sobre Energia, que são muito importantes, além de questões comerciais entre os dois países que precisam ser resolvidas”, disse.

Ao ser questionado sobre o aprofundamento da crise econômica e política no Brasil, foi cauteloso. “Estes são, obviamente, tempos difíceis internamente, mas sou otimista não somente sobre o futuro deste país, como também de outros da região. Os processos de consolidação do Estado de Direito e da democracia tomam tempo, e há crises que só são superadas com o tempo. Em Washington, há uma grande polarização política entre republicanos e democratas que é prejudicial à democracia americana. Todos temos dificuldades e precisamos ver como superá-las. Desejo o melhor a vocês”, disse.

A crise venezuelana

Instado por Sérgio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC, a dar sua opinião sobre o agravamento da crise política e econômica na Venezuela no governo de Nicolás Maduro (sucessor de Hugo Chávez), o palestrante defendeu um maior envolvimento das lideranças políticas da região no acompanhamento do processo político no país. “Uma crise ainda maior na Venezuela traria muitas complicações para os Estados Unidos. Para o Brasil e a Colômbia, idem. Por que não há mais diálogo entre nós para evitar uma catástrofe?”, disse.

Segundo Valenzuela, a OEA (Organização dos Estados Americanos) ou a ONU deveriam monitorar as eleições parlamentares marcadas para o final do ano naquele país. “Esse tipo de garantia não é apenas para o resto do mundo, pois são os próprios cidadãos que devem estar convencidos da legitimidade da eleição. Se, após a eleição de 6 de dezembro, os venezuelanos não souberem quem de fato venceu, teremos a receita para uma crise muito mais profunda”, afirmou.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em assuntos internacionais e política. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do portal do Estadão e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.